terça-feira, 29 de novembro de 2011

De volta a São Bernardo



Até a noite de ontem, por volta das 23h, se me perguntassem qual seria, na minha opinião de cinéfilo bagunçado, qual o melhor filme brasileiro, iria chover no molhado: empate técnico, alegórico e emotivo entre “Deus e o Diabo na Terra do Sol” e “Terra em Transe” – possivelmente com ligeira vantagem para o primeiro, já que foi visto pela primeira vez como deve ser todo grande filme, na tela gigante de um cinema, enquanto o segundo só chegou aos meus olhos curiosos via cópia em VHS que, mesmo assim, deixou-se procliticamente embasbacado diante de suas imagens numa tevê Phillips de 14 míseras polegadas.

“Deus e o Diabo”, não. Esse veio num pacote completo – e se gasto um parágrafo aqui para descrever pela milésima vez suas circunstâncias é porque situações marcantes têm total permissão para se tornarem recorrentes. Assisti a “Deus e o Diabo” em idade singular, 18 anos, na tela gigantesca que era montada no Teatro do Parque, em Recife, para exibições em dias sem espetáculo cênico. Fui com minha turma do primeiro ano de Jornalismo da Unicap, a Universidade Católica de Pernambuco. Saí completamente atordoado da sessão, tentando colocar ordem naquele vendaval de idéias, ilustrações, simulações, teses e antíteses que o filme oferecia, para além de sua beleza plástica construída em meio ao aparente caos em que se constitui a escrita cinematográfica de Glauber Rocha. “Deus e o Diabo” foi um rito de passagem, uma missa cultural bem no início do que seria minha vida adulta. Sou eternamente e intimamente grato a quem ou o quê, ou quais variáveis me levaram àquele teatro para ver àquele filme naquela noite.

Agora, aos 45 anos do segundo tempo, as circunstâncias naturalmente não têm o mesmo encantamento daquela tenra idade. Mesmo assim, se a gente estiver com a juventude interna prontinha para mais uma aventura é bem possível topar com outra novidade que nos tira o chão, esse piso cultural onde a força da mediocridade insiste em nos manter presos – e quem entende o que estou falando sabe o quanto é preciso resistir a essa outra forma de gravidade. Foi nessa condição que, entediado entre as prateleiras da locadora da 104 Sul, aquela que deixa você ficar com o filme duas semanas em casa, encontrei a cópia em DVD de “São Bernardo” – o clássico até então quase inacessível de Leon Hirszman.

O livro mesmo eu só li há pouco mais de quatro anos, quando meu filho Bernardo ainda estava na barriga da mãe, Rejane, e a gente, com o apartamento em que morávamos em obras para receber o novo habitante, passava uma temporada na casa do casal amigo Plácido e Marleide. Fazia um calor desgraçado em Brasília nesta época e lendo “São Bernardo” parecia que eu estava na própria fazenda, hospedado na secura existencial de Paulo Honório, aquele universo tão conhecido por que veio do interior, adocicado pela presença de Madalena, pelo menos enquanto sua beleza não ia murchando internamente à medida em que seu marido e proprietário lhe subtraía as flores do espírito.

Todo esse prolongamento de detalhes desnecessário sobre o momento da leitura do livro tem uma explicação que o alumbramento diante do filme, na noite de ontem, só reafirma: “São Bernardo”, livro e agora sobretudo no cinema, é algo tão forte que não dá pra falar dele, ou deles, sem reconstruir o entorno do leitor e do espectador. É o tipo de livro e do filme que mexe com a sensibilidade de quem toma contato com eles, que altera o estado de consciência – sobretudo o filme, com aqueles planos de que falo daqui a pouco. “São Bernardo”, tomado assim puramente, como se fosse possível deixar de lado as escolas cinematográficas, parece um experimento a meio caminho entre o cinema e as artes plásticas. Glauber, desconstruindo Corisco nos lajedos de um chapadão sertanejo, colocando Othon Bastos para girar sobre a própria loucura da realidade nordestina, era um realizador teatral usando o cinema como suporte. Leon, iluminando como um renascentista a expressão de Othon Bastos na mesa tosca da fazenda São Bernardo, ou fazendo Lauro Escorel lamber com sua câmera de Van Gogh despido de flores as duras encostas do sertão, era um artista plástico usando a tela do cinema como plataforma de uma vernissage sobre o Brasil.

