domingo, 24 de junho de 2012

O canto dos cristais urbanos



Uma visita a um dos monumentos arquitetônicos e paisagísticos menos badalados de Brasilia e o que podem dizer seus oráculos emudecidos pela passagem do tempo histórico

Quem vê toda noite na tevê a arquitetura moderna de Brasília servindo de moldura para a crônica político-parlamentar do país, ou ainda se considera impactado pelas curvas em flor do  prédio da catedral de Niemeyer, e assim pensa ter uma visão total do diferencial urbano da capital brasileira está repleto de impressões mas incompleto de possibilidades. Como toda cidade minimamente turística, a exposição selecionada e exacerbada de seus cartões postais mais consagrados entrega para o conjunto dos brasileiros que não vive aqui em Brasília uma visão editada, um videoclipe sempre interessante, mas naturalmente nunca tão desconcertante quando a sensação de estar de fato aqui, entre uma curva do arquiteto e um tronco de cerrado, vendo-se ora refletido nas vidraças do Palácio do Itamaraty ora escorrendo pelas calhas do Palácio da Justiça.

Artifício e natureza bruta, vastidão e concentração, verde e cinza, aspirada das distrações urbanas que caracterizam qualquer aglomerado humano Brasília é esse espelho de contrastes extremos. Mas nem o Palácio do Congresso nem a catedral ou mesmo o menos conhecido interior azulado de vitrais da Igreja Dom Bosco é capaz de compactar tudo isso e, por um efeito de síntese, projetar no ar na forma de uma perplexidade tão vívida que parece construída em argamassa de concreto essa condição de cidade de pedra rígida, arvoredo torto e ar semirrarefeito de umidade contada em gotas, senão em partículas. Brasília é muito mais Brasilia aqui: no espaço situado entre a Praça dos Cristais e o prédio do Quartel-General do Exército, no Setor Militar Urbano, região noroeste sob as asas do Plano Piloto.

Nada a ver com o fato de a cidade ter sido a moradia dos generais que se impuseram sobre o país durante a longa noite de conhecimento geral. Ou antes: tudo a ver, mas aqui a gente espana do ar o eventual determinismo histórico tão necessário à compreensão total da praça e do QG – cuja suntuosidade inicial obviamente decorre da megalomania do projeto dos militares em tempos durante os quais tal gigantismo foi moda governamental de Brasília a Moscou, num corte estilístico indiferente à temperatura ideológica de cada qual nas febres da guerra fria. Acontece que, tomada hoje, visitada nestes dias, usufruída num passeio com as crianças neste além-ano 2000, a leitura, ainda que com a pulga histórica pilheriando suas ironias ao pé do ouvido, consolida uma percepção muito maior, que inclui elementos outros como o cinema de ficção científica, a natureza em crise nas consciências ambientais confusas, o uso do espaço urbano colocado em questão por enchentes e desabamentos, os novos rigores do clima redesenhando o solo urbano, a potência da cidade- espetáculo e a própria força da imagem num mundo saturado por elas.

 A Praça dos Cristais e o conjunto formado por ela e o QG do Exército, com seus jardins milimétricos, seus espelhos d’água de beleza quase metálica e seus salões cobertos por arcos de concreto recortado em curvas moles sugerem aos poucos visitantes que aparecem por lá numa tarde de sábado os frames vivos e em 4D de um filme de Ridley Scott, como podem fazer pensar sobre o falso controle do homem ecológico reunido em cúpulas presidenciais ou de mesa de bar sobre a força da natureza incontida – porque tudo nos jardins que Burle Marx projetou para a praça emana beleza, mas também domínio do homem sobre o verde. Outras conexões que a mente faz enquanto o olho mira o cristal de concreto no centro do lago e a pele sente o vento da vereda recriada entre as pedras da praça pelo jardineiro número um do país: a extensão de tudo, a escala do projeto, é de uma natureza quase escandalosa quanto se pensa as dimensões do mundo urbano atual, como moradias cada vez menores e espaços que, se maiores, são tanto mais inacessíveis à renda do cidadão comum.

