sábado, 31 de dezembro de 2011

O dia mais útil do ano

Dia útil é algo associado a segunda a sexta, pagamento de conta, trabalho no piloto automático, estresse no trânsito ou no coletivo, aporrinhação, rotina, mesmice. Nada a ver com festa, fechamento de um ciclo e abertura de outro, comemoração, expectativa, encontro e reencontro, luzes à beira mar, noites de festa. Mas há uma data em que essas duas linhas paralelas que fazem parte da vida normal de todo mundo se encontram: um dia como o dia de hoje, o último do ano. Porque se você pensar bem, na verdadeira e gritante acepção da palavra, não há dia mais útil entre os 365 que compõem a volta que a Terra dá em torno do Sol do que este, o último dia do ano.

É útil porque é verdadeiramente – voluntariamente ou não,  conscientemente ou nem que seja por mera distração, quando você se pega pensando alto num canto do sofá – aquele em que todo mundo faz um balanço mínimo do que viu, viveu, acreditou e realizou ou não nos 364 anteriores. O último dia do ano é o dia mais útil do ano porque nele se reavalia tudo e também se projeta os 365 próximos – embora, claro, o plano seja uma espécie de PAC pessoal em que nem sempre as metas são atingidas. O último dia do ano é o mais útil porque, tanto quanto embalado pela subjetividade de uma auto-análise realizada na medida em que cada ser humano é capaz de praticar esse exercício valioso, é também marcado pela régua prática dos objetivos a atingir daqui pra frente – as tais listas de promessas feitas por escrito ou só no pensamento. E, em meio a tudo isso, na pausa do piloto automático do trabalho e – tanto quanto possível, do estresse do trânsito e do coletivo – a gente enfim tem tempo para reencontrar os amigos, até porque viajar para os lugares de origem é também outro ritual deste que, por todos esses motivos, não tem mesmo como não ser o dia mais útil do ano.

Claro: tem bebedeira, excessos, acidentes terríveis, brigas inevitáveis que explodem bem na hora em que a confraternização deveria estar em nível de nirvana festivo. Porque apesar de ser o dia mais útil do ano, o último dia do ano é também um dia humano como todos os outros. Uma coisa não exclui a outra. E embora o calendário romano, essa dádiva imperial que nos livra da angústia do tempo interminável, diga, decrete, determine com todo o rubro discurso do número em vermelho na folhinha que o último dia do ano é dia de festa, amor e amizade, não tem como arrancar deste breve percurso de 24 horas em que a Terra dá mais uma volta em torno do seu próprio eixo o conteúdo de humanidade nele contido. O jeito é assimilar tudo – até as rusgas eventuais – e não levar nada tão a sério, por sinal uma excelente receita para viver bem os próximos 365 dias do ano que está pra começar, tinindo de novo. Não tem jeito melhor de tornar menos inúteis os dias que nos esperam depois do réveillon de logo mais. O SOPÃO aproveita para desejar a todos os leitores um 2012 cheio de dias verdadeiramente úteis, como este aqui em que estamos festivamente envolvidos entre amigos, parentes, família e demais manifestações de um planeta chamado Humanidade.

sexta-feira, 30 de dezembro de 2011

Na latada do sabor



Bolo preto, bolo de milho, bolo de batata. Tudo isso pode parecer até banal quando se trata de quitutes regionais constantes de qualquer pacote de passeios de férias, seja organizado ou bagunçado. Mas se a comiçança for ao final da tarde nas latadas de palha que agora fazem parte do pátio da mais que rústica taipocaria de Tabatinga, no litoral sul de Natal-Parnamirim, aí então é aquela história do sabor que se reinventa e se renova.

