sexta-feira, 27 de agosto de 2021

MEU ENCONTRO COM DEUS E O DIABO


 


 

Deus e o diabo entraram na minha vida numa noite do ano de 1984. Foram recebidos com aquele tipo de perplexidade que nunca deixa de render frutos, produzir resultados, estimular pensamentos e posicionamentos pessoais.

 

No imaginário, o lugar desse encontro era tanto um lajedo adornado por xiquexiques quanto o alto de um morro onde se pendurava em êxtase uma legião de romeiros. O deus que veio a mim naquele momento distendido com duas horas de duração era um líder religioso feito à imagem e semelhança de Antônio Conselheiro. O diabo era um arquétipo de cangaceiro cuja fúria dionisíaca ia muito além do tipo característico da economia social nordestina.

 

O local de fato desse encontro não foi uma capela católica nem uma igreja evangélica de periferia como as daqueles tempos pré-Universal do Reino de Deus. Nem uma praça de exercício político ou um inferninho digno da presença eventual do capeta. Foi num teatro.

 

Um teatro situado numa rua do hospício – e só isso já deveria ter servido de indicativo do que me aconteceria naquela noite que passou a ser um dos pontos de referência da minha vida besta. Rua do Hospício, bairro da Boa Vista, região central do Recife.

 

Foi no Teatro do Parque, amplo, à antiga, aquele onde Beatriz Segall parou de representar certa noite em meio a reclamações sobre o calor, que me encontrei com Deus e o Diabo. Não os de Roma ou das Igrejas. Mas os do filme de Glauber Rocha, o cineasta não menos dionisíaco que se bandeou para um céu infernal ou um inferno celeste há quarenta anos.

 

É curioso como a efeméride travessa cai sobre nossas cabeças quase cortadas num momento em que o Brasil não poderia ser/estar mais glauberiano – até no caráter de farsa. Quem teve acesso pleno à cinematografia de Glauber não sofre menos, mas talvez entenda melhor como chegamos a tal ponto.

 

Um ponto que sempre esteve ali, na esquina, à espera. Parece que o cinema de Glauber nunca deixou de nos soprar sobre essa possibilidade. Nós é que não captamos, abismados que estávamos com a estética mesma deste cinema tão ricamente composto, tão pleno de signos.

 

A profusão de signos embalados em “Deus e o Diabo” quase não me deixa dormir naquela noite do distante 84. A projeção acabou, a plateia foi pra casa e eu segui para a pensão onde morava, na Rua do Progresso – os nomes das ruas do Recife são quase estandartes de uma mapa carnavalesco.

 

Fui andando muito devagar porque a parte do meu corpo que mais fazia esforço naquele momento não eram as pernas – era o cérebro. Levei horas cotejando partes do filme, decupando cenas, elaborando minhas próprias teorias a partir dos elementos mil que Glauber Rocha me jogou na cara usando aquela tela de cinema como se fosse um canhão de ideias, constatações, possibilidades, contradições.

O Teatro do Parque na época era usado em algumas noites como sala de cinema para exibição de filmes raros como já era “Deus e o Diabo”. Estudante do primeiro ano de Comunicação em Recife, eu tive a sorte de assistir ao primeiro grande filme de Glauber Rocha numa projeção à altura, numa tela imensa, com som de excelência. Nada disso era muito fácil naquela época.

 

Hoje você pode ver ou rever “Deus e o Diabo” na hora em que quiser nas plataformas de streaming, DVD, os instrumentos são muitos. Naquele momento, o filme não estava à disposição com essa facilidade. Glauber Rocha, seu deus e seu diabo não poderiam ter encontrado  uma maneira mais retumbante de entrar na minha formação. Quisera todos os brasileiros tivessem tido essa oportunidade, com eu e meus colegas do curso de Jornalismo da Universidade Católica de Pernambuco naquela noite de 84.

 

Para efeito de comparação, lembro que somente anos depois pude ver pela primeira vez “Terra em Transe”. E vejam só: na telinha de uma TV de 14 polegadas na era do videocassete, já em Natal. E nem podia reclamar, porque ao menos tinha como conferir o filme de Glauber Rocha que se seguiu ao “Deus e o Diabo”.

 

Hoje, as cópias estão disponíveis, mas em compensação a cinemateca está em chamas; a arte demonizada; os canais da verdadeira expressão política propositadamente reduzidos, a riqueza cultural do país sem lugar para se mostrar com a grandeza que merece. Parece que nem às nossas contradições temos direito.

 

O fantasma de Glauber se projeta no céu do Brasil como aquela mãe apegada do episódio de Woody Allen no filme  “Contos de Nova York” cada vez que um patético brasileiro sem ideia do que seja nacionalidade veste verde-e-amarelo e sai em passeata sobre tanques imaginários.

 

O que diria disso tudo nosso Deus/Diabo em forma de cinema, desenhos, textos incansáveis, cartas que viraram uma biblioteca particular do pensamento brasileiro de então? O brasileiro-estandarte que foi o autor de “Deus e o Diabo” poderia achar até que não cabe mais alegoria nenhuma – hoje somos pobremente literais expressões do nosso pior retrato.

 

Meu inesquecível encontro com Deus e o Diabo é o que me segura diante do filme deplorável que passa todos dia na nossa janela.

 

segunda-feira, 16 de agosto de 2021

O BEIJO DE AMOR DE MAURA E MARIGHELLA


 

Morar em Brasília tem dessas coisas. Estava à toa na vida andando entre a rodoviária do Plano Piloto e o Palácio do Congresso Nacional, buscando nem sei bem o quê naquele vasto espaço com ministérios de um lado e de outro como se fossem peças de um dominó gigante prestes a desabar uns sobre os outros quando um tanque vindo também não sei de onde me despejou uma baforada de fumaça tóxica narinas adentro. Ainda bem que eu estava de máscara. Mas nem sempre a obviedade da covid é o inimigo a postos na esquina mais próxima, caso esquinas houvesse. Fugi pra casa às pressas, confuso com a situação, mas outro susto me esperava ao abrir a porta do apartamento numa Asa Sul bucólica com seus jardins urbanos inimagináveis em qualquer outra capital caótica do país em desagregação: dei de cara com um casal aos beijos na minha sala de estar. Continuava tudo muito confuso, mas ainda assim eu era capaz de divisar os rostos em convusão naquele beijo francês de fim de novela: eram Carlos e Maura, o casal de guerrilheiros que a ficção e a realidade juntaram na mesma cena do meu pesadelo ocasional.

 É nisso que dá ler as trocentas páginas da biografia de Carlos Marighella em que Mário Magalhães, jornalista carioca, coleta, organiza e analisa as informações sobre o comunista brasileiro que atravessou duas ditaduras levando chibata no lombo sem recuar um milímetro nas suas ideias que, sistema político repressor ou libertário à parte, giravam em torno de mais igualdade social, menos miséria, mais civilidade política neste Brasil que nunca deixou de nos surpreender com pesadelos reais. Meu sonho mau certamente também é resultado das noites em que me pego maratonando os capítulos de Roda de Fogo, novela global de 1986 que causa uma dor inominável a quem cedeu ao apelo do Globoplay e se pôs a revê-la no streaming do até agora mui confuso e nem um pouco utópico século XXI.

 Nem a saída de cena mitológica deste Tarcísio Meira icônico para a história real e ficcional do país tem poder de causar tamanha ironia. Em Roda de Fogo, rodada justo no período em que o país elegia a assembléia constituinte que nos deu a carta de direitos sociais de 1988, cada diálogo pode ser um triste comentário cruel e involuntário sobre o futuro do então distante 2021. Maura era Eva Wilma, outra perda do duro presente, representando com sua habitual maestria uma ex-guerrilheira urbana que, como poucos, sobreviveu à repressão policial do período após sucumbir à resistência armada que o fechamento de todos os canais de expressão política decretara. Ela volta ao Brasil tremendo de medo – imagine se Maura pudesse sonhar minimamente com o futuro, assim como cada um dos brasileiros que assistiram à exibição original em 1986 – de que aquela conversa toda de redemocratização fosse só de brincadeirinha. O trauma da tortura estava por trás de cada fala da personagem e, sim, ela vai, como ocorreu de fato com a também atriz e então deputada Bete Mendes, dar de cara um  dia com seu torturador em pessoa. E não é o general Hélio d’Àvila, uma caricatura perfeita que os autores montaram para zoar os militares em retirada  mas que, as ironias não param, lembra muito vários dos que estão em cena no governo em vigor. Mas a fumaça do tanque soprada no meu nariz perdido num pesadelo ao menos mostram que, se o inacreditável se realizou, também o fez dessa maneira tosca e mambembe, com a profusão de Pazuellos tão arrogantes quanto atrapalhados, pra não falar no chefe, que tisna a bandeira de qualquer ordem ou instituição.