A Praça dos Cristais, para além da beleza impactante por diferente com que se apresenta de cara ao visitante, consegue ainda nos distrair por algumas horas, ou enquanto se estiver lá, sobre as possibilidades que teríamos de manejar os elementos do clima e assim garantir a tranqüilidade do nosso cosmo, garantindo à atmosfera em volta o mesmo caráter bucólico que envolve o lugar e suas circunstâncias. E aqui chegamos ao elemento mais imediato, superficial mas potencialmente mais impactante, que é a primeira imagem do pai QG com seu obelisco fálico e seu domo feminino, casal arquitetônico que pariu o filho-praça ali em frente, com sua infância de verdejantes jardins e voadeiras garças. Este elemento é a visão em si, a imagem tão elaborada em componentes que realizam a plástica da beleza pelo contraste dos constituintes: a praça e o quartel, esquecidos dos roteiros turísticos rápidos que garantem ao visitante conhecer Brasília em 1 hora, são o tipo do lugar que recupera para olhares cansados de tanto ver a força da mera observação. Brasília se refaz aqui, livre das bacias que já não conseguem mais lavar os olhos saturados de quem não mais se incomoda  com os desvãos da arquitetura moderna; se é que ainda se dá conta dela.

Um lugar onde a opressão do espaço aberto pode causar algum tipo de dependência nos olhares mais sensíveis. Onde Alberto Moravia, o escritor-viajante, reconfirmaria todas as impressões que teve da Brasília inicial de quando visitou a cidade nos anos 60. Um recanto de natureza tão domada que causa inveja e faz jorrar interrogações na mente apressada do militante ambientalista. Um quadro adornado por lagos artificiais cuja água tanto se presta ao projeto do paisagista que sugere uma matéria metálica no limite da artificialidade. Onde até a garça – de verdade! – engana o primeiro olhar do incauto visitante: posta no alto dos falsos cristais de pedra, elas sugerem à primeira vista o aspecto congelado dos anões de jardim, mas logo se lançam em vôos e produzem um novo instante de perplexidade para o deleite do visitante.

Juntos, o QG e sua praça minam cada pedaço da expectativa que você construiu ao sair de casa ou do hotel para conhecer este espaço tão pouco badalado. Os clichês sobre militarismo, Brasil Grande, anos 70, repressão e resistência, cultura e natureza caem todos diante da estranha beleza de se estar neste lugar recontextualizado pela passagem do tempo. O grandioso tornou-se tão raro de lá pra cá que reencontrá-lo obriga o enfastiado das eras superplanejadas a repensar escala e estética.Por mais estridentes que tenham sido – e foram – não chegam aqui os gritos dos torturados pelos mandatários que tiveram a quase exclusividade de desfrutar do QG e sua praça. Chega, é verdade, um tipo incomum de silêncio que talvez contenha aqueles urros, remixados pelo túnel de tempo que percorrem para alcançar o presente.

Barulho mais forte vem mesmo é dos soldados armados no entorno da praça, afinal, não esqueça, estamos no Setor Militar Urbano. Pois se a grandiosidade do conjunto, passados tantos anos, pode não mais emular a violência do projeto militar que gerou esse lugar, a mera presença viva e só aparentemente sutil dos guardinhas tem tudo para trazer os anos 70 de volta. Mas logo o vôo de uma garça vai lhe arrebatar de novo e delicadamente do cerne da história para o sofá da arquitetura – e a recontextualização fará o resto. Porque, superadas as bases das condições que permitiram e estimularam a era dos generais, restaram esses museus que funcionam hoje como documentos de beleza inusitada, com sua praça que parece suspensa no ar dos acontecimentos (esteja lá e verifique como todo o noticiário político atual vira água soprada no ar da sua mente indiferente) e seu quartel-general adornado por intervenções arquitetônicas que lhe dão a impressão de estar dentro dos dutos de uma flor de melífluo concreto.



Por diferente, por aberto tanto ao céu quanto à terra – este é um dos tantos lugares em Brasília onde o liliputiano habitante se sente diretamente em transição entre o solo e o firmamento – , por respingar um verde contado no encardido geral do concreto, por abrir rombos derrapantes onde o convencional só prevê linhas retas, por reconstruir em matéria artificial e humanamente controlada as veredas do Grande Sertão não muito longínquo de Guimarães Rosa, por tudo isso o QG do Exército e a Praça dos Cristais podem ser uma subestimada síntese pouco conhecida dos mistérios urbanos e audiovisuais de Brasília. E você ainda pode dar migalhas de pão dormido aos peixes do lago, esses seres ainda mais inocentes do que nós das transformações históricas, econômicas e sociais que se passaram ao largo das pedras da praça.


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