A tapiocaria é antiquíssima - muito mais do que a gente imaginava. Ontem, comendo bolo com café por lá depois de um giro por Cotovelo e Camurupim comigo e com os meninos, Rejane viu numa placa - sim, a tapiocaria agora é enfeitada por um sem número de placas divertidas - que o "estabelecimento" existe desde 1959. E eu que pensava que em 1959, o ano que por um momento nem parece ter feito parte de algum calendário de verão, nem gente existia naquelas paragens. Estupidez minha, claro, que as comunidades litorâneas são muito mais antigas que a enseada que vira piscina natural ali pertinho, em Camurupim. Frequentamos - esse verbo aí decorre muito mais do desejo de fazer da tapiocaria um programa constante do que das possibilidades de isso acontecer de fato - desde os idos de 1994, pouquinho antes de a gente juntar as malas e ir aventurar em BSB citi. E cada vez que a gente volta aqui e dá um passeio pelo litoral sul tem que parar pra comer e comprar uma boa reserva de beijú e afins na tapiocaria.

A rusticidade a um nível quase mítico - vide o altar que ornamenta e protege o barracão onde os alimentos são feitos sobre um fornão gigante de tijolos - sempre foi uma marca da tapiocaria. Mas agora deram um trato visual no lugar que o tornou ainda mais curioso, interessante, bonito e divertido. De uma beleza ligada à simplicidade, com aquele beco de chão de areia onde, basta entrar, o visitante já se vê envolvido em outro clima. Nas plantas, repare, tem até cidreira, que você pode levar pra casa praquela chazinho providencial. Um pequeno espaço lateral meio cimentado meio recoberto por areia é o quadrado do forró - e falando em forró, a trilha sonora especialíssima, que vai de Luiz Gonzaga aos cantores do rádio dos anos 30 completa a ambientação. Que disneylândia que nada, bom mesmo é a tapiocaria cênica onde você se distrai com o clima de terreiro de litoral enquanto espera seu quitute ficar pronto - e na hora! E ainda tem o simpático cafezinho a 50 centavos que você serve a você mesmo, conforme o espírito da placa mais sugestiva entre todas aquelas penduradas entre paredes e árvores. Uma placa que dá vontade de arrancar e levar não para casa, mas para a vida: sirva-se você mesmo; nada de esperar pelos outros.

Micro-empresa de sucesso em tabuleiros de litoral é isso aí. Não precisa de mapa nem roteiro nem preço. É simples, bonito, delicioso, fácil de chegar desde que você esteja entre Tabatinga e Camurupim e tenha boca para parar o carro e perguntar a plenos pulmões a quem encontrar na beira da estrada: - Ei, onde fica a tapiocaria?

*Uma última dica: acesse o perfil de TiaoVicente no Focinho Book e veja mais fotos da tapiocaria mais incrementada da costa brazuca.

quinta-feira, 29 de dezembro de 2011

Uma história sobre João




O dia começou com uma nota de falecimento - uma entre muitas nos últimos dias. Mas, no caso em questão aqui, de alguém apenas conhecido, distante, uma autoridade dos velhos tempos, uma referência da Natal dos anos 80.

Abri o jornal - digo, liguei o tablete que Rejane me deu e que não canso de alisar - e vejo, no site da velha TN de guerra, a notícia do enterro de João Ururahy. Lembrei imediatamente da pequena história que passo a contar.

Final dos anos 80, provavelmente já nos primórdios dos 90. Tinha saído da TN e estava há pouco tempo ainda na sigla "adversária", o DN. Não se se já era o Dia da Consciência Negra, mas era algo assim numa época em que tudo aquilo que hoje se empacota no rótulo "politicamente correto" (na verdade, uma forma chula de desqualificar algo necessário e justo) ainda nem sonhava em existir.

Margarete, nossa durona mas feminina chefe de reportagem, pede uma matéria sobre a data que, de alguma maneira, fazia referência à raça negra. Ouvir pessoas de destaque sobre o assunto. Esperavam artistas negros, poetas negros, professores negros, alguma coisa assim, pra capa do então caderno de variedades do Diário. Matutei, matutei e liguei pra figura negra de maior destaque então no estado: João Ururahy, que além de publicitário e empresário da área, era naquele momento chefe do gabinete civil do então governador Geraldo Melo. Liguei e perguntei a opinião dele sobre a data ou algo similar. Ele atendeu e respondeu, na maior gentileza (talvez não exatamente comigo, mas com o veículo que eu representava e que na época era o mais prestigiado do estado).

Sem constrangimentos, sem meias palavras, sem sofismas. Simples, assim. Quando entreguei a matéria, houve espanto na redação. Do tipo: "Mas você ligou pra ele? E ele comentou o que a gente pediu?"

Yes, no problema.
Hoje essa história pode parecer banal e insignificante.
Na época, não.

Alimentei dali por diante uma simpatia distante e sem expectativa pela figura de João Ururahy.  E aprendi que o desdém involuntário diante dos preconceitos estabelecidos é a mais saudável das ousadias. Você comete, e nem se dá conta. Com sorte, outros notam e fazem o mesmo.

terça-feira, 27 de dezembro de 2011

À mesa com Clotilde (2)





À mesa com Clotilde (1)



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Num texto antigo do blogue que mantém na internet, a escritora e multiativista da vida inteligente que é Clotilde Tavares contou que gosta de presentear os amigos com artigos inesperados, surpresas impensáveis, acontecimentos de agendamento remoto – ou mesmo impossível. Já deve ter ficado claro que esses presentes não são livros, discos, roupas, brilhantes ou afins: são aquilo que, na falta de melhores palavras, a gente costuma chamar de “algo mais”. Pois esta semana, precisamente no dia 25 último, dia de Natal, logo depois daquele almoço delicioso que toda família prepara com os pratos remanescentes da ceia da véspera, ganhamos – eu, Rejane, Bernardo, Cecília, dona Isabel, dona Sebastiana, Sandra, Rafael, Raísa, Titina e Cezar, enfim, toda essa turma que está acampada para as férias de fim de ano num apartamento em Lagoa Nova, Natal-RN – um presente com essas inesperadas características, dado pela generosidade de Clotilde Tavares.

No tuíte, que é um lugar virtual dos mais propícios para a brincadeira com palavras e ideias, inventei uma coisa chamada “leitor bagunçado” para explicar a desordem das minhas leituras, que saem de um Stephen King vulgar para um Elias Canetti canônico num piscar de olhos, sem a menor cerimônia – e a maior das impaciências. Pois bem: o adjetivo bagunçado foi aprovado pelos seguidores – principalmente por Clotilde – e logo começou a ser ampliado para outras áreas da vida deste escrevente de blogue casual. No bate-papo com a escritora, quando ainda estava na trabalheira de Brasília, combinamos um “café bagunçado” para quando estivesse já de férias em Brasília. O café foi a desculpa para esse encontro que se deu, como disse, no dia de Natal, na cidade de nome idem, ótima data e local para uma prosa vespertina cujo cardápio de assuntos foi da inventividade do vocabulário paraibano até as aventuras de Clotilde nas ladeiras de Goiás Velho-GO.
O que eu não esperava era que Clotilde Tavares se tornasse a atração número um de uma tarde-noite no palco da sala do apartamento alugado por temporada para o deleite da plateia formada pela família inteira. Quando vimos, estávamos todos nas mãos da narradora envolvente, da atriz ocasional, da professora involuntária, da animação fervilhante de alguém que transmite vida a cada sílaba que pronuncia e a cada sorriso com que presenteia o mundo. Parecia até uma palestra privativa com que ela nos tivesse presenteado – eu falei, lá no início, que se tratou de um presente inesperado, e digo agora que foi uma dádiva natalina como nunca essa família bagunçada imaginou pedir a Papai Noel, quanto mais receber, de fato. Cientes da mágica desse encontro e desse presente, começamos até a elaborar uma metalinguagem sobre ele, brincando que se eu tivesse gravado numa câmera poderia vender nas lojas em DVD, com o sugestivo título – que, claro, foi Clotilde quem sugeriu – de “Enquanto Titina não vem”. Isso porque a parte mais animada da conversa, onde se tratou, entre outros temas, sobre a mancada da apresentadora sulista que lascou um “furico” na tela global, no jornal ao vivo, sem ter a menor ideia do significado nordestino da palavra, aconteceu enquanto a gente esperava Titina chegar para a família toda ir jantar com Tio Totinha. Mas esse já é outro capítulo dessas que tem sido, mal começaram, as mais divertidas férias dos últimos anos em Natal citi.

Em nome do bagunçado clã Vicente-Santos-Medeiros-Torres-e-agregados, aqui vai nosso muito obrigado, Clotilde. O próximo Natal vai ter que se esforçar muito para nos presentear com algo minimamente comparável ao nosso encontro na tarde do último dia 25. Feliz 2012 pra você e todos que sabem presentear a humanidade inteira com o prazer de estar com o grupo de pessoas mais à mão e saber cativá-lo como você fez com a gente.

E se você que está lendo isso tudo agora ficar com vontade de pedir um presente desse tipo no próximo Natal, arrisque aí. Não vende no shopping, não se anuncia na tevê e tampouco está na lista dos mais-mais do amigo secreto. Mas essa mulher, tanto quanto fascinante e espetacular à maneira dela, é também imprevisível, energética e intempestiva como convém às pessoas que vivem de verdade. E, sendo assim, quem sabe não atende ao seu pedido e surge plena na sala como uma aparição a reconfirmar a crença tão natalina no valor do ser humano? Pode começar a escrever a cartinha. 

Neurociência para todos


No filme “Como se fosse a primeira vez” (Peter Segal, EUA, 2004), uma dessas comédias ligeiras que você esquece tão logo saiu do cinema ou desligou o DVD player, repete-se o impulso narrativo clássico de qualquer filme padrão desse gênero: garoto encontra garota, para em seguida garoto perder garota e logo depois garoto tentar reconquistar garota. A diferença é que isso acontece todos os dias, já que a garota em questão – a Drew Barrymore a quem fomos apresentados quando ela ainda era uma criança no “E.T” de Spielberg – padece de uma enfermidade que a faz esquecer todo o seu passado recente, e principalmente o que se deu no dia anterior, e viver num eterno domingo que se repete ao infinito. Quem  mais sofre com isso – com a dose de sofrimento divertido que uma comédia romântica proporciona – é o comediante Adam Sandler, que tem de reconquistar todo dia a garota de sua vida.

E o que esta singela produção típica do cinema em série americano para home diversão pode ter a ver com algo  tão sério quando a neurociência que projetou para o mundo o paulista Miguel Nicolelis, este mesmo que está fazendo de uma experiência de intercâmbio ciência-sociedade no município de Macaíba, grudado em Natal-RN, uma amostra de como nada nesse mundo – e nem  mesmo no suposto segmentado mundo da ciência – tem que se isolado daquilo que o rodeia?  Acontece que “Como se fosse a primeira vez” contém, na sua insuspeita estrutura de roteirão padronizado de Hollywood, uma demonstração cabal – quase uma tradução involuntária – das teses defendidas por Miguel Nicolelis no livro “Muito além do nosso eu”, cuja leitura o SOPÃO acaba de encerrar. Se você nunca ouviu falar de conceitos como cérebro relativista ou interface cérebro-máquina não sabe o que está perdendo – mas se viu o filme aqui citado, já foi introduzido no assunto ainda que à sua revelia.

Todas as manhãs, Adam Sadler tem que se aproximar de Drew Barrymore, sabendo que ela vai tratá-lo como se nunca o tivesse visto, embora na véspera o casal tenha tido um típico dia de namorados em início de relacionamento. Depois de uma noite de sono, ela não o reconhece mais (porque não lembra nada da véspera, nunca) e ele sabe que tem de testar estratégias para reaver sua namorada desmemoriada. Ocorre que, quando ele tenta usar o mesmo truque que deu certo na véspera, nem sempre tem sucesso. Muitas vezes, fazendo igual, é pateticamente repelido, num efeito absolutamente inesperado. E então precisa inventar uma nova estratégia, num eterno trabalho de reconquista de alguém que se tem alguma lembrança dele é apenas nas reservas profundas do inconsciente.
Já o livro “Muito além do nosso eu” é ensaio científico capaz de cativar tanto leigos quanto iniciados – e não é fácil atingir essas duas distintas faixas de leitores -, que funciona, no nível da leitura, como uma grande narrativa épico-didática, algo que ora soa como uma aventura de adolescentes na floresta dos conhecimentos secretos, ora como um manual de biologia dado a figuras de almanaque. Lê-se este livro com a fruição de quem aprecia um romance de idéias, conceitos e experiências. Não é correto dizer que ele desce redondo o tempo inteiro: há densas páginas ocupadas por cipoais de informação prévia que o leitor atravessa captando os dados meio que na base da intuição (e aqui, o leitor iniciado, claro, não terá dificuldade alguma) para então, logo em seguida, inesperadamente, ser premiado com verdadeiras clareiras informativas, momentos de transcendência em que Nicolelis enfim explica onde queria chegar. É assim, de um júbilo narrativo e estilístico gratificante e impressionante, por exemplo, o momento em que ele narra – e a palavra é essa, porque no livro o cientista convive em paz com o excelente narrador – o instante em que, estimulando o cérebro de uma macaca no laboratório de sua universidade nos EUA, fez um robô se mover no outro lado do mundo.

E esta é apenas parte do prazer de atravessar um livro que fala sobre como o cérebro estrutura a visão que temos do mundo e de nós mesmos, de como o ser humano foi construindo ao longo da história extensões do corpo a partir do potencial dessa mesma massa cinzenta, como a gente chamava nos tempos de escola secundária. Sem falar na divisão básica que serve de patamar para toda a exposição, que se dá entre os chamados localizacionistas e os apelidados de distributivistas: de um lado, cientistas que insistem em estudar o cérebro como se fosse um produto segmentado, onde cada grupo de neurônios se especializa em uma tarefa e se recusa a executar outras; de outro, a escola em que Nicolelis se encaixa, que vê o cérebro com uma colméia de múltiplas habilidades em que, quando uma parte falha, outras assumem as tarefas remanescentes, num trabalho conjunto que, na prosa do cientista, tem muito a ver como a forma como os grupos humanos agem quando se dedicam à política democrática de massa em movimentos como... as Diretas Já, que marcaram o saudoso ano de 1984.
E o filme, rapaz, o que tem a ver com isso? Se você ainda não ligou os pontos, perceba que, imprevisto, surpreendente e dado a buscar alternativas a cada vez que é confrontado com situações que só na aparência parecem iguais, o cérebro humano reage de formas diferentes – uma vez que é movido tanto pelos estímulos externos quando por suas disposições intestinas de configurações flexíveis. Assim, a cada vez que Sadler aborda Barrymore, o cérebro dessa responde de uma maneira diversa, como a provar, no nível de um filme rotineiro e mediano, aquilo que as mais de 500 páginas de “Muito além do nosso eu” despejam graciosamente em nossos cérebros de leitores entretidos com os humores da mente humana.
Dito isso, é ler o livro, assistir ao filme, botar seu cérebro pra caçar as conexões, deleitar-se com os achados e tentar não se impacientar com as savanas de informações prévias de natureza biológica e química que antecedem as revelações que a neurociência de Nicolelis lhe entrega. Com aquela mistura inesperada de rigor científico com respiração humana, curiosidade libertária e incerteza fecunda.

segunda-feira, 12 de dezembro de 2011

Classes médias


Está virando moda puxar o saco da Classe C, promovida a nova classe média. Até a Veja já deixou de lado seu culto ao refinamento importado e se rendeu às verdinhas brazucas do novo segmento incorporado ao igualmente cultuado “mercado de consumo”. Quem quiser ganhar a algum aí nesse novo nicho pode muito bem colocar na praça um manual do tipo “como lidar com a Classe C sem passar ridículo”, porque como qualquer outro grupo social este que está, como se diz?, bombando na atual economia esta também tem seus códigos. E como foi um grupo visto com desprezo de cima pra baixo durante 500 anos, é natural que, na tentativa de se fazer simpático aos novos brasileiros em ascenção social e econômica, muita gente boa, sofisticada e com grau de refinamento aparentemente à prova de qualquer mancada acabe cometendo as maiores gafes.

A primeira delas é mostrar a nova classe média como um bando de deslumbrados que sai por aí consumindo como... isso mesmo, como quem nunca comeu melado e quando come se lambuza. Se os senhores da classe média tradicional que ainda detém os postos de trabalho conformado e sem iniciativa ou sensibilidade social da grande imprensa conhecessem minimamente os ex-pobres que estão virando novos-classe média saberiam que, mais do que qualquer outra classe – tanto os que estão antes como aqueles situados depois deles na escala da renda – a Classe C é apegada a contas, cálculos e possibilidades.