 

 Marighella, o mulato baiano filho de preta com italiano que resultou num caso típico de brasileiro de seu tempo e lugar, impressiona pela capacidade de resistência. Ele não tem o pavor nem um pouco fictício de uma Maura e sim a pele grossa capaz de reter as chibatadas de mais de uma ditadura e só cair diante da última delas num cerco que fez do interior de um fusca um paredão de fuzilamento.  Passa quase que uma vida inteira nos desvãos da clandestinidade e ainda assim emite, das sombras, uma luz carismática que o faz querido até fora do círculo da política de fato. Por um curto período, arradia publicamente essa capacidade de se fazer notar como constituinte de outra assembléia progressista – a maior que tivemos nesse quesito, quase ao ponto da ilusão em relação ao país em que funcionava, e que daria origem às Constituição de 46, a mais odiada pelos refratários ao progresso igualitário.

 Foi esse casal nem um pouco imprevisível que encontrei aos beijos na minha sala, ambiente que devem ter julgado seguro em 2021, sem saber que lá fora grassa uma ordem caótica e destrutiva que tenta emular os miasmas de ditaduras de antanho. Acordei do sono ruim e do pesadelo inesperado com o som da televisão ligada, dando a notícia da morte do Tarcísio Meira que também está nesta Roda de Fogo que ri da gente do fundo da tela plana de alta definição, como se dissesse pra gente do lado de cá e de hoje, cuidado, vá com calma, 1986 lhe observa. É como se Renato Vilar, o empresário grosseiro de Tarcísio Meira naquela história, cobrasse ao telespectador abobalhado: o que vocês, imbecis, fizeram com toda aquela esperança do meu tempo? Meremos o puxão de orelha, e como. Com uma ironia suplementar: a novela elegia um empresário com paradigma de corrupção – ele e seu entorno, formando por financistas vorazes e advogados comprados. Sempre foi mais fácil culpar os políticos, pois não?

Parece provocação do sistema Globo insatisfeito com a forma como o governo que ajudou a eleger indiretamente o tem tratrado essa reedição em streaming de Roda de Fogo. Tem muito a dizer à época atual, assim como a biografia escrita por Magalhães. Leia o livro, veja a novela, use máscara contra a fumaça e saiba reconhecê-la nas tantas vezes em que tem sido usada para disfarçar o mau cheiro do desmonte do país. No diólogo entre os anos passados e o tempo atual, 86 menos 64 é igual a 21 – a matemática da história brasileira segue uma aritmética diversa.  Quisera pudéssemos maratonar a realidade, acelerando a montagem desse filme ruim. Mas temos que nos contentar com a reexibição de um passado que grande parte da população – que a viveu de fato e tem idade para lembrar – preferiu esquecer, quando não ignorar. O pesadelo continua, quer você siga dormindo ou faça a opção de permanecer acordado.

segunda-feira, 14 de junho de 2021

BOB EM CARNAÚBA

 

 Até o dia 21 de maio passado, octogenário era um ser digno dessa palavra esdrúxula, pesada, esmagadora. Um homem ou uma mulher de 80 anos era como um velhinho ou uma idosa num fim de tarde triste numa praça em Carnaúba dos Dantas, no Seridó potiguar, contemplando em sua magreza ou obesidade irrefreável de resto de vida um retrato restrito do mundo que por tanto tempo habitara, e como passara rápido, e o tanto que poderia ter feito e não fez, e considerações do tipo.

As crianças por acaso caminhando na direção da escola mais próxima eram uma piada daquele senhor tão bonito – o Tempo. Os bebuns ocasionais diante dos “boinhos” salpicados em torno da praça eram uma lembrança das horas perdidas ou um aviso inútil àquela altura de escolhas que deram errado. “Boinho”, na linguagem de Acari ali próxima, é o mesmo que cigarreira, fiteiro ou outras denominações regionais – barraquinhas que vendem de cigarros a cerveja em lata. Os “boinhos” largados na tranquilidade algo tediosa de um fim de tarde em uma praça municipal de uma pequena cidade do interior combinam com os octogenários de antanho. Mas, como dizia, tudo isso mudou no último dia 21.

Foi como se naquele dia tivesse descido de um ônibus Jardinense – desses que viaja não nas estradas físicas, mas nas rotas do tempo – um certo Roberto, nos seus 80 anos. Irinel, Bernardo, Joaquim, Manoel, homens de 80 anos costumam ter nomes assim, de maneira que um Roberto dessa idade desembarcar na praça de Carnaúba já é algo incomum a partir do próprio nome desse passageiro do tempo que, no entanto, é nosso contemporâneo, sim. Não veio nem do futuro nem de Marte. Veio de um planeta paralelo que existe numa segunda dimensão visível apenas para quem cultiva a verdadeira juventude aqui mesmo neste astro redondo – sim, redondo – a gravitar em torno do Sol.

Pra ser mais exato, nem era Roberto. Era Robert mesmo, mas pode abreviar para Bob, por mais esquisito que soe a palavra numa praça em Carnaúba dos Dantas, aos pés do Monte do Galo, dentro da atmosfera tão pouco gringa do quadrilátero simbólico formado entre as cidades de Caicó, Parelhas, Currais Novos e Acari. Pois naquela data Bob Dylan, o próprio, desceu do Jardinense e foi conferir pessoalmente o panorama em volta, com seus boinhos, seus bebuns, o comércio local, o belo prédio escolar numa das laterais, as redes estendidas em estampas variadas à venda, as barracas de mosquiteiros cor de rosa, a algaravia de um dia de feira, as caminhonetes em disparada, as muitas e muitas motos e bicicletas, as mocinhas de short, os gaiatos – os jokermen do sertão.

Mr. Dylan podia parecer estranho, mas não o era totalmente. Afinal, naquele dia mesmo estava completando 80 anos de vida. Um octogenário, pois não? Ao atingir essa idade – a partir de uma geração em que morrer aos 27 chegou a parecer entre um presságio e uma lei, vide Janis Joplin, Jimi Hendrix e  Jim Morrison – o homem velho que deixa vida e morte para trás reescreveu a essência dessa faixa etária, injetando nela a juventude de que sempre e tanto precisamos.

Com Bob Dylan chegando a esta marca, 80 anos necessariamente passam a ser outra coisa. A palavra octogenário perde o sentido. Esqueça o velhinho ou a senhora idosa no ocaso triste da praça em Carnaúba. Instale imediatamente neste lugar a figura do trovador folk, do jovem de cabelos qualquer-coisa que com suas letras coalhadas de imagens inesperadas e reflexões oportunas, sua filosofia pop-musical de fina extração poética, inscreveu-se na linha do nosso tempo a ponto de passar das fitas k-7 para o prêmio Nobel, fundindo na mesma e rara matéria literatura incidental, show bussiness e contracultura. Não são muitos os que conseguem medir a alquimia correta dessa mistura incerta.


Ao fazer 80 anos, Bob Dylan, para usar uma palavra da moda, ressignificou o conceito de juventude. Estendeu-o para muito mais à frente. Os 80 são os novos 50. Isso já vinha ocorrendo, mas quando um ser humano da estatura existencial dele atinge essa marca – sobretudo vindo da geração de onde partiu, do meio onde se colocou e se firmou – torna-se aí sim um marco.



Imaginá-lo desembarcando de um Jardinense que viaja através do tempo e o deixa saltar numa praça em Carnaúba dos Dantas é apenas um exercício de composição para fixar a relevância desse acontecimento. Agradeço à comunidade de Carnaúba por me oferecer seu cenário como ponto de apoio. Carnaúba não é melhor nem pior, mas sempre me pareceu uma cidade-cenário, um microcosmo que espelha e ao mesmo tempo sintetiza as demais ali próximas, já citadas aqui. Carnaúba poderia estar numa letra de Bob Dylan. Porque à maneira dela, a cidade contém o mundo, todo. Não vejo lugar melhor para expandir esses pensamentos sobre os novos 80 anos do que sua praça, seu comércio, sua gente, sua atmosfera.

A partir do momento em que Bob Dylan faz 80 anos e desembarca na praça de Carnaúba, torna-se possível, ou até necessário, ou talvez até obrigatório – caso a obrigatoriedade não fosse algo tão inconciliável com as ideias aqui expostas – considerar que a juventude começa no berço e só acaba no túmulo. Pra não falar das outras vidas, os demais planos. É menos uma questão de idade e de condições físicas – embora essas, claro, sejam um obstáculo – do que um estágio mental quiçá perpétuo, certamente constante, insistentemente mantido, teimosamente sustentado.

Carnaúba é toda sua, velho Dylan. Fique à vontade. Encoste num boinho e beba algo, aproveite a prosa de um poeta disfarçado de traste municipal. Há muitos casos assim. Talvez algum saxofone por perto toque um trecho de Royal Cinema e lhe inspire uma nova canção sobre o poder da juventude.

Mesmo aos 80 anos, sobra tempo pra você. O próximo Jardinense só sai às sete da noite.

terça-feira, 20 de abril de 2021

CIDADES IMAGINÁRIAS

 



Giancaldo fica bem distante de Império. Milhas e milhas e milhas. Não só no espaço, mas também no tempo. Estive nessas duas cidades e é bem possível que vocês que me lêem também tenham passado por suas ruas – desertas e abandonadas num caso, pobres mas vibrantes no outro.

 Giancaldo é uma cidade siciliana e quando lá estive, ou quando lá retorno, o que acontece sempre, posso estar nos anos 50 sob os efeitos da guerra encerrada em 45 ou no final dos anos 80. Império é um  lugar que já foi rico, produtivo, abastado,  modelo capitalista em algum ponto dos Estados Unidos. Mas quando lá estive, nesse fim de semana, encontrava-se largada por tudo e por todos desde que seu princicipal motivo de existir, uma fábrica de alguma coisa essencial, alguma matéria industrial vital para o país, perdeu a importância e foi fechada.

Não pego avião, navio, nave espacial, teletransporte ou qualquer outro meio de deslocamento desse tipo para estar nessas duas cidades. Minha passagem para ambas é uma sala de cinema ou um aparelho de blue-ray. A tela se ilumina e eis Giancaldo mais uma vez à minha frente. As luzes da sala de exibição se apagam e surgem a penumbra gelada do que restou de Império.

 Na primeira, descer desse trem imaginário significa viver mais uma vez as aventuras de Totó e Alfredo, num dos melodramas mais completos que você poderia esperar de um cinema melodramático por natureza, o italiano. Na segunda cidade, parece que quase não há chão a pisar, como se a própria base física do lugar tivesse se exterminado ao mesmo tempo em que linhas de produção e sobretudo empregos desapareceram quando um sistema inteiro deu aquele piscar de olhos que delimita o fim de uma era de properidade e o início de tempos de absoluta decadência.

Vou para Giancaldo sempre que revejo Cinema Paradiso, filme de Giuseppe Tornatore de 1988. Estive em Império a partir do momento em que entrei numa sala de exibição para assistir a Nomadland, concorrente ao Oscar 2021 dirigido por Chloé Zao com a sempre produtiva Frances McDormand. Entre ambas, distantes no tempo e no espaço, descubro um outro paralelo que, contrariando a natureza dos paralelos, resulta em uma improvável união.

 

Explico: se Cinema Paradiso é pra mim – e para muitos – um caso perfeito a evocar a natureza de deslumbramento que a sétima arte representa, Nomadland é o seu oposto. E no entanto, ambos são cinema: forte, expressivo, marcante. Não importa se um é puro encatamento banhado com lágrimas e pra comprovar isso eu só preciso lembrar a cena final de Paradiso com aquela sequência de beijos vetados. Com também não importa se o outro é pura realidade sem disfarce ou camada de atenuante que o faça parecer menos incômodo, e para comprovar basta lembrar as cenas só aparentemente gratuitas em que McDormand exercita o mais primário dos atos humanos sem o qual é impossível permanecer vivo.

 Aqui temos McDormand defecando em cena de um filme que documenta o nomandismo econômico de populações empurradas do tabuleiro do mercado de trabalho convencional. Atores e não-atores da realidade social que mais parecem estampas desbotadas a ilustrar as fissuras de um capitalismo cruel. Ali temos um cineasta consagrado retornando à cidade natal onde não pusera os pés por décadas apenas para renovar em si mesmo a qualidade mágica do cinema mais elementar, aquele que necessariamente trabalha com o encantamento de quem quer ir além do próprio povoado e para isso só conta com uma tela branca numa sala escura.

 

Paradiso é a mais bela e tocante ilustração do poder do cinema quando entra pelos olhos e causa aquele deslocamento definitivo na alma. Nomadland é o mais triste retrato a mostrar como este mesmo cinema, múltiplo, também se presta com poucas outras obras de arte a abrir os olhos e instalar no âmago de cada um a consciência de um mundo em desagregação. Uma nação dada por rica, primeiro mundo, mas onde se pode trabalhar uma vida inteira pra acabar com uma aposentadoria irrisória que não cobre nem mesmo o custo de um teto, um prato e um remédio no mesmo orçamento pessoal.



Há pobreza em ambos, sim, mas o grande cinema nunca é farisaico, insensível. Num caso, em Cinema Paradiso, nos imiscuimos numa comunidade sem recursos materiais e mesmo assim chegamos às raias do delírio – o paraíso perdido do clichê mais gasto. No outro, em Nomadland, apesar do poder comunitário que coliga e à sua maneira até renova os ejetados do sistema, contemplamos o incômodo mais perturbador – como se fora um filme de terror sem necessidade de monstros.

 Um pêndulo invisível joga plateias atentas para lá e para cá ao ritmo do balanço de filmes como esses. E é possível rever Cinema Paradiso num dia e entrar numa sala que exibe Nomadland no outro. Sua cinemateca particular encontra lugar para todos – e sua humanidade se desdobra, seja na expansividade maravilhosa de um ou na concisão silenciosa e restritiva do outro. Não há beleza em Nomadland: mesmo as paisagens que podem envocar algum enlevo a direção teve o cuidado de borrifar com uma camada de cor a menos, um borrão que descaracteriza. Não há um still de Cinema Paradiso, mesmo quando você já cansou de ver e rever o filme, ou sobretudo nessa situação, que não evoque na saturação de cor, na pigmentação viva das emoções, uma elevação audiovisual que deixa o espírito em festa.

 

E mesmo tão diferentes, esses dois filmes podem estar tão próximos. Amarguras diversas se comunicam, realidades sociológicas se deixam expressar, parábolas vagam na atmosfera que ambos projetam em torno do seu público. Por isso a Giancaldo mediterrânea e sua girândola de fatos e pessoas pode estar tão perto, evocar por exemplo um Seridó arcaico a ponto de facilitar seu choro inevitável ao final da sessão. Assim como a dureza fria da Império norte-americana pode ser um vizinho incômodo prestes a se manifestar na desordem econômica que a própria pandemia aí fora veio colocar em questão de uma maneira jamais imaginada.

 Em que planeta você vive? Que cidades passaram pela sua vida com o poder desses lugares que o cinema criou ou recriou à sua maneira? Sempre poderemos fugir para uma delas – ou  tantas outras, como a Rimimi de Federico Fellini, ou a Porto Alegre remota de um velho episódio de Teixeirinha, permita – e lá identificar os encantos e as falências que nos cercam, nos aguardam, nos refestelam ou nos fazem chorar. O cinema é esta cidade imaginária que nos serve de refúgio mas não nos deixa esquecer de todo o mal que por ventura tenha ficado além da bilheteria e das lindas salas de espera que nem existem mais.

domingo, 14 de março de 2021

CORAGEM, MOSTRA TUA CARA


 Não era a leveza do radinho FM, nem a rebeldia tipo zona sul, tampouco o colorido da tv pré-MTV ou o último refrão da banda mais recente a subir ao pódio do hit parade brazuca. A partir de mais ou menos 1983 uma energia diferente, renovada, consumista sim mas não só isso, irresponsável mas tomada por um sentimento de entrega que justifica todas as tomadas de posição, entrava em cena no  meu, no seu radio, aparelho de tevê, escada de prédio popular, elevador de burguês, calçada ou o que fosse.

 

Entrava em cena o que você pode chamar de Geração 80, Brock, juvenília de butique, o que quiser, desde que reconheça uma contribuição que aquela gente, hoje um bando de cinquentões como eu e como você, estimulou ou recebeu, consagrou ou propagou, acendou ou turbinou  com certa liberdade que esse tempo sombrio de Covid, arma oficial no cinturão e ignorância bossal na cachola solapou: a coragem.

 

Falta coragem, e como falta, de uns tempos pra cá. O que fizemos com a nossa ousadia, nosso peito à prova de velhas ameaças, nossa até falta de senso de perigo? Penso nisso após assistir a meros 15 minutos do documentário no acervo do Netflix  - será que nossa coragem foi chupada sem a gente perceber pela tela do Netflix? Mistério! – sobre o Barão Vermelho. Dé, Maurício, Frejat, Guto e Cazuza se jogando na vida. Cinco burgueses e um país precisando de uma chacoalhada. E eles foram apenas um dos agentes a fabricar as bases daquele novo país de então.

 

Era como se houvesse uma faixa de sintonia fina pairando no ar, do Leblon  a Neópolis, de Caicó a Pelotas. Um fio desencapado à espera da ignição feita por grupos com o Barão para conectar os novos habitantes pensantes de um país com tanto pra deixar para trás. Eu sei, havia uma colonização cultural sul maravilha, eram rapazes de vida fácil e dinheiro à mão, mas de algum lugar sempre tem de vir o sopro. Décadas depois, o vento vinha de lugares menos privilegiados no arrastão do Rappa e assemelhados. Não é isso – era, de novo, a coragem. Eles levavam vantagem, meninos bem postos e mimados com espaço para gritar no microfone platinado? Sim, mas podiam ter se acomodado.

 

Hoje, parece que é tudo acomodação – ok, não é, mas sem alguma generalidade não se faz uma leitura de nada, absolutamente nada. E o que se louva aqui é a falta que faz aquela visão, aquele grito, aquela luz que mesmo encharcada de álcool e drogas na embriaguês da liberdade há pouco admitida, despejava sobre tudo e todos o tamanho das nossas incertezas e da hipocrisia daquela gente sentada nas suas salas. A engrenagem do tempo, aquele que nunca pára, fez das suas e nos jogou hoje nesta realidade infelizmente muito mais forte da acomodação geral, no mínimo, ou da recusa da paixão e da humanidade pura e simples – e tudo isso vai além da política, meu irmão que como eu chora as doces lágrimas de um tempo melhor, só isso, melhor.

 

Cadê a coragem que se instalou nas salas até então cheias de naftalina dos anos 80? Você vai me dizer que parte daqueles bravos guerreiros virou coveiro daquela mesma coragem ao se revelar ainda mais ultrajantes do que os antiprofetas do país fardado do pré-85. Verdade, mas não vendo pra eles meu desencanto – insisto na memória dos que ficaram pelo caminho esmagados pelos efeitos do vigor daquela mesma coragem.

 

Teriam capitulado também os hoje mortos aos capitães do momento? Pra mim, jamais. Se esse pessoal aí fora já arruinou o país da esperança da minha geração não venha me pedir pra pichar a memória de quem me alimentou dessa fé profana, lírica, pop, juvenil e sem limites. Eduardo pode ter virado um bolsonarista inspirado nos tempos em que jogava futebol de botão com seu avô, mas exclua Mônica dessa história. A adesão foi dominante,  mas não completa. E esse jogo, reflito aqui enquanto entrego os pontos diante do documentário sobre o Barão, ainda não terminou. Nunca termina. Recomeça. Recua, fode-se onde parecia que iria triunfar mas também sabe preparar seu momento. É nesta parte que entrar a coragem. A vida é bela, embora muitas vezes seja uma merda. Vem tudo junto.

 

Só não precisavam exagerar tanto.  Nem vacina tem mais. Ainda assim, Brasil, mostra tua coragem. Que a cara já conhecemos há tempos.

sexta-feira, 5 de fevereiro de 2021

Grato, Sr. Plummer

 



Meu Christopher Plummer de cabeceira sempre será aquele que dá dois esporros monumentais em The Insider (nosso “O Informante”), o filme que vale como uma especialização em Jornalismo Público para quem estiver disposto a cursar a tão necessária – e esquecida – disciplina.

Num deles, Plummer, interpretando um célebre jornalista master da equipe do programa 60 Minutos, da rede CBS – famoso por ir além de qualquer superficialidade em temas pedregosos na TV norte-americana e em geral – destrói com método e disciplina, além de vasto desdém, a advogada que deseja impedir a rede de TV de publicar algo contrário a um seu potencial... anunciante? que nada, ao seu potencial comprador! Isso é o capitalismo sem maquiagem.

No outro, sobra para Al Pacino. E você, caso não tenha visto o filme, deve estar se imaginando que ator teria a grandeza cênica e a impedância pessoal capaz de reduzir ninguém menos que Al Pacino a pedacinhos – e o que é pior, estando... errado! Pois Christopher Plummer fez isso com maestria numa cena que nunca saiu do meu arquivo sentimental, assim como o filme todo que, meio como se fosse pra esnobar de vez, ainda tem Russell Crowe  como o insider a que o título se refere, mostrando com talento não menos considerável que tanto pode ser um gladiador invencível quanto um ser humano todo furado por balas emocionais de alta letalidade.

Dê adeus a Christopher Plummer vendo ou revendo O Informante, que deve estar vegetando aí nalguma gaveta de streaming, num grito surdo em meio à pletora audiovisual que nos derruba como se fosse uma onda no mar.

Grato, Sr. Plummer.

sexta-feira, 8 de janeiro de 2021

CHAU, ELBA

 


 A maioria das pessoas envelhece mal, bem mal.

Esse seria só mais um motivo pra eu insistir em seguir de bem com minha Elba Ramalho antitudo, marginália, passa-fome no Sul Maravilha, vestidinho de renda deixando ver tudo, cabelão crespo que cobria sem deixar um espacinho que fosse a gigante capa dupla do LP Capim do Vale.

Torço o olhar pras declarações cuspidas pela Elba pos-lip, pós-sucesso, pós-fracasso, pós-tudo o que não presta e fico com a Elba que cantava Luis Ramalho, bradando em linda voz gasguita que “o lugar também clareia a lama”. Com a Elba luxuosamente vestida em trapos que varriam a poeira do sertão nas cenas da Morte e Vida Severina refeita na tela da Vênus Platinada.

Com a Elba que infelizmente não vi em pessoa no teatro se rasgando com Marieta na montagem da Ópera do Malandro, mas que ouvi até escavar sulcos no vinil da trilha sonora gravada.

Com a Elba de quem se dizia que escandalizava de Brejo do Cruz a Caicó, a Elba-açude de mulher que fez transbordar para todo o país as águas do Bodocongó. A Elba cujas pernas sustentavam o show business nordestino-brazuca levando aquela alegria composta pelo então anônimo Lenine – outro que já foi melhor – pelos palcos-caminhões da suburbanidade sertaneja bye bye made in Brasil com que nem o cinema de Cacá poderia sonhar.

Fico com a Elba lírica, capaz de tirar do chão não só os pés mas a alma desprevenida do ouvinte daquele radinho pré-FM apenas cantando sete cantigas pra voar – de autoria, por sinal, de outro que envelheceu mal neste catálogo de gente que já prestou, e como prestou, e como é triste que tenha prestado tanto e tanto não preste mais.

Tão triste que só a música pretérita mesmo pode fazer esquecer, apagar, deixar pra lá. Fico com aquela Elba e tudo que poderia querer é que ela tivesse ficado com a gente, na banda insanamente sã de cá. Não deu, chau, amor. Já vou me embora, não chora, a hora é de deixar.

segunda-feira, 25 de maio de 2020

A Matrix brazuca



 As memoráveis campanhas presidenciais dos anos 90, a gestão neoliberal de FHC, o sucesso das políticas de distribuição de renda da era Lula, os tropeços de Dilma, o avanço de feminista e LGBT e similares, o país vendo com simpatia as caminhadas dos sem-terra, os massacres tipo Eldorado de Carajás, os subterrâneos do governo Temer, a queda de Collor e a mineirice de Itamar, as passeatas incendiárias de julho de 2013, o PcdoB e os black bloc, Amarildo e Regina Duarte, tudo, todos, o que vivemos, o que pensamos que éramos, o que imaginávamos em vão, acabou. Não porque, como não se cansa de dizer uma amiga querida na internet, “o Brasil acabou”. Mas porque era tudo falso, como a Matrix daquele filme famoso.

Era tudo – inclusive as mazelas que fazem parte do processo, como o general Nini dando com pau na cabeça de cidadãos na Brasília de 25 de abril de 1984, só pra ficar num exemplo – era tudo uma espécie de filme em três dê com a gente dentro, fazendo figuração mas certos de que éramos os astros e estrelas. Nada disso. E a culpa é um de um reles artigo da Constituição de 88, justo ela, a carta magna da redemocratização, a que agora, sabe-se, também faz parte – o “instrumento da demoracia”, lembram, a expressão que Ulysses Guimarães usou ao promulgá-la? – desse mesmo sonho esverdeado e sombrio.

O artigo 142, na parte da Constituição que trata do papel dos militares, é que acaba com o nosso mundinho de ilusões de cidadania, representatividade, respeito à minoria e por aí vai. Nada disso se sustenta diante das palavrinhas que estão lá. E que não vou reproduzir porque, além de exterminadoras, elas também são muito chatas como toda linguagem oficial. Basta dizer que, por obra e graça do general Leônidas Pires Gonçalves, que viria a ser um dos “garantidores” do fim da ditadura propriamente dita e da “transição democrática” que hoje, graças a este mesmo artigo, ficamos sabendo que não existe de fato, o artigo 142 ficou lá no texto onde se mantém até hoje. Leônidas seria um dos ministros militares de Sarney, escolhido em detrimento de Ulysses – por imposição dos mesmos homens de farda – para o comando do país finda a ditadura propriamente dita. Há pontas soltas aí como o papel de Tancredo, cortado do filme involuntariamente, mas o sentido final é este.

Falou-se tanto em reformas no Brasil ao longo dos anos. Foram tantas PECs, as tais proposta de emenda à Constituição, aprovadas apesar da imensa maioria parlamentar exigida para tanto. E ninguém sugeriu reparar a Constituição para tirar de lá esse artigozinho por meio do qual as Forças Armadas se garantem como patronesses da manutenção da “lei e da ordem” a pedido de qualquer um dos três poderes. Se o leitor não se ligou até agora, aí está a chave para qualquer forma de golpe militar quando o cliente quiser – e este pode ser tanto os próprios militares irritados ou os empresários tiriricas da vida com alguma política distributiva do presidente eleito ou mesmo a classe média amuada pela falta de dinheiro pra comprar dólar barato e viajar pelo mundo agora. Ou, é claro e é como tem se dado, os três grupos aí juntos, com a concordância calada ou gritada das manadas de manipulação de sempre, no caso de Dilma os classe C cegos aos próprios avanços conseguidos durante os anos anteriores (foi tudo “obra de Deus” ou do pastor da esquina, tanto faz)

É isso, então: hoje no Brasil muito se fala sobre o artigo 142, que sempre esteve lá, prontinho para ser usado, sem que ninguém se desse conta dele. Especialmente a porção mas progressista do espectro político, ocupado com tantas picuinhas colocadas no seu caminho. Essa sim era – é – uma pedra digna do nome, o instrumento legal pronto e acabado para que o brasileiro jamais possa viver livre da chancela do poder militar. A ditadura militar clássica, naquele formado que varreu a América Latina nos anos 60-70, acabou formalmente, mas a democracia verdadeira, essa que vai além de um sistema representativo por si só já cheio de vícios antipovo, nunca veio.
E tudo aquilo – Lula X Collor, o choro de perdedor jamais admitido de Aécio, o êxito do orçamento participativo no Sul, a campanha das Diretas, a arrogância discreta de Marina Silva e até o Deux do Cabo Daciolo – nunca existiu de fato. Foi só distração. E como o artigo continua na Constituição, sendo agora erguido ao alto como argumento pró-golpe pelos fanáticos bolsonaristas das manhãs de domingo em Brasília, vamos continuar vivendo muitas outras ilusões pela frente. Para nos livrar desse fantasma tão real, teríamos que fazer como os argentinos, que mantiveram artigo semelhante na sua Constituição pós-ditadura mas, embora os anos de chumbo deles tenham sido muito mais terríveis do que os nossos, algum tempo depois extirparam do texto essa parte suja.

Pena que não podemos dizer que os doentes e mortos pela Covid 19 fazem parte da Matrix brazuca. Não, a pandemia é real – nunca esqueça que é também um desastre mundial, embora aqui se torne pior em função de quê? Ora, em função também da Matrix, porque se tivéssemos tido uma transição de fato, sem este artigo colado que nem chiclete na sola do sapato verde-amarelo, teríamos também um sistema de saúde, um presidente eleito e uma coordenação de governo muito mais eficiente, justa e respeitável. A Matrix, porém, como se viu no filme, domina tudo.

Sugiro que na próxima vez você escolha a pílula vermelha.

sexta-feira, 15 de maio de 2020

TESOUROS DO SOPÃO: As máquinas de A Máquina

Vamos nos aproveitar um pouco do isolamento social destes meses para recuperar aqui no Sopão postagens antigas (sim, este blog já pode ser considerado uma antiguidade, já tem arquivo pra isso) sobre livros, filmes, discos que o leitor pode usar como enchimento dos dias que por acaso possam lhe parecer vazios enquanto espera as coisas melhorarem (hão de, crê sem fanatismo). Pra começar, achei, de dezembro de 2007, este post sobre o filme "A Máquina" de João e Adriana Falcão, que eu havia acabado de assistir em DVD. Abaixo do texto principal, vai um adendo saboroso pra mim: um comentário* que a própria Adriana Falcão me mandou na época. 

As máquinas de "A Máquina"

"A Máquina" é um liquidificador de estilos onde cozinheiros de imagens colocaram para triturar nacos generosos de tubérculos visuais do tipo "O Auto da Compadecida", "Lisbela e o Prisioneiro", "A Invenção do Brasil", "Hoje é dia de Maria", um pouco até de "Armação Ilimitada" e outras manufaturas da fábrica de Guel Arraes, dos armazéns de Luiz Fernando Carvalho e dos depósitos de outros fabricantes de um imaginário afim, como o brincante teatral Antônio Nóbrega ou a alma popular que empresaria o Bloco da Saudade no carnaval pernambucano.

"A Máquina" é o processo de liquefazer tudo isso num sumo cinematográfico que resuma todos esses sabores visuais sem a preocupação restrita de ser tv, cinema, teatro ou festa interiorana.

"A Máquina" é Paulo Autran dizendo o texto genealógico de Adriana Falcão, que vai às últimas conseqüências para contar como nasceu seu herói Antônio. Um conto que escava as mais invisíveis raízes das narrativas para lembrar que, só pelo fato de existir, um simples personagem resume em si todo o mistério e o absurdo da existência da humanidade inteira.

"A Máquina" é um ator capaz de brilhar tanto e com tal falta de esforço que consegue apagar tudo em volta – o cenário, os coadjuvantes, as luzes, as cortinas, a própria sala de exibição com suas paredes e nosotros, espectadores. Wagner Moura é essa máquina instantânea de carisma e transfiguração, que faz de uma ponta um continente. O ator que transforma, pela farsa mais bretchiana, um colunista televisivo no seu avesso.

