quarta-feira, 15 de agosto de 2012

Golpistas



Cada época tem o vilão mais conveniente aos interesses de quem vive de mercantilizar o ódio coletivo


Numa era muito distante, quando um certo José Dirceu não incomodava uma mosca e portanto não tinha motivos para ser tratado como inimigo público número um do país, a moda era odiar os cirurgiões plásticos. Nem os políticos conseguiam tamanha unanimidade ao contrário quanto eles – até porque, naqueles primórdios, o sistema não permitia que houvesse políticos na completa acepção da palavra e no inteiro exercício de suas funções. José Dirceu, aliás, fez o que pode pra mudar isso – mas essa é outra história, com outros personagens. A figura que nos interessa aqui é a do cirurgião plástico, autêntico ou pirata, que assombrou o país nas páginas da revista Manchete ou na escalada do Jornal Nacional. Pois esta semana, ele voltou.

O país que tinha o afamado Ivo Pitanguy tinha também Hosmany Ramos, seu oposto e seu inverso. Tínhamos o médico e o monstro: o primeiro era modelo internacional da medicina estética brazuca e o segundo o golpista que se infiltrou na alta sociedade – veja como o tempo muda as palavras, há quanto tempo você não lia essa expressão “alta sociedade”? – carioca para conquistar prestígio e ocultar sua sina criminosa. Pitanguy nunca deixou de ser clássico, mas Hosmany foi parar na cadeia, de onde, decorridos tantos anos, já deve ter saído. Como nunca mais esquartejou uma cliente com seu bisturi ensandecido, também nunca mais ouvimos falar dele.

Até porque a fila anda e tempos atrás o posto de Hosmany foi tomado por um desses novatos estabanados como costumam ser os iniciantes sem sorte. O nome dele é Marcelo Caron, sua área de atuação fica entre Taguatinga, no Distrito Federal, e Goiânia, com passagens por Campinas, onde especializou-se em golpes financeiros contra o Sistema Único de Saúde. Mas a especialidade mais – digo, menos – reconhecida desse Caron eram  lipoaspirações que faziam a cliente entrar na mesa de operações e de lá passar direto à UTI, com prazo de uns dias para ser transferida ao cemitério. Caron era médico, de fato -  mas não tinha a especialização em cirurgia plástica, hobby pra ele e desgraça para quem o procurava em busca de um tratamento. Acabou tendo o registro de médico cassado e submergindo sob uma montanha de processos criminais.

Esta semana, Caron reapareceu, pasmen, numa blitz policial lá em Canