segunda-feira, 31 de dezembro de 2012

O LIXO DE NATAL

   
Enquanto sobe o sol à flor do Velho Chico no sertão baiano e o dia se apresenta para mais uma jornada na estrada, uma imagem recorrente destes dias estraga o instagram engatilhado das férias. É o lixo de Natal, esta entidade do final de 2012 que parece estar em todos os lugares. Está em frente à prefeitura, está no ex-calçadão de Ponta Negra, está no JN, está no site de notícias. O Lixo de Natal virou quase uma autoridade, algo que se escreve com iniciais maiúsculas e que se deve cultuar como um patrimônio vívido e fétido das imprudências potiguares. Porque o Lixo de Natal é a realização mais material possível das conseqüências de atos coletivos praticados quatro anos atrás.
Por este critério, o Lixo de Natal precisa mesmo ser exposto, oferecido, imposto e reapresentado até o limite das nossas capacidades. É preciso que o cidadão comum sinta seu cheiro, que o comércio tropece nele em suas calçadas, que o empresário de turismo aspire cada molécula de fedor que ele espalha no ar. Porque todos esses – e muitos outros mais – contribuíram em momento diverso para iniciar o processo que daria origem ao estado atual das coisas. Nenhum lixo, por mais ordinário que seja – e o fato de ser ordinário é a mais pungente das prerrogativas do lixo, qualquer que seja ele – começa assim espetacular, em rede nacional e com insuportabilidade local: começa é com um reles montículo potencializado pelas forças que estão ao seu redor. Sabemos bem que forças são essas quando tratamos do nosso lixo político estadual e municipal.
Convém também lembrar que o Lixo de Natal, uma vez reinstituído em entidade pública de papel passado e mandato fixado, também se manifesta em outras áreas da cidade além de suas feições imediatamente políticas. E já que estamos todos torcendo para que se recolha em operação de emergência o Lixo de Natal antes que 2013 se inicie de fato, torçamos igualmente para que o caminhão da Urbana leve também nossa falta de ousadia, nossa preguiça mental, nossa babaquice deslumbrada, nosso interesse mesquinho, nossa imensa falta de auto-estima no bom sentido da coisa, que faz com que uns e outros insistam em nos chamar de província como a tentar uma forma intelectual de levitação acima do barbarismo geral do tempo e do lugar. Fora com o Lixo de Natal – o real, que desenfeita nossas ruas nesta transição 2012-2013, e aquele outro, que persiste no ar das nossas subjetividades mais escorregadias.
(Ibotirama, BA, 30-12-2012) 

sexta-feira, 28 de dezembro de 2012

O ESPELHO TARDIO DA BORBOLETA


Numa quarta-feira de triste memória, 1 de outubro de 2008, o SOPÃO DO TIÃO publicou o post intitulado "Borboleta". Este texto já foi republicado uma vez, quando a previsão fácil que se fazia ali começava a cair como uma ficha de telefone de antigamente na cabeça da mesma cidade que a transformou em triste realidade. Felizmente, daqui a poucos dias, este ciclo estará fechado - mas ele foi necessário, como destacou na época o jornalista Tácito Costa. Outra figura do jornalismo local comentava comigo: na posse, ela disse que seu primeiro ato seria "devolver a Prefeitura ao povo". Pois bem, o derradeiro ato que ela não realizará daqui a poucos dias por já não ter condições nem jurídicas de fazê-lo, será devolver a Prefeitura à cidade. 
Reli o post e constatei que nem vale - como imaginava que iria acontecer - republicar tudo. É espremer à toa um limão de água suja que merece mais é ser jogado fora (e tomara que o novo prefeito faça uma operação limpeza assim que assumir o cargo neste primeiro de janeiro, caso contrário os restos de tal limão serão mais um bagaço a sujar a ex-cidade do sol). Sobrevive, no entanto, o lamento do último parágrafo, que reproduzo abaixo:

"O importante neste momento é que você se convença da importância da mudança que vem aí. Se você achava que a cidade estava ficando estressada, abusada, nova rica e tão pedante quanto ignorante, não tema: o futuro imediato anuncia algo muito pior. E você precisa se adaptar, não é mesmo? Comece a treinar agora mesmo. Repita, olhando-se no espelho mais próximo: tudo vai ficar melhor porque eu sou linda como uma borboleta!"

quinta-feira, 13 de dezembro de 2012

TODOS QUEREM MEU VOTO. PREFIRO LULA (FINAL)




Marina está de volta e também quer o meu voto pra presidente da República. Talvez até tenha, dependendo de como este quadro todo que venho descrevendo aqui há duas postagens seja afinado. Neste momento tenho um pouco de pena de Marina Silva: acho que a candidata  perdeu o lugar no bonde da correção político-moral e neolacerdista pro Presidente Joaquinzão, que é muito mais enfático e emocionalmente midiático do que ela quando se trata de mostrar que, como é que diz? “tentamos com Lula, não deu certo, e vamos seguir adiante tentando de novo”. Não deu certo pra quem? Pergunte àqueles 30 milhões quando você cruzar com qualquer representante deles pelas ruas. 

Enfim, Marina era o novo em 2010 mas não o será mais em 2014: até em termos de raça ela terá um concorrente de peso, que é Joaquim. E enquanto ele fala grosso, bate o martelo na mesa e manda quem discorda arcar com as consequências, ela tinha aquela aparência frágil, aquele ar de Gandhi, aquela aura de espírito desencarnado incorporado nos umbrais dos conchavos brasilienses. Não dá pra competir, mas dá pra aliar: quem sabe os dois não formam um novo partido, um Partido Justicialista à brasileira, e saem em dobradinha? Aí até pode ser. Joaquim manda, Marina obedece e o país diz amém. É votar e arcar com as consequências.

Razão pela qual, quanto mais eu rumino esse cardápio em evidente formação, mais meu voto diz não a todos acima. Todos querem meu voto, todos querem mandar no Brasil. Nenhum quer ser mandado pelo país. Só Lula agiu assim, teve a grandeza de entender seu papel histórico e se fazer pequeno diante das imensas necessidades  nacionais represadas e tentar dar vazão a ela em meio ao cipoal político que as coalizões e as oposições de sempre – parlamentares ou não – lhe colocaram, e continuam colocando no caminho. Todos querem meu voto, mas ninguém me pergunta quem meu voto quer: e ele quer Lula, novamente. Se não der, vamos ver quem, sem entusiasmos por parte do meu título eleitoral, melhor se apresenta. 

 *Essa série de postagens foi escrita há três dias e sendo postada aos poucos: mal sabia eu que o precipitar dos acontecimentos levaria Lula a sugerir que pode, sim, se candidatar novamente à Presidência da República, e não apenas ao governo de São Paulo, como já foi sugerido. Mais um motivo pra eu reafirmar: todos querem meu voto, mas meu voto quer Lula antes de qualquer um.

quarta-feira, 12 de dezembro de 2012

TODOS QUEREM MEU VOTO (2)




Todos querem meu voto pra presidente da República. De uma hora pra outra, uma falange de candidatos surgiu na bruma da eleição distante. Todos querem mandar no Brasil; nenhum aparenta querer ser, de fato, mandado por ele – menos aquele outro, tão espancado politicamente pelos mandões de até outro dia que nem sei se fica bem pronunciar o nome. E justo ele, este último, é o único a se curvar àquele derradeiro requisito.



Retomemos o raciocínio: Eduardo Campos quer meu voto também. Assim como Aécio, faz parte do grupo cuja candidatura decorre, antes de mais nada, de uma mera distinção hereditária. Aquele, neto de Tancredo; este, de Arraes – cumpra-se o dever cívico de validar o que o destino familiar converteu em sina histórica. Fora isso, o que credencia Dudu – como é chamado pelos primos lá em Recife – a ocupar o lugar que foi de FHC e Lula? Justamente a política de inversão de prioridades que fez este último, ao investir na região Nordeste como nenhum outro presidente havia feito, tudo dentro de um amplo pacote  de mudanças que resultou na ascensão social de 30 milhões de brasileiros antes negligenciados pelo poder central. Se o PIB do Brasil deu um pulo na era Lula, o pibão do Nordeste deu um salto maior ainda. Nesta brincadeira, Pernambuco foi quem dos que mais se saíram bem. E o nome de Pernambuco nesta outra brincadeira sucessória aqui é Eduardo Campos, mesmo que o netinho de Arraes tenha entrado recentemente na adolescência política e virado um rebelde com causa. Não importa: a origem da presença dele vem do mesmo Lula e do mesmo PT a quem vira as costas. E meninos mimados não dão presidentes obedientes ao que o país pede – dão o contrário, mandões emburrados que insistem em empacotar a nação no seu modelo de país.



Falando nisso, Presidente Barbosão também quer o meu voto. Por coincidência, o raciocínio aqui descrito para Dudu aplica-se inteiramente ao atual senhor do Supremo Tribunal Federal. Sem o entendimento do PT – e não só de Lula, embora sem a determinação deste as coisas talvez não tivessem acontecido – sobre a necessidade de multiplicidade racial, regional e social no Supremo, Joaquinzão não estaria lá. Nem ele nem nenhum outro negro que Lula poderia pinçar do sistema judiciário para democratizar pelo menos o visual do STF. Ocorre que o Presidente Barbosão revelou-se, diante das câmeras da TV Justiça e das imagens que ela cede para a grande mídia conservadora brasileira, o tipo do sujeito que não quer apenas poder; ele aspira ao superpoder. Ambicionar o pode é normal na democracia; todos os partidos e candidatos o fazem. Reivindicar o superpoder só é normal nas ditaduras; todos se prejudicam com essa neurose política. Se você quiser que vote em Joaquinzão pra presidente – da República, que no Supremo é tudo na base da indicação indireta. Mas, como diria o próprio, depois “arque com as consequências”.


(continua)

terça-feira, 11 de dezembro de 2012

TODOS QUEREM MEU VOTO (1)





Nunca antes na história deste país tantos quiseram com tanta antecedência o meu, o seu, o nosso voto para ser presidente da República. De uma hora pra outra, mal se encerrou a eleição  municipal, apresentou-se uma turba barulhenta de candidatos mal assumidos mas bem sassaricados querendo ser o nosso favorito pra 2014. Todos querem mandar no Brasil; nenhum quer ser mandado pelo país. O único que se curva a este último e vital quesito está na dele, apanhando como sempre, seja ou não candidato. Tomara que seja – é só o que está faltando, no melhor sentido da expressão.



Dilma quer meu voto, mas para tê-lo com algum entusiasmo de minha parte precisa rever urgentemente seu political way of life. Menos Jorge Gerdau e mais política pública, por favor. Precisa deixar um pouco de lado essa falácia de competência técnica e gerencial – com que, por exemplo, os tucanos da era FHC nos engabelaram só enquanto puderam, antes de entregar um país falido ao sucessor do PT – e se concentrar nas demandas do Brasil Popular Brasileiro. Quando, há poucos dias, um grupo de agricultores do Nordeste, falidos pelas dívidas com o BNB e pela seca que atinge a região, fizeram um piquete em frente ao Palácio do Planalto o governo primeiro chamou a polícia e só depois recebeu uma comissão. E isso porque ainda reside no Palácio do Planalto um rescaldo da era Lula chamado Gilberto Carvalho – que sem ele, sei não. Mas precisava, candidata Dilma, chamar a polícia pra impressionar aquela gente tão brasileira que é  o nosso pequeno agricultor familiar? Tudo bem que eles fecharam uma via importante de Brasília: mas várias delas não são fechadas quanto há encontro de chefes de Estado e a cidade não sobrevive do mesmo jeito? Grandes ruralistas autoritariamente inadimplentes certa vez encheram o trânsito da capital de máquinas e tratares e não foram incomodados. E mais: se empresários calibrados têm dificuldade para conseguir uma audiência com a presidenta, se líderes políticos reconhecidos raramente conseguem, o que resta a um punhado de agricultores familiares falidos para chamar atenção de um governo que veio de outro onde eles tinham  visibilidade do que fechar o Eixo Monumental no seu ponto mais filmado, vigiado e ambicionado?  Fosse ainda ocupante do endereço aquele de quem se falou no final do primeiro parágrafo, teria o presidente talvez interrompido uma cerimônia e descido ao encontro dos seus iguais brasileiros lá embaixo no asfalto quente do dezembro  brasiliense. Dilma tem suas fixações em energia, grandes obras, planejamentos estratégicos e cobranças diárias, mas sem afinação com as demandas comunitárias da pequena população cá embaixo não terá meu voto entusiasmado não.



Aécio quer meu voto: acabou de ser lançado na disputa, meio na base do empurrão dado por um FHC que, por pouco, nisso de chacoalhar o que está quieto, não cruza a linha da deselegância – logo ele. Dizem que o problema de Aécio é ser desconhecido em qualquer parte do país que não seja Minas. Também não é assim: Aécio é do time de Dudu (o dono da próxima postagem, o número 2 desta série, aguardem) ; daquele pessoal que acha que merece a presidência da República por questões de pura genealogia. Caberia a nós, eleitores cá de baixo, apenas protocolar o que o destino  meio familiar e meio histórico do clã determinou. Neto de Tancredo, é minimamente conhecido pela geração que entrou  na juventude no final da ditadura. Aqui no meu canto, acho que Aécio tem sim um problema de desconhecimento: mas não em relação a ele e sim a Minas sob ele. Pouco se diz, pouco se noticia, quase nada se sabe sobre o governo de Aécio em Minas. Dessa perspectiva, Minas parece assim uma Albânia Tucana de onde nenhuma informação relevante sai. Sabemos de cor e salteado as mazelas de São Paulo, seus PCCs, seus secretários enriquecidos pelas licenças de construção, seu sistema de transporte travado etc etc etc. Também somos especialistas sobre o Rio de Janeiro, sua mistura de paisagem paradisíaca com indústria cultural latejante e o eterno embate entre morro e asfalto, zona sul e baixada, com os crimes que de tempos em tempos ocupam as manchetes. Sabemos ainda bastante sobre as máfias do Espírito  Santo, um estado menor mas ainda assim estrelado no mapa da região Sudeste. E de Minas, o que sabemos? Nada vaza de lá. Onde está a imprensa mineira, quem a controla, por que ela não consegue eco no restante do Brasil? Que noticiário é este que não se realiza nem se propaga? Questões programáticas relacionadas ao ideário liberal-aloprado dos tucanos me impedem por princípio de entregar meu voto a Aécio, mas este silêncio informativo que apenas parece secundário termina por cimentar minhas negativas diante do candidato do empurrão.

(continua no próximo post)

segunda-feira, 3 de dezembro de 2012

Rose


 
     Rose está em todas capas de revista. Rose está em todas as manchetes de jornal. Rose está em todas os cafés políticos, todas as rodas de conversa. Rose está no texto de todos os colunistas. Rose está em todos os faces e tuites. Rose está nas paradas. Rose está nas baladas. Rose está em todas as barricadas. Logo, logo Rose estará nas faixas, nos protestos, nas ondas e ondas e ondas de muitas vassouradas. Rose estará no potcast da rádio-notícia, Rose estará nas retrospectivas do ano, Rose fará tremer o chão nas máscaras mais originais do carnaval. Rose e Joaquim, os mascarados, dançando lado a lado.

     Mas justiça seja feita a Rose e a quem gravita em torno dela: porque Rose também está em todos palácios, sejam federais,  estatuais ou municipais. Rose está em todos os partidos. Rose está em todas as igrejas políticas. Rose é uma tradição do poder, um emblema simbólico do tudo-pode. O vigésimo-terceiro ministro ou secretário que existe mas, para que possa ter valor de face, nunca deve mostrar o rosto. Rose é a que é sem nunca se deixar ver, mas sempre se dando por conhecer. Rose é a eminência rosa sem ideologia necessariamente professa, o elemento humano que desorganiza a harmonia das propostas, o erro que turva – mais à sua maneira torna mais rica – a biografia do candidato a mito. Há a Rose discreta e a Rose ostensiva; a Rose Mary e a Rosa Maria; a Rose que se pretende influente e a Rose que opera na sutileza elegante – não importa, Rose é sempre Rose, independente do patrono e de sua filiação programática (quando houver, claro).

     Rose é como aquela profissão: sempre houve, sempre haverá. Essas permanências que desafiam a cultura, a revolução sexual, a sífilis e a Aids, a minissaia e até o ficar.

     Apenas, nunca antes na história deste país convinha expor a Rose. Agora, é conveniente. 

quinta-feira, 29 de novembro de 2012

A economia nos tempos de Joelmir




Num tempo em que o jornalismo não era tão prisioneiro do formalismo e da uniformidade sufocante de hoje, Joelmir teve o bom gosto de salpicar estilo no gênero que parecia menos permeável à literatura - a coluna de economia. Brincou com palavras, amaziou-se ao vocabulário, provocou a linguagem para tornar não só mais didático - o que, não sendo tão difícil, também não é tão comum - mas sobretudo mais interessante e vívido o que seria um distanciado, frio e  antipático noticiário de economia. 