"A Máquina" é o artifício de João e Adriana Falção, que invertem o fluxo da globalização ao levar os microfones e as canoplas do mundo até o vilarejo de Nordestina – e não o contrário.

"A Máquina" é a quintessência da nova farsa cinematográfica nordestina, o supra-sumo da pilhéria, a saturação de sons e cores que as experiências anteriores formalmente se recusavam a admitir. É a peneira elétrico-popular da feira em oposição ao filtro climatizado do shopping. É o carro de som de interior enfeitado com pinturas berrantes anunciando bugigangas no cinza discreto da metrópole. É a nova parábola do êxodo forçado na era das fronteiras invisíveis só para os computadores.

"A Máquina" é o filme de João Falcão, baseado no livro de Adriana Falcão, que deu origem também a elogiada e bem sucedida peça teatral, e que, tendo sido esnobado pelos cinemas, pode ser visto agora em DVD.

*COMENTÁRIO QUE RECEBI DE ADRIANA FALCÃO:

"Há muito tempo não leio o que sai sobre o filme A máquina, porque geralmente não fico feliz quando faço isso. Hoje descobri o seu texto e o dia mudou. Ficou em mim a impressão que você entende melhor o que quisemos passar para os outros até melhor do que nós mesmos. Parabéns e obrigada

terça-feira, 5 de maio de 2020

GUERRA ESTÁ NA MODA

Descobri agora que Guerra e Paz, o livro de Tolstói, virou moda neste período de quarentena. Tem matéria na FSP de hoje, com Fernanda Torres, com quem não simpatizo nem um bocadinho, contando sua experiência de ter lido o clássico. O curioso é que, assim como ela, comecei a ler Guerra e Paz em um contexto completamente solto do atual. Peguei pra ler em dezembro do ano passado, ao encontrar uma edição barata - quase de graça - no kindle. 1 real. Guerra e Paz a 1 real. Por que não? Lá me fui.
Até eu descobrir que aquilo era uma edição condensada e em tradução para o português de Portugal levou um tempo. Mas eu não queria encarar a tradução célebre agora no Brasil, publicada primeiro pela Coscac Naif, que fechou, e comprada e relançada pela Cia das Letras. Porque cheguei a pegar um exemplar na Biblioteca da Câmara, levei pra casa e quem acabou lendo (isso acontece frequentemente) foi Rejane Medeiros antes de mim. E reclamou dos trechos em francês. Mais tarde, nossa querida Ana Luiza Camara me contaria que passou pelo mesmo problema. Ambas largaram o livro.
Lembrei então de uma outra tradução, baratinha também, pela L&PM em livros que eles chamam "de bolso". Vá lá. 4 volumes.Só que meio difíceis de achar todos na mesma livraria. Comprei o volume 2, que correspondia ao trecho em que me achava no falso-português do kindle. Foi como uma revelação. Num instante consegui distinguir as famílias, os agrupamentos, os conflitos e principalmente as ideias - porque Guerra e Paz é como um filme feito em vários formatos. É como Oliver Stone naquele filme sobre uma dupla de malfeitores pop-modernosos cujo nome me escapa. Ou como no JFK pra ficar no mesmo cineasta. De uma cena pra outra ele muda a fotografia, o enquadramento, a granulação, o uso ou não de cor.
Assim é Guerra e Paz, ora é romanção descarado (daí Fernanda Torres dizer que parece uma novela das oito, e em grande parte está certa), ora é um ensaio sobre questões militares, daqui a pouco passa a ser um texto absolutamente questionador sobre a teoria da História (viu, Flavia Assaf, vai lá, se é que já não foi), daqui a pouco pega um caminho algo místico elaborando toda uma filosofia sobre transcendência e moralidade e por aí vai. Isso às vezes assim de um capítulo para o outro (o formato geral é bem fragmentado, de capítulos curtos num livro longo), sem preparar o leitor com transição alguma. E tem essa coragem a que a atriz também se refere de fazer de figuras histórias como Napoleão - talvez o principal personagem do livro - em figuras ficcionáveis com base no que Tolstói achava não só dele, mas do que pensavam sobre ele, erroneamente ainda segundo o autor.
Mas voltando à vaca fria, comecei a lei por essa curiosidade, contando que teria bastante tempo por causa das férias que estavam começando, e num período em que ninguém ouvia falar em coronavírus. Veio a pandemia e eu lá preso no livro (não totalmente porque quem conhece o Leitor Bagunçado sabe que ele é tão impaciente que lê vários ao mesmo tempo), misturando fanatismo por Napoleão com nossa mais que primitiva atração brazuca por Bolsonero, o abandono de Moscou com o cerco da pandemia, as dúvidas adolescentes de Natasha com a lembrança também remota do drama da Anna Karenina cujo primeiro volume eu havia lido décadas atras (e a quem preciso, agora, reencontrar).
Só agora lendo não apenas Guerra e Paz mas sobretudo o comentário final que a edição da L&PM traz entendi melhor todo aquele ensaio desesperado que Dostoievski compõe em Memórias do Subsolo, e que me solapou totalmente também anos atrás. Neste posfácio, Tolstói comenta que a literatura russa jamais vai ser ater aos formatos consagrados do romance europeu, diz que aquilo que escreveu não é só uma narrativa, também não é só uma dissertação e por aí vai. Eles já eram assim, eu é que não notava. Minha curiosidade pelos autores russos foi às esferas e só por isso não devo sentir tanta falta assim de todo dia após o café da manhã ler um pouquinho do Guerra e Paz, guardando o ouro pra mais tarde à noite, após o trabalho.
E numa hora inesperada Rejane veio me dizer que o livro se tornara um dos mais procurados nas livrarias que entregam volumes em casa, segundo uma reportagem que ela leu no Globo. Foguetões soem na noite das letras. Em meio a tanta escuridão, há uma velha forma de luz sendo renovada. É pra comemorar em meio às trevas.

P.S . Não adianta eu colocar o link pra matéria de hoje da FSP porque nem todo mundo terá acesso. Lamentavelmente.

segunda-feira, 13 de abril de 2020

CARLÃO E O TELETRABALHO



Essa onda de trabalho em casa me lembra a todo momento o amigo querido, Carlão de Souza. Uma de suas manias, ao conversar comigo e se queixar quando precisava cruzar a cidade de Neópolis até a Ribeira pra pegar no batente na velha Tribuna do Norte, era sonhar com o dia em que o mundo se rendesse ao... teletrabalho. Esta palavrinha mágica frequentava o vocabulário de Carlão tanto quanto rock, uísque, poesia, lirismo e mundo cão. Se todo mundo tem um vocabulário próprio em que certos termos se repetem formando um estilo verbal, eis um grupo delas que combinava com as falas do amigo querido.

Ele sonhava, mesmo, assim falando com o olhar no céu, nas nuvens ou nas tempestades, não importa. Que a humanidade já deveria ter descoberto o teletrabalho, que era um desperdício esses deslocamentos, que trabalhando em casa ele dava perfeitamente conta de escrever sua crônica e assinar lindamente como a Linda Baptista cujos textos saboreávamos. Que enquanto escrevia em casa ele poderia beber algo – que nem hoje faz minha colega Mariana Monteiro na Asa Sul aqui em Brasília, enquanto lá era Natal, ali por 1988, 89, os melhores anos da minha convivência com o amigo querido que nos deixou daqui a pouco faz um ano, vejam só.

O tempo passa, os chavões escritos não caem, mas novidades surgem – e eis o teletrabalho com que sonhava Carlão se impondo por força da necessidade e fazendo uma pequena revolução caseira na vida de quem desempenha vários tipos de trabalho intelectual. O que Carlão não sabia – ele ficava no limite do sonho, e como o sonho é enganoso, hein? – é que o teletrabalho divide espaço com o filho pre-adolescente que não escolhe hora pra pedir sua ajuda (imagino o amigo querido fazendo teletrabalho pra TN na casa de Neópolis e Alex, 10, 12 anos, pentelhando querendo saber sobre um mito grego de que tanto já gostava naqueles tempos), assim como com o almoço atrasado e louça por lavar. O amigo querido tinha, naquela época, a culinária nota mil de Jô e o machismo reinante pra não ter que se preocupar com o destino dos pratos, panelas e talheres após uma lauta refeição. Mas, hoje... sei não, amigo querido. Daí de onde você está dá pra ver que o teletrabalho não tem sido a única novidade – em boa hora, sustento apesar dos dedos murchos de relaxar na pia. 