E ainda há o adereço singular da música de Caetano Veloso, que vai contornando os desenhos agudos do filme com um lamento entre gutural e rock and roll – como um aboio tocado às avessas que acentua ainda mais o estranhamento íntimo de cada cena. Se “São Bernardo”, o livro, tem a mais ascética prosa da literatura brasileira, nada mais compreensível que “São Bernardo”, o filme, tenha a mais limpa das fotografias da nossa cinematografia. Aquela padrão visual que catequiza mais quando mostra menos, mas sempre compondo muito. Se brincar, “São Bernardo” é visualmente tão impactante que não é nem mais cruzamento de cinema com pintura, mas uma inédita fusão de teatro com escultura fixada em celulóide. José Dumont, o ator, diz no seu livro-depoimento “Do Cordel às Telas” (Klecius Henrique, na série Aplaudo-Perfil, Ed. Imprensa Oficial) que a marca do cinema brasileiro é imprimir densidade e poesia junto com as histórias que conta. Parece estar falando de “São Bernardo”. Um cinema, como diz ainda o ator, que o público americano nunca vai entender, por não estar aberto à complexidade. “São Bernardo” é denso, poético e complexo (tente não se intimidar com a amostra no trecho abaixo).



Tem uma performance tão propositadamente engessada na sua tensão interna de atores, situações e fotografia, que no extremo soa como o mais natural dos filmes. Cinema “natural”, pra quem não lembra, é como eram chamados os primeiros documentários nos primórdios dessa arte-indústria. O que não era natural era ficção: e os planos dos camponeses, possivelmente reais, enxertados ao longo do filme de Leon Hirszman fecham essa conexão entre real, encenado, artificial e natural.

Não há nada mais natural do que o fictício Paulo Honório debruçado na sua mesa tosca, braços semicruzados e olhar fixo na câmera – ou seja, no espectador inquirido pelo ator. Ali há um momento de intersecção de todas as variáveis deste nosso cinema tão variado, rico, pobre e conflituado: Othon Bastos está olhando pra você e lhe contando mentalmente suas tormentas internas, admitindo que o que mais lhe dói não é saber que errou com Madalena, com os empregados e com os homens que matou. O que mais lhe dói é saber que, tendo nova oportunidade, faria tudo de novo, igualzinho.

O que mais incomoda essa criação suprema de Graciliano Ramos é saber que, por mais que queira, ele é incapaz de mudar. É a fala-síntese de um país filmado por meio de um seu personagem. É ficção e é natural. O que mais me dói é que não sou capaz de mudar. Aí estava, no contexto da época, um slogan brasileiro que o tempo, finalmente, vem tratando de corrigir. Assim como uma terra em transe infrutífero, como um terreiro habitando tanto por um Deus miserável quanto por um Diabo em farrapos, também fomos aquela São Bernardo condenada pelo obsessão de possuir terras, animais e pessoas.

Eis porque, desde as 23h de ontem, quando pra relaxar do trabalho tirei meias e calçados e botei o DVD no aparelho pra rodar, quando me perguntarem agora qual o grande filme brasileiro, encontrar-me-ei mesocliticamente em palpos de aranha indecisa. Mas nada como encontrar um novo marco cultural aos 45 do segundo tempo.

segunda-feira, 28 de novembro de 2011

Pra cá do Egito (umas 5 pirâmides)



O lançamento do aeroporto de São Gonçalo, no RN, é muito importante (é mesmo: o negócio dele é o transporte de cargas de uma economia à altura, e não o de gente fugindo do apagão de estimação); a operação policial que botou João Faustino na cadeia (depois ele foi transferido pro regime do hospital semi-aberto, mas isso é outro papo) também; e a vida de nova rica de Griselda também é de suma relevância, mas hoje não há assunto que me interesse mais do que o Egito.

Sim, o Egito. Por que a cara de espanto? Por acaso você acha que o Egito não está à altura dos escândalos ministeriais brasileiros (olhai, pularam o Lupi no jogo de damas e agora tão querendo derrubar o dominó em cima da pedra do Negromente, digo, Negromonte). Pois fique sabendo que o Egito é um caso que deveria estar hoje nas bocas e nas mentes de todos os brasileiros. Especialmente daqueles que enchem os pulmões no tuite e quando botam o ar pra fora é assim como se derrubassem mais da metade dos freqüentadores da rede social com um vendaval de correção política, ética e probidade que sai da frente. Ah, se as timelines soubessem...

Mas, enfim, e porque danado o Egito interessa a nós brasileiros nesta segunda-feira sem graça, sem ministro perigando cair nas próximas 24 horas, com a novela de Griselda bem no meio – aquela fase que sem reviravolta e como tal sem emoção – e ainda por cima com Dilma em Natal lançando a pista de longa distância de São Gonçalo, tão de longa distância que parece que nunca vai ficar pronta (mas vai, ah, vai)? Ocorre que o Egito, o distante Egito que hoje mesmo vai às urnas em eleições parlamentares, está sendo governado, desde a revolta que derrubou seu Mubarak em fevereiro deste ano, por uma junta militar.

Não, você não se distraiu ou caiu num site sobre os turbulentos anos 60 brasileiros: é junta militar mesmo – e vai durar sabe até quando? Julho do ano que vem. Só aí os pobres egípcios, essa gente sem presença no mundo desde a morte de Cleópatra e seus apaninguados, vão pode eleger um presidente, um Lula, uma Dilma, um FHC, um Collor (ops), enfim, um presidente pra eles chamarem de seu, porque a gente sabe que ninguém vive só à base de pirâmide e tampouco de efígie, por mais intrigantes que elas sejam.

Então: com essa junta militar provisória que está mais para tríplice eternidade e uma eleição marcada por pequenos rumores sobre compra de votos, o Egito nos deixa – a nós, brasileiros – na inédita condição de dar lições ao mundo. Justo nós, que sempre estivemos na condição de aluno mal comportado, sujo e pobre no fundo da sala. Pois hoje, somos nós que podemos encher os pulmões – e fora do tuite, o que faz uma baita diferença – e dizer:

- Aí, egípcio milenar, aprenda com nós, que fomo descoberto onteontem, véi! Junta militar tem que ser mais passageira do que chuva de verão. E rolo com compra de voto em eleição, esquenta não, broder, é questão de ter paciência, sem deixar de combater. É o bastante ou vocês também tão aceitando um pitaco sobre esse lance de favela, APP e mobilidade urbana?

sábado, 19 de novembro de 2011

Lupilândia



Lupi. Cínio. O que não é Rodrigues, mas também é dramático. De todas as crises e pés na bunda ministeriais, este tem sido pelo menos divertido. Lupicínica crônica de uma queda anunciada. Orlando caiu ereto como uma dignidade traçada a régua. Alfredo desabou direto na lata, evocando Evaldo Braga com o seu “eu não sou lixo”. O da Conab, no fundo, nunca enganou ninguém. Jobim, neste cenário, foi como uma letra de bossa nova – desafinou. Lupi, não.

Lupi oscila do ministério como um quadro do Zorra Total, pra não exagerar na metáfora e lembrar do antigo “Balança mas não cai”. Uma hora, ele manda beijos. Outra hora, anuncia-se maior do que a bala que corre em sua direção – “não é qualquer uma que me derruba”. Sabe-se que o calibre do escândalo pode variar, assim como o da caneta presidencial, mas convém não esquecer a potência inevitável dos canhões de guerra, sobretudo as internas. Lupi vai do “eu te amo” ao “não me toque”, vaga entre escudos e afagos. E assim vai ficando.

Lupi, cínico? Para ele, antes o humor do tipo autodepreciativo do que o brio pseudodefensivo. Mas admita-se que a arte de fazer bravata em queda livre não é para qualquer um. Precisa de um grau de desprendimento que não combina com o mundo de aparências em que vivem mídia, ministros e mortais, incluindo os dispensados. Um jornalista da alta roda até disse no twitter que Lupi mastiga de boca aberta nas noites do Piantella. Não sei qual das duas atitudes é a que mais pega mal – fazer barulho comendo no restaurante do poder transitório ou denunciar isso na rede social. Sei que as duas coisas fazem parte do, chamemos assim, mundo Lupi. Lupi way of life. A república lupilândica que a banca de revistas quer porque quer que seja aquela em que vivemos.