Joelmir fazia a gente entender as complexidades da terminal economia brazuca dos anos 80 e ia além: colocava sabor na leitura de setenças que nunca se rendiam às falsas facilidades do economês. O país podia estar à beira da falência, mas a coluna chegava a soar divertida sem ser cínica - outro desafio para os estáveis tempos atuais (os tempos são estáveis, apesar de toda a torcida contra). Nas mãos de Joelmir, os números viravam imagens por meio das quais as maxidesvalorizações do período soavam menos assustadoras, mais compreensíveis e muito, mas muito menos banais do que o quadro econômico em si tendia a deixar entender. 

Joelmir posando pra "Veja" em casa, teclando sua Olivetti portátil numa mesa no jardim, à beira da piscina: nada menos constrastante com o mau humor ressentido da crônica econômica atual. De um lado a cortesia ilustrada do velho comentarista; de outro os dentes afiados e a semigargalhada engatilhada no esgar da comentarista de rádio, jornal e tevê. Talves a era FHC e as inversões de prioridade econômica trazida por Lula tenha deixado Joelmir na poeira do vídeo, como apenas um rosto a mais na baixa audiência da Band de até um dia desses. Talvez a explosão de mídias, o rugido indistinguível de tantas vozes disputando a nossa limitada atenção tenha empastelado seu recado em meio a tanto barulho e nem tanta mensagem.

Há também o fato de a economia ter se tornado de tal maneira um assunto definitivo da vida do país que começamos a nos achar, nós próprios, especialistas no tema. E assim a gente foi deixando de vê-lo e de ler sua coluna já subtraída do impacto daqueles anos de quebradeira asssumida e brasileiridade constrangida. Tomara que sua saída de cena chame atenção para este fato: nossa sede de novidade vai colocando novos tijolos no muro e quanto se vê não se enxerga mais tudo de interessante que ficou para trás. De outra maneira, o Joelmir clássico de ontem seria uma referência mais forte para o volúvel jornalismo econômico de hoje, devastado pelas imposições de gabinete de uma editoria política viciada.

Sem falar na poesia improvável que o jornalismo econômico de Joelmir continha e emanava.

quarta-feira, 28 de novembro de 2012

Trilhas de "Thriller"




O disco é de 1982, mas aqui abaixo do Equador ele tornou-se um chiclete sonoro absoluto em 1984. Eu fazia o primeiro ano de Jornalismo na Universidade Católica de Pernambuco e até hoje os mais fragmentários ruídos sonoros contidos em "Thriller" me lembram as ruas do Recife. A avenida Conde da Boa Vista em condições bem melhores para uma caminhada do que hoje, o cine São Luiz exibindo futuros clássicos como "Era uma vez na América" (Sérgio Leone), a rua do Progresso ainda abrigando o casarão vizinho à Cultura Inglesa onde eu morava (foi demolido e no lugar foi construída uma clínica médica), a simpática rua da Soledade que me levava direto ao campus da Unicap, todos esses cenários ganham uma musicalidade pretérita que vai de Michael Jackson a Beth Carvalho, cujos sambas também fizeram muito sucesso no carnaval daquele 1984. 


Tantos anos depois, o caso do disco "Thriller" - o mais vendido da história da música; 109 milhões de cópias no mundo todo - é emblemático sobre fenômenos como mídia saturada, qualidade que se mantém, como se firma um clássico e o que apenas vira pó na estrada difusa da memória. Ocorre que o disco desse Michael Jackson mais musical do que perfomático foi executado à exaustão nas rádios, retratado até o limite do insuportável em capas de revistas, explorado até onde foi possível no lugar e da forma que desse. A gente esquece, mas houve uma "febre Michael Jackson" naquele 1984 que não fica nada abaixo de certa "gripe Michel Teló" de ocorrência recente. A diferença, claro, é a música (como diz o slogan de uma bela rádio brasiliense que toca quase exclusivamente temas instrumentais).