Se eventualmente há uma margem grande de endividamento – e há, basta passar no setor de pagamento de uma dessas lojas de departamento populares e ouvir as conversas na fila – é apenas um sintoma temporário de um experiência em curso. No longo prazo, ao perceber as brechas do sistema financeiro onde podem cair sem ter a quem recorrer, o novo classe média e ex-sem renda pensa cem vezes e refaz seu comportamento. Sem deslumbramento, sem essa síndrome de paquita da Xuxa que eles parecem exibir toda vez que são fotografados por um grande jornal ou uma revista de maléfica circulação nacional.

Tudo isso era para falar não da nova classe média atual, mas da antiga, tão impiedosamente examinada por... Arnaldo Jabor no seu já clássico ensaio cinematográfico “A Opinião Pública”. O filme dos anos 60 contém toda a voracidade intelectual do seu diretor ao examinar a classe de que ele próprio se proclamava já integrante, e a responsabilizava em grande parte pelo pesadelo político então implantado no país, com a “revolução” de 64 apoiada pela apatia comodista dos seus pares.

O tempo passou, a ditadura caiu, vieram Sarney, Collor, FHC e Lula, veio Dilma, e vendo hoje (pela primeira vez, no meu caso) o rigor do filme (ia dizer documentário, mas Jabor elabora tanto é que é incapaz de documentar o que quer que seja, para o bem ou para o mal) a gente se pega imaginando o quê, de fato – e honestamente, que é onde a coisa pega – Jabor pensa da classe média atual (e não me refiro aos “novos”, mas ao que restou dos antigos e sua tradicional pose superior aos recém-chegados). Todo o furor que o cineasta despeja sobre as salas de estar sessentistas da sua classe média de origem – com a denúncia da acomodação, da composição com o que há de pior desde que o sacrossanto lar esteja a salvo – parece se aplicar perfeitamente ao que restou dela nos nossos dias. E no entanto – aí é que está o busílis – Jabor converteu-se, com a passagem do tempo, com a trasição militares-Lula, no padroeiro da mesma classe que ele tanto criticou lá atrás. É como se ele dissesse hoje, como disse aquele outro tempos atrás, “esqueçam o que eu filmei”. (veja trecho do filme, abaixo)



Nada mais criticável do que o que sobrou da classe média tradicional – mas para ouvir essa crítica pela voz de Arnaldo Jabor, você precisa ver o filme que ele fez em mil novecentos e sessenta e tanto. Porque o Jabor terceira idade de hoje diz exatamente o contrário do que gritava o Jabor garotão dos tempos da contraculta brazuca. E o filme ainda traz outra surpresa: tirando a acomodação, a preguiça de quem não fez grande esforço para ter o que possui e o pouquíssimo caso com a situação do vizinho, aquela classe média sentada no seu apartamento de frente para o mar dos anos 1960 parece muito, em condições econômicas e dia a dia de café, almoço e janta com a nova Classe C que a história fez botar a cabeça na janela - embora ainda não de frente para o calçadão de Ipanema. Porque não convém mesmo idealizar o povão – respeito à parte. E aqui é um fenômeno que bate mais no lado humano da conversa do que na faceta sócio-econômica do painel. A nova Classe C é inquieta por natureza, mas o ser humano tem uma queda ascestral pela inércia. Convém estar atento.

Daí a importância de se abastecer a nova classe média de informação, educação formal mesmo, abrir seus olhos para o panorama inteiro em que está inscrita a sua tão demorada e até surpreendente ascensão. De outra maneira (e é alguém insuspeito quem nos ensina: Arnaldo Jabor, o próprio, embora o jovem e não o ancião da imprensa atual) esse segmento novinho em folha pode muito bem cair nas mãos  do que há de mais velho na política brasileira, virando de novo a velha opinião pública que o cineasta combatia quando era moço e hoje ajuda a compor com sua refinada velhice. Ah, sim, o filme é ótimo, compreendida a sua circunstância. O autor é que piorou muito.