Mas desconfio que o teletrabalho deixaria o amigo querido muito mais produtivo. Sem ter que digirir a Banheira – esse era o apelido do carrão velho que ele usava na época – pela Salgado Filho e Hermes da Fonseca adentro ouvindo Marisa Monte cantando Speak low, teria sim mais tempo para adiantar os livros que viria a escrever no futuro, num momento em que só tinha nesta lista o mitológico Crônica da Banalidade. Poderia ouvir mais Nei Lisboa cantando Junkie ou a trilha sonora do filme Cal enquanto batucava nas pretinhas. Reunir mais amigos para turbinar os assuntos que movimentariam o caderno de fim de semana do jornal e jogar conversa fora entre um parágrafo e outro sem se preocupar com deadlines e quejandos.

É isso, amigo querido – o panorama aqui embaixo não melhorou nada, nada. Nem dá pra fazer uma carta como aquela que Chico enviou para Boal e que quando se viu estava sendo cantarolada na boca de todo mundo com algum juízo e moderada dose que fosse de sensibilidade poética e política. A Marieta sempre estará mandando aquele abraço de Gil para os seus e essas novas geografias astrais nunca vão nos separar de fato. Daí de onde você está, gracejando sem maldade mas com empatia das nossas perdições terráqueas, faz um teletrabalho de outra natureza entre tecnô e pajelô pra ver se a gente, na próxima missiva, tem algo melhor para contar. Alô, alô, querido amigo, aqui quem fala é da Terra, que roda, roda e permanece a mesma. E mais não digo porque o teletrabalho, esse bicho tão calado quanto ansioso, me chama.

sábado, 11 de abril de 2020

UM CLÁSSICO NA PANDEMIA

Cecília e eu acabamos de assistir (ela, pela primeira vez) a “E o vento levou”. DVD  no leitor, sofá em posição confortável, olhos e ouvidos atentos e prontos pra descolar um pouco – e só terapeuticamente - da realidade em volta e... alto lá. Que o velho filme se põe a conversar, do seu jeito, com a pandemia aqui fora e seus efeitos. Duvida? Confira na lista a seguir.

1-Scarlett O’hara é seguramente a primeira negacionista célebre do cinema. No início do filme, cercada por pretendente aduladores, fútil e caprichosa como certa pessoa dos meios políticos atuais, ela graceja quando os rapazes lhe falam  da possibilidade de guerra. Não vai ter guerra coisa nenhuma e se insistirem, eu deixo vocês falando sozinhos... Como se sabe, o pano de fundo do filme é a Guerra da Secessão americana que estourou duas sequências à frente desta no filme. Alguma semelhança com a gripezinha?

2-Rhett Buttler mostra o quanto os papéis sociais, mesmo os mais estabelecidos, podem mudar quando um evento de proporções trágicas ameaça grandes comunidades. No início do filme é visto como  pouco mais do que um pária, contrabandista que se vale de oportunidades fáceis para encher os bolsos. Quando a pandemia – ops, a guerra – explode, consegue levar mercadorias para Atlanta furando bloqueios militares dos yanques e, boom, torna-se um benquisto cidadão de bem admirado por todos. Quem será que vai mudar de papel social ao fim deste isolamento e seus efeitos?

3-Grande eventos traumáticos mudam padrões sociais. O que até ontem jamais seria aceito, mesmo em termos de hábitos e rituais cotidianos, passa a ser suportado agora, para um segundo depois ser admitido sem reservas, e mais uns meses após ser visto até como algo desejável. Numa cena de baile, em meio aos rumores da guerra, faz-se um leilão das garotas de família com quem os cavalheiros queiram dançar. Um diálogo entre velhinhas vai do espanto à justificativa em três breves falas (o roteirista é fera em concisão). Mas não fica nisso. O sempre ousado Rhett Buttler resolve quebrar a banca e oferecer 150 pratas em ouro puro pra tirar uma viúva para dançar. Inimaginável. Pois a proposta é aceita – especialmente pela viúva, a espevitada negacionista Scarlett – e segue o baile. De que pudores nos livraremos no futuro imediato, alguém arrisca? E quais serão os novos hábitos, além do majado teletrabalho?

4-Justamente por causa da impaciência de Scarlett por aquela dança, Rhett tira sarro do seu fake luto, decorrente do igualmente fake casamento. Os fakes estão por aí contaminando tudo há tanto tempo, por que a gente não  notava? Esse pessoal do gabinete do ódio não descobriu a roda, apenas a adaptou às tristes recentes circunstâncias brazucas.

5-Previsões apascentadoras para o conforto da platéia. Pois o proprio Rhett Buttler as comete quando gira feito mosca de padaria em torno do mel de Scarlett O’hara. Tasca-lhe numa cena ainda inicial a previsão de que a guerra civil estaria prestes a acabar, dependendo apenas de uma reles batalha. Estrategista, logo o cara se corrige e trata de transformar o evento em papel moeda, mas antes ele também teve seu momento “gripezinha”, numa das raras concordâncias com a megera desejada. A guerra estava só começando e as mais de duas horas de filme à frente seriam um mostruários de horrores, como bem  serve de exemplo a cena dos socorro aos feridos.

6-Falando nela, é outro momento que conversa aos gritos com a realidade atual, como se o filme clássico e a crise que o mundo vive hoje fossem duas pessoas tentando se comunicar cada qual de sua janela em prédios um de frente pro outro. Estamos em um descampado diante de uma espécie de hospital de campanha. É clássica a cena: Scarlett O’hara se aproxima em busca do médico para fazer o parto do anjo caído na Terra que é Olívia de Havilland. O quadro conduz tudo. Começa fechado no rosto preocupado da heroína e vai abrindo aos poucos, de maneira que tanto ela como a platéia se dão conta lentamente da extensão dos danos humanos causados pela guerra. Completamente aberta, a cena é um território de corpos em agonia espalhados por um vasto chão. Alguém falou em cadáveres aguardando sepultamento na Itália? Ou lembrou daqueles comboios de caminhões militares entulhados de caixões que viu no Jornal Nacional? Dentro do hospital, mais um diálogo tão curto quanto marcante – e que poderia ser dito hoje nos lugares da Espanha onde o atendimento médico não dá conta de socorrer a todos, como já começa a acontecer entre nós em Manaus. Scarlet pede ajuda ao médico para o parto e ele responde dizendo para ela ir atrás de uma mulher que dê conta, porque ali já está ocupado com muita gente morrendo. Quem disse que pegar um filminho antigo pra ver é garantia de esquecimento momentâneo do coronavírus lá fora?







7- Ainda tem a cena da lista de mortos, disputada por centenas de mãos certamente repletas de micróbios naqueles tempos em que a higiene era a última coisa com que se preocupar quando famílias perdiam pais e filhos nos campos de batalha e a comida em casa corria sempre o risco de acabar, quando não de ser saqueada. Não há como deixar de relacionar as listas dessas cenas com as já célebres curvas de casos e demais estatísticas sobre contaminados, casos suspeitos de Covid-19 e mortos pura e simplesmente.