BSB além do poder

Os níveis e desníveis da região do Buraco do Tatu, na área central da cidade.
Estacionamento do Anexo IV da Câmara dos Deputados, aquele que fica lotado às terças e quartas.
O túnel com esteira rolante que liga o Anexo IV ao Anexo III da Câmara dos Deputados. Um dos lugares mais fotografados pelos visitantes em Brasília, ao lado da visão externa dos prédios do Congresso e das Esplanada dos Ministérios.
No switcher do Câmara Hoje, na caverna da TV Câmara, por volta do terceiro subsolo abaixo da bacia virada pra cima do prédio famoso, colocando no ar mais uma edição do jornal. Para quem não teve o prazer de conhecer, o cara do Sopão é o segundo da esquerda para a direita.
Quase todas as lojas de discos fecharam, mas a Discodil permanece inpávida que nem aquele lutador de boxe, inclusive mantendo, como uma prorovação, sua antiga fachada onde se vê (clique na foto, amplie e confira) o inexpugnável "discos, fitas e gravadores". Recentemente ganhou uma reforma interna pra compensar. Lugar de achar boas pechinchas, como um "Kind of Blues", de Miles Davis, por 18 reais.
Você teve a impressão de que há um padre lá no fundo da foto? Levantando a hóstia ou coisa parecida? Num lugar que não parece em nada uma igreja? Nâo se enganou: isso aí é uma missa rezada numa das salas do corredor das comissões permanentes da Câmara. Não seja maldoso: também tem culto evangélico, em outro dia da semana.

terça-feira, 15 de novembro de 2011

O mundo é dos loquazes

Leio na revista Piauí que Lúcia Veríssimo aprecia muito quando o marido dá entrevistas. Diz ela que só assim tem a chance rara de saber o que ele está pensando. Claro que a Lúcia em questão não é a atriz famosa, mas a quase anônima mulher do escritor Luiz Fernando Veríssimo, esse sim a pessoa em questão aqui. Veríssimo, um ser humano que fala pelos cotovelos nos mil livros que publicou e publica, cada um mais interessante do que o outro, é um mudinho na vida real. Do tipo que não gosta de muita conversa. Do tipo cabreiro, que vive olhando a vida em volta mas guarda pra si as elaborações que essas visões lhe trazem. Veríssimo é o melhor exemplo de um tipo muito discriminado de gente, a "pessoa calada".

Quem não faz parte desse restrito e aparentemente inexpressivo grupo humano - uma gente que, por ter fama de falar pouquíssimo parece quase invisível no mundo loquaz em que vivemos - sofre tanto preconceito quanto as minorias, digamos, mais barulhentas. Gays, portadores de deficiência, negros, vadias e demais cruzamentos de todas esses agrupamentos têm por hábito botar a boca no trombone e, com isso, conseguem suas conquistas e diminuem o preconceito nem que seja no grito. Para os calados nada disso funciona: quanto mais discriminados, mais retraídos. Uma bolha de silêncio encobre este contingente humano pouco afeito às palavras - ao menos na forma primitiva, verbal, da boca pra fora - e faz com que, mais do que em qualquer outro caso, eles representem aquilo sobre o qual ninguém ousa falar. Nem eles mesmos, pra começar.

Faço parte desse grupo. Cansei de, adolescente, fazer longas viagens de carro de carona com pais ou parentes dos amigos, invariavelmente sendo chamado a "mudar de assunto" quando a viagem começava a parecer tão longa quanto meus silêncios. Calado passou a ser quase um xingamento - embora fosse apenas uma boa e representativa descrição da minha pessoa desde então. Mais à frente adquiri certa confiança que vem naturalmente com a idade e passei a falar um pouco mais quando havia pelo menos duas pessoas em volta (ou seja, em público), mas já era tarde demais: tinha ganhado a fama. E fama de calado é para sempre.

Talvez seja por isso que os calados escrevem tanto, ou pintam com avidez, ou produzem tanta música de qualidade ou, na ausência de qualquer talento artístico, tuitam tanto. É pra compensar a opressão dos loquazes, que não param de falar e não dão ouvidos a quem só consegue expressar via silêncio as ironias de um mundo que soa como auto-falante tocando bate-estaca.

sábado, 5 de novembro de 2011

Eu e o SUS, o SUS e eu



Muito antes do câncer, vem a dor de garganta. Quem não a teve? Antes da laringite adulta que pode indicar coisa pior, quase todo infante teve sua cota de faringite a implorar por atenção médica. O agora tão discutido – felizmente, embora por vias tortas – Sistema Único de Saúde ainda nem existia – sim, já houve tempos piores sem ele – quando fui atendido em uma unidade situada em suntuoso prédio na cidade de Campina Grande, grande Paraíba, para me ver livre do que os colegas da sexta série ginasial muito antes do aparecimento do CQC e de Rafinha Bastos, chamavam de “tosse de cachorro”.

Os médicos do bisavô do SUS – esse instituto que, quando implantado, teve pelo menos a ambição de oferecer atendimento universal, um tabu da era privatista atual – receitaram um remédio que quase matou o paciente. Mas efetivamente curou a tosse, embora tenha me garantido um trauma pelos muitos e muitos anos subseqüentes. Na impossibilidade de cirurgia para remoção das amídalas – o sonho dourado da minha mãe que sempre foi chegada a um bisturi – devido à fila medida em anos-luz de distância, receitaram-me o martírio de 15 injeções de Bezetacil (ou seria Benzapen que, noves fora o “z” ou o “s” e os detalhes médicos, em termos de dor e trauma, dá no mesmo?). O tratamento era já então de tal maneira traumático para o paciente de 12 anos que o médico recomendou aplicação de 15 em 15 dias, em braços alternados – atenção para esses detalhes, sem os quais eu provavelmente teria sofrido gangrena nos ombros e não estaria aqui pra contar essa história.

Era um tratamento desproporcional para a resistência física e à dor de um menino de tal idade. Mesmo com as injeções marcadas de 15 em 15 dias, aquele dia que ia me apavorando à medida que se aproximava no calendário e durante o qual, com toda certeza, aprontaria um escândalo ao ser arrastado por minha mãe para a farmácia. Mesmo sendo em braços alternados, e não havia outro jeito, porque além da incisão lacerante da aplicação havia a dor macilenta dos dias seguintes, quando o braço aplicado inchava como se houvera sido mordido por marimbondo caboclo. Pra efeito de informação, sei que hoje não se aplica essa injeção a não ser nas nádegas, mesmo em adultos – eu mesmo tive que relembrar o martírio há pouco tempo, felizmente em dose única. O fato é que sobrevivi, caso contrário não estaria aqui contando a história – detalhe: depois de 11 injeções, o tratamento foi dado por encerrado. Deveria odiar o SUS, pois não? Nem que fosse por um tipo de ódio que mistura aversão política com fracassos pessoais em nada relacionados com os tentáculos do poder público, como tem se tornado tão comum hoje em dia. .

Toda criança daqueles distantes anos 70 que de alguma maneira se arrumaram na vida adulta acabaram, naturalmente, nos braços de um plano de saúde privado no final do milênio e pelo novo século em curso. Como as coisas práticas da vida, é o tipo do processo que acontece quase sem que se perceba. Não lembro de ter contratado jamais um plano desses – embora não queira ter aqui a hipocrisia de afirmar que não o desejaria caso não tivesse um. Ocorre que no pacote profissional de cada emprego ele sempre veio como salário indireto, o que me livrou das horas de espera perdidas nos prontos-socorros públicos que, nós, classe média assentada ou ascendentes a essa condição tão bem conhecemos felizmente só por ouvir falar.

Mas a experiência prática não esgota nada, a não ser para quem tem a arrogância pequena de se contentar com a explicação mais fácil, rápida e aparentemente indolor – ou seja, infelizmente, para grande parte das pessoas (e o twitter está aí para provar isso na timeline de qualquer usuário). Para quem luta pra fugir desse grupo, há mais informações, circunstâncias, ponderações e curiosidades do que supõe o mero desabafo em 140 caracteres. Tenho colegas dos tempos universitários que fizeram da construção do SUS suas vidas – os mesmos que hoje fazem da tentativa possível de melhoria do sistema o motivo imediato de saírem de casa todos os dias. Com Guia Bezerra, conterrânea que não sabe quem é Arnaldo Antunes (chega a ser engraçado, mas a graça aqui é outra) de tão enfurnada que vive no mundo do serviço social associado ao atendimento de quem só tem o SUS para se socorrer ali na região de Canguaretama (RN) e adjacências.

É por meio desses colegas e da informação geral que circula por aí se você não restringir seu mundo intelectual à leitura distraída da “Veja” que qualquer um pode ficar sabendo que há áreas específicas em que o SUS é, sim, fera. Se o sistema é falho no atendimento geral e imediato do tipo virose tropical de verão – um papel que a rede privada, na falta de concorrência pública, vem assumindo, diga-se que já com certa negligência diante do consumidor adoentado – é sabido que ele tem sido também de excelência em áreas especializadas pelos quais os convênios particulares não se interessam, por questão de escala, em assumir. Convém lembrar que, antes do qualquer coisa, o setor privado de saúde é um ator econômico movido pelas variáveis próprias dessa condição.

Claro que há as questões gritantes na rede pública, como o salário médio de um médico em torno dos R$ 1.600 – um valor obviamente ridículo, injusto e desproporcional. Mas qual foi o médico que não adestrou na precariedade do SUS suas ferramentas de diagnóstico, seu estágio inicial, seu contato com o mundo real de vírus e bactérias que dizimam populações sem recursos antes de fugir para o ar rarefeito das clínicas e hospitais especializados que às vezes lembram mais hotéis do que unidades de saúde, inclusive no preço cobrado e na renda embutida no que deles extraem os grandes convênios particulares? O questionamento feito por meio do twitter sobre o ex-presidente Lula ter ido se tratar num grande e caro hospital e não numa unidade do SUS – que ele, numa evidente bravata de quem está por cima e respira bajulação por todos os lados, dissera ser “quase perfeito” – tem sua legitimidade. Mas me refiro aqui ao questionamento em si, isolando dele, como num procedimento laboratorial que nem todo mundo faz, deseja ou se importa em fazer, o víeis de preconceito social embutido na, vá lá, denúncia. Lula é questionado pelo que disse e deve estar sujeito a isso como qualquer um de nós, simpatizantes ou não de sua figura. O riso de escárnio está fora desse padrão – aí já estaremos no terreno aberto do apedrejamento movido por outros condicionantes.

Mas tão legítimo quando o questionamento público da sua bravata – desde, repito, que seja feita com o distanciamento que o preconceito social quase nunca permite – é também o questionamento do questionamento. Ficou confuso? Não é o caso: se qualquer brasileiro tem legitimidade para dizer que, se disse que o SUS era perfeito, Lula deveria ter recorrido a ele e não ao Sírio-Libanês, também está coberto de legitimidade quem fareja nessa sentença um último desdém para com o presidente da República que veio do operariado, originário do Nordeste rural, proveniente do Zé Povinho sem título universitário e por aí afora. Senão, como disse o colunista do Correio Braziliense, por que não fizeram a mesma cobrança quando o José Alencar vice-presidente proveniente do mundo da indústria se viu às voltas com o combate dos múltiplos cânceres que afinal o levaram?

Razão pela qual o caso Lula-SUS-twitter revela-se um daqueles episódios emblemáticos que fazem todo mundo parar para pensar, um instante depois da piada pronta, sobre afinal de que se está falando. No mínimo, vai servir para abastecer – ou variar um pouco – a pauta de um jornalismo mais preocupado com a eloqüência da manchete do que com a informação real, deitada em berço esplêndido ou decadente à espera de um repórter honesto que a tire daquele lugar. Claro que, no final das contas, por mais que a reportagem recoloque as coisas minimamente no lugar – como dizem ter ocorrido no caso Lula-SUS – sempre se pode esperar o seu contrário do editorial assumido com esse título ou diluído no tom dos textos: o SUS não funciona, e pronto. E como, para além da denúncia, é conveniente que não funcione: quanto mais morre o sistema único de saúde, mais cresce o aparato privado da doença.

O que nos leva ao ponto mais límpido – e ocultado com lixo hospitalar – dessa discussão: não basta que o SUS realmente não preste em seu funcionamento, estrutura, salários e falibilidade total; é preciso destruí-lo na última mas importante e singular porção do que ele representa: a intervenção pública, geral e universal. O que me leva a declarar o oposto: se o SUS, pelo qual tanto se lutou, é hoje um fracasso total, é defensável até o último minuto pelo conceito que contém. Este conceito é uma promessa de democracia real no tratamento de saúde que, embora não concretizada no dia a dia dos ambulatórios (mas vista em muitos tratamentos especializados), merece ser salva dessa UTI mercantilista que nos tira o sangue, a sensibilidade, o raciocínio e até a sagacidade de um brasileiro que, francamente, já foi mais esperto em não se deixar enganar pelo primeiro twitter que lhe cai na timeline.

Tá certo: conceito não cura ninguém. Não mesmo, individualmente falando. Mas não há nação de pé sem um conceito mínimo de cidadania por trás para sustentar a dignidade do seu povo. Quanto à bravata, é de se concluir: daí ao SUS o que é do SUS e a Lula o que é de Lula, noves fora os preconceitos mais insuspeitos que andam aí na rede social ou nas ruas.

quarta-feira, 2 de novembro de 2011

Considerações em torno do Palhaço




Meu Holden Caufield foi Pedro Bala. Meu "Apanhador no campo de centeio" foi "Capitães da Areia". Meu Chaplin, Renato Aragão. Meu Lennon, Zé Ramalho. Porque no interior nordestino dos anos 70, tudo era mais lento. Mas não se engane, tudo era mais sólido. Tudo rendia mais, possibilitava muito - e desse tudo não se costumava desprezar nada. Era como a metáfora escolar preferida pelas professoras primárias da época, a da carnaubeira, palmeira da qual nada se perdia, dos frutos às fibras. Essas notas me chegam a reboque de filmes vistos recentemente, como a adaptação do "Capitães da Areia" pela neta de Jorge Amado, que traz de volta um livro fundamental e iniciático; e o segundo Selton Mello, "O Palhaço", onde a atmosfera é de certa urbanidade de hora do ângelus no interior do Brasil que transpira anos 70por todos os frames.

Naquela infância construída tijolo a tijolo, Woodstoock não chegava a ser nem uma lenda, John Lennon não habitava sequer este mundo - motivo pelo qual não podia mesmo ser mais famoso do que Jesus Cristo, este sim muito presente - e o criador de Carlitos só viria a ser divisado por trás dos óculos para correção de 3 graus de miopia no final do período, em tardes dominicais de uma tevê Globo muito comentada e a muito custo sintonizada - éramos súditos inocentes da massa falida da Rede Tupi de Televisão.

Tenho idade e história de vida suficiente para haver visto desfile de circo rodando as principais rua da cidade, anunciando a novidade instalada em terreno baldio generosamente iluminado logo mais à noite em município de raros aparelhos de televisão. Por isso me fala muito ao pé do ouvido o recado visual do novo filme de Selton Mello, onde tal desfile é reconstruído em toda sua humildade. "O Palhaço", a pretexto de afirmar a validade da vocação artística mesmo - e principalmente - nas circunstâncias mais desfavoráveis, é como uma novela literária em audiovisual que afaga com doce tristeza de inconformismo contido as várias faces do que havia naquele mundo. É como um "Bye Bye Brasil" atualizado e melancólico, menos alegórico e mais realista, embora vastamente poético, com a Caravana Rolidei travestida de Circo Esperança, buscando o cantinho livre que restou no coração abandonado pelo Brasil globalizado. Brinca com a noção de tempo e lugar para reafirmar sua tese intimista sobre aquilo que seria pedante chamar de identidade.

“O Palhaço” é sóbrio e silencioso. E muito menos desolado do que dá a parecer: ocorre que se apega à mais elementar noção de validade das coisas e da vida para dar a volta por cima sem recorrer ao espetáculo. Espana com delicadeza o supérfluo da vida – aquela porção de ruídos que mesmo o materialmente mais pobre ser humano sempre teima em portar – para deixar límpida a essência da pessoa. É pobre e pungente como aqueles desfiles que vi em pequeno, com um arsenal de tipos humanos semiliterários que em muito lembra os artistas de circo que, batendo estacas na montagem da empanada do meu tempo de menino, metiam-me um medo do qual nunca mais esqueci. É um filme sobre o nomandismo interior do ser humano, seja um palhaço ou um doutor. Uma cartilha em sépia, com manchas de café vespertino, bem do tipo que se bebia de tarde depois de tomar banho na chuva, sobre os percursos que nos são dados a percorrer sem que a gente entenda com total racionalidade o porquê.

A escritora e multiativista dessa vida que é Clotilde Tavares me emocionou de maneira parecida à que fez o filme “O Palhaço” quando escreveu no seu “A Magia do Cotidiano” (A Girafa Editora, 2005) – um falso livro de auto-ajuda, um guia para balançar nossas estruturas acomodadas – que toda família deveria sentir-se privilegiada quando nela surgir alguém com vocação artística. Porque o artista tem essa sétima sensibilidade que não vibra facilmente sobre a cabeça da grande maioria de nós. “Precisamos compreender que quando uma família tem o privilégio de abrigar um artista, deve acolhê-lo como uma bênção divina e cuidar dele, estimulando seu desabrochar com muito carinho. O artista tem uma missão especial, que é contribuir para aumentar a beleza do mundo. É um afilhado das musas, um ser especial, uma alma eleita entre as outras almas, e os deuses velam por ele”, diz Clotilde no seu livro, sobressaltando a nossa sensibilidade como as benditas armas da artista que ela própria é.