O fato é que em meados de 1984 ninguém mais aguentava ver e ouvir Michael Jackson. Ele e as faixas de seu "Thriller" estavam em todas as rádios, todas as esquinas, todos os canais de tevê, que ainda eram poucos mas nem por isso menos insistentes. O negócio era tão sério que uma capa do jornal "O Pasquim" - que ainda existia e circulava naqueles idos - estampou a seguinte manchete: "A bunda de Michael Jackson". O notável, o impressionante - mas compreensível quanto se limita tudo à música e à dança do artista - é que "Thriller" tenha sobrevivido a tudo isso e se tornado o disco pop-clássico que é hoje. Demorei a comprá-lo: depois de anos ouvindo as faixas gravadas em fitas k-7 dispersas, só fui adquirir um exemplar completo em formato de CD, de que posso usufruir a qualquer momento, longe da agonia publicista daqueles tempos. E constatar: como é enérgica a saga sonora da faixa título, encerrada com aquela gargalhada que virou um dos ícone dos anos 80; ou como é bom marcar no pé a batida de "Billie Jean" - que Caetano Veloso recriaria em roupas sonoras brasileiras num de seus discos extraídos de shows de voz e violão -; ou ainda cantorolar em inglês de baiano o dueto com Paul MacCartney em "The girl is mine". 


Na torrente comemorativa pelo aniversário de lançamento de "Thriller", o site da livraria Saraiva juntou uma série de videos feitos a partir do repertório do disco. Está lá um dos mais tocantes, incisivamente sensíveis, momentos de recriação das faixas que juntas viraram o "Thriller": é Miles Davis interpretando "Human Nature", com aquele trompete que parece estar realizando uma delicada cirurgia nos órgãos da sensibilidade do ouvinte, enquanto distende, amacia, penteia e expande o andamento da canção. O video é o oposto da velocidade ansiosa do videoclip da faixa título, mas juntas, a agilidade de uma e a serenidade da outra dão uma ideia de como um disco pode deixar de ser apenas um chiclete insuportável para se tornar parte da trilha sonora de uma época. Basta que seja bom - e isso nem sempre é fácil.

Clássicos do Sopão


Já cansei de dizer que se o Rio Grande do Norte tem um hino informal - e, sendo assim, muito mais próximo ao coração potiguar - há de ser "Royal Cinema", de Tonheca Dantas, músico cujo próprio nome já é uma melodia sentimental-seridoenses por si só. A valsa de Tonheca é o nosso clássico absoluto, nosso canto wagneriano adaptado aos penhascos rajados que demarcam o país do Seridó dentro da nação potiguar. E se faz ainda mais forte, evidente e clarividente quando executada pelo sax de ouro Ivanildo - por sinal, outro nome bastante comum na região, embora o músico aqui destacado, me informa J. Epifânio na contracapa do LP, seja um cearense bem adaptado ao lugar de Poti. 

Retomando: se "Royal Cinema" já é, tocada por qualquer outro, uma bandeira de emoção fincada no peito seridoense-potiguar, ganha estatura ainda maior quanto interpretada  por Ivanildo. E quando a gente vai além e ouve o LP inteiro onde Ivanildo gravou este petardo emotivo de alta concentrabilidade musical, aí então as palavras escapam como as notas que o toca-discos vai depersando como pétalas de papel no ar. O disco inteiro, com sua icônica capa laranja, é um marco da memória, uma liga intuitivo-emocional que congrega toda uma comunidade por um lado, e você com você mesmo por outro. 

No lado A tem esta "Siboney" que o video do YouTube destaca e outros clássicos do bolero latino. Mas tem também a "Rosa" de Pixingiuinha.  E você (digo, eu) quando ouve pela primeira vez a versão de Marisa Monte com arranjo de Ryuichi Sakamoto fica se perguntando porque aquilo soa tão próximo, sem conseguir lembrar, pelo acúmulo e desgaste do HD da cachola, que conhece a música desde muito antes, via Ivanildo, esse nosso didata informal, educador musical cujos discos, por sorte, eram muito populares nas casas do Seridó quando o seu universo musical ainda era uma galáxia confusa em busca de alguma harmonia. E este lado ainda tem "Nada além", de Custódio Mesquita pra coroar a audição. 

O lado B começa animadaço com a gafieira buliçosa "Kazarão", da lavra do próprio Ivanildo, seguida por uma seleção de sambas aberto por um Ataufo de boa cepa ("Leva meu samba"). E fecha com "Royal Cinema", o que faz você virar o disco e ouvir tudo de novo, aprisionado na singeleza maneira e no sentimento dolentemente puro contido nas notas do sax de ouro. Grande disco, vastas memórias. Um clássico definitivo para o Sopão e para muito mais gente, acredito.