8-Tem mais, mas a lista está ficando além do planejado e o objetivo do post é mais flagrar a curiosidade do que baixar a guarda do leitor por acaso mais influenciável a sinais ou qualquer coisa do tipo. Pra encerrar, vale registrar que, nesta epopéia toda, a curva (olha ela aí de novo, mas agora é outra) dramática da personagem Scarlett O’hara de alguma maneira tangencia a nossa aqui fora neste momento e lugar. Ela sai de uma zona de conforto absoluto, esnobando pretendentes e torrando supérfluos na sua plantation sulista sem necessidades primárias, para um quadro de falta de tudo, até comida – daí a célebre cena do torrão de barro erguido ao alto com a promessa de nunca mais passar fome. Aquilo somos nós, gente, a humanidade atual que até ontem estava atulhada de desnecessidades (permitam o neologismo) e desperdícios, arrotando uma soberba que alija quem não tem dinheiro ou condições dignas de vida, incinerando uma natureza com a qual há tempos não nos sentimos verdadeiramente conectados. “E o vento levou” é um épico de fundo histórico que trata da capacidade que o ser humano tem de se reconstruir. Scarlet O’hara se refaz inúmeras vezes ao longo do filme, nem sempre da forma mais ética – mas se refaz, busca, tateia e acha algum caminho. Neste percurso dramático, aprende algumas coisas e teima em não assimilar outras, construindo com essa desigualdade o seu destino final (embora termine fazendo uma nova promessa na famosa frase que resume o filme). Sim, a frase referida no parênteses nos cabe bem agora, se soubermos aprender a lição inteira e não somente pela metade como fez a personagem. “Amanhã será um outro dia” é a sentença precisa para suceder a outra frase dita por outra personagem, Ashley, o queridinho de O’hara. “É o fim do nosso mundo, Scarlett”, explica ele para a ainda e sempre teimosa protagonista. Tente assistir a “E o vento levou” sem sentir a sugestão invisível no ar como um novo vírus letal que lhe diz o quanto as duas coisas conversam.

quarta-feira, 8 de abril de 2020

O VÍRUS, SEGUNDO G.



O coronavírus mete medo, esvazia metrópoles, põe de joelho líderes mundiais apressadinhos, transforma seres comuns em super-homens de tanto que eles aparecem na tevê, causa revolta em subseres humanos mimados com as facilidades de um tempo astucioso, muda hábitos embutindo a promessa de nos fazer melhores nem que seja um tantinho assim, enfim, enfim, faz e acontece sem nem precisar ser visível ou tátil – é como uma intuição, uma interrogação atrás da orelha, um átomo impossível de ser explodido no ar, na matéria, nos organismos.

O Brasil é um país, enorme, implacavelmente visível, de uma extensão impossível de ser totalmente percorrida por gente que nele nasceu e habita por 80, cem anos, agigantado, uma mancha ampla se espalhando nos mapas geográficos da Terra inteira – é até mais tangível do que gostaríamos, na medida em que aqui e ali dá vontade de esquecer que estamos dentro dele, totalmente dominados.

A instabilidade não é, literalmente, nem um vírus e muito menos um país, mas é, sim, as duas coisas – e ambas temos sido há 500 e tantos anos. É o nosso vírus mais endêmico, nossa doença mais teimosa, nosso traço mais distinto. O vírus da instabilidade contém tudo o que fomos e somos, embala nossa história, desenha nosso perfil, resume nossa tão fugidia quanto mitificada identidade nacional. Nós, tente não ficar chocado, somos como um vírus inquieto e mutante que no entanto não consegue sair do lugar, tamanha a nossa instabilidade atávica e crônica. E se você acha que estou exagerando aproveite que está trancado em casa – assim esperamos – e veja, ou como foi o meu caso,  reveja, o grande “Terra em transe”, o filme síntese da filmografia do baiano Glauber, aquele dionisíaco desfile das nossas fraquezas estandartizadas para todo o mundo ver e nós mesmos se estivermos dispostos, atentos e desprevenidos.

Assistir a “Terra em transe” num momento como este é bastante propício, não só pela série de eventos políticos que tanto nos tem diminuído ainda mais nos últimos anos, numa sucessão que dificilmente poderíamos acreditar duas décadas atrás. Com os reflexos locais da crise mundial do coronavírus, a contemplação em tela caseira das crises sobre crises com que Glauber Rocha compõe sua sinfonia cinematográfica de uma nação de brincadeirinha chamada El Dorado só ganha, cresce e se amplifica em êxtase e anticelebração. Um filme normal, em cenários habituais com personagens bem delineadinhos e cenas convencionais jamais conseguiria espelhar o que o Brasil foi e continua sendo – ao contrário do que chegamos a pensar, numa ilusão civilizatória tipo 3D só dez minutos e três governos atrás.



Era preciso um filme em que cada personagem fosse assim como uma flâmula rubra se entortando em dobras escandalosas ao vento do Aterro do Flamengo ou no alto do Morro do Careca para dar a dimensão exata de quem somos, assim como aqueles a quem nos submetemos ou aqueles outros a quem endeusamos e entregamos tudo, tudo, tudo. Uma cena de um impasse político com campanha de desestabilização, risco de renúncia e ameaça de resistência com armas não poderia, para ficar à altura dos dramas brasileiros, ser filmada assim num set que reproduz um gabinete comum, de secretário, prefeito, governador, deputado, senador ou presidente. Não: Glauber pega seu magote de personagens emblemáticos que representam cada um um naco maior de brasileiros – o empresário, o poeta, o político, o aproveitador, o oportunista, o povo cego, espoliado e também Jeca total – e os coloca num pátio aberto para as matas de uma encosta carioca. Neste palco amplo, aberto, suspenso como que sobre a história do Brasil inteira coloca tais personagens para interagir nesta ciranda enlouquecida por poder, mesquinharia e falta de rumos que tem sido o país em tantos e tão duradouros momentos – como agora, um ápice como outros que já tivemos.

Os balcões do Parque Lage, cartão postal do Rio de Janeiro, são um gabinete aberto das veias rasgadas a peixeira da vida brasileira. Ao longo do filme, solilóquios shakespereanos de indecisão, dúvida e fraqueza polvilham as ações – melhor seria dizer não-ações – do condutor do filme, o Paulo Martins dividido entre a política e a poesia, entre líderes com caminhos políticos diferentes, entre a empatia triste de Glauce Rocha e a efusividade em olhos verdes que é Danusa Leão. Neste empacado caminho, seguem ou param, avançam um pouco e tropeçam de novo o poeta e o país – quantas vezes já vimos esse filme de progressos curtos solapados por retrocessos permanentes no Brasil de fato, aqui fora da tela, seu reflexo vivo que só reforça os traços  aparentemente caóticos da construção glauberiana?

O vírus da instabilidade é a nossa doença de estimação que o coronavírus vem abraçar e beijar na noite da virada dos tempos. Se vamos melhorar depois dele, como se espera que aconteça mundo afora no freio de arrumação em que esta crise pode se transformar para quem  olha para ela com olhos de alguma esperança resiliente, os antecedentes não são os melhores. É o que nos gritam os panoramas do filme que, feito nos anos 60 parece novinho em folha e segue inventivo até quando usa a ser favor o descompasso entre imagem e som, numa época em que o áudio direto ainda era novidade ou luxo na indústria do cinema. A sonoridade de “Terra em transe” é um item à parte neste carnaval antropológico que emoldura nossas realidades fora de qualquer esquadro. Há sempre um barulho marcante ao fundo, instabilizando tudo, seja um tambor ou tiros de metralhadora, elementos tão importante quanto os crucifixos hipocritamente empunhados ou as bandeiras em rebelião de cores saturadas – e pouco importa que o filme seja em branco e preto, que nada mais colorido foi feito no país em cinema, nem mesmo quando atingimos o esperado padrão americano dos anos 90 em diante.



A câmera pendente, o enquadramento de risco, a luz estourada que tanto cega quanto esclarece, o interior de palácios que nos infla o falso orgulho e nos entrega decadentes e deslumbrados, o vasto mar em volta de uma terra teimosa e imutável, nossos vulcões que se não compõem a geografia explicita das matas queimam todo o nosso território por dentro, cozinhando ambições desmedidas, carbonizando possibilidades e espalhando a cinza sobre as novas camadas de matas que surgem, numa história aprisionadas em ciclos de Getúlios, Jânios, Jangos, Médicis, Lulas e Bolsonaros. Parece impossível escapar dessa troça permanente, este baile viciado, antifolia de derradeira festa que nunca é de fato a última e sempre se perpetua no tempo e no espaço, angariando novos organismos e novos infectados.

O coronavírus, esse que está aí fora e nos mantém presos aqui dentro, logo vai encontrar sua cura. Do Brasil de “Terra em transe” não podemos dizer o mesmo – apenas desejar o impossível.