As palavras de Clotilde encontram uma tradução mais que perfeita na terça e última parte do filme de Selton Mello, quando enfim o palhaço em crise recoloca o nariz de bolinha vermelha sobre sua alma apascentada. O diretor consegue, a partir deste momento, uma ligeira mas rara mágica de encenação: o filme como que se ilumina por uma nova luz na recriação de cenas que a gente já viu antes em penumbras. Mas sem rufar de tambores, sem atabaques de chegada da cavalaria, sem monólogo para o Oscar. Com moderação, calma e até uma certa desconfiança que casa muito bem com o que vem sendo dito desde a primeira linha dessa conversa aqui.

Ocorre que, se há uma explicação para que Lennon, Salinger e Chaplin não conseguissem penetrar com força globalizada pelo sertão adentro nos anos da minha infância interiorana – e espero que ninguém leia isso aqui com nota de reserva aos artistas acima citados, mas como registro de assimilação diversa – é o fato de a desconfiança tática e incorporada ser uma marca de nós outros, que do interior viemos e quem sabe para ele retornaremos. Ninguém se fazia famoso da noite para o dia no sertão da minha infância: era preciso vencer um certo chega-pra-lá natural da platéia que se queria conquistar. Ou pelo menos falar o nosso idioma, em linguagem figurada ou não.

Não por outro motivo, fiquei sabendo sobre a existência de um moço de nome John Lennon na noite do dia em que ele foi assassinado, por sinal por um lunático portando o livro de Salinger na algibeira. Não fora a notícia bombástica numa edição de imagem chuviscada do Jornal Nacional e a conseqüente enxurrada de subprodutos noticiosos na televisão e nas capas da revista Manchete, o homem ainda seria um desconhecido, menos famoso do que, permitam o exagero, Frei Damião. Holden Caufield era mais anônimo ainda na única biblioteca pública onde se conseguia o “Capitães da Areia” que passava de mão em mão com seus poderes de nos fazer idealizar a liberdade das ruas metropolitanas sem precisar correr seus riscos. E o criador de Carlitos só habitaria as pupilas ainda nem um pouco fatigadas quando, morta a Rede Tupi de maneira tão peremptória quanto John Lennon, “O Garoto” e outras aventuras viessem a preencher nossas tardes dominicais diante da campeã de audiência de retransmissora recém-implantada.

Não é que as mudanças não viessem e os novos ídolos não entrassem de fininho na sala das nossas cabeças em formação. É que tinham de fazer isso assim esmo – de fininho, pra vencer a resistência natural de quem, tendo acesso a tão pouco, naturalmente examinava tudo com muito mais cuidado e, nisso, desfrutava mais. Como explica o geólogo e engenheiro Miguel Arrojado Lisboa, em ensaio publicado na revista “Semiárido”, editada pela Câmara dos Deputados (Agosto 2010) e que tempos desses me caiu acidentalmente à mãos.

“O sertanejo, como todos os filhos do deserto, é astucioso não só por necessidade de defesa do meio hostil, como principalmente para prevenir-se contra os régulos que o meio e o regime colonial implantaram e ainda perduram no nosso interior”, diz o texto que vasculha a geografia externa e humana da vida sertaneja, mais de uma vez empregando as qualificações de sobriedade, perseverança e espírito observador para caracterizar seu personagem histórico e social. Não sei até que ponto tudo isso mudou com a chegada do Google e do YouTube – e mudou, não há como. A questão é a medida, um parâmetro firmado ao longo da tradição e que, como tal, implanta memórias e réguas para o futuro mais inesperado. Na rebordosa do forró-lixeira e da democratização segmentada do que já nem vale mais a pena se chamar de comunicação de massa, parte daquele saudável pé-atrás já deve ter entrado na dança.

Mas ainda há de existir uma espécie de gente inocente no mundo de onde eu vim que só soube ontem quem foi mesmo esse tal de Steve Jobs – e é nesses últimos desinformados sem pressa que deposito as melhores fichas das minhas apostas na boa qualidade do ser humano do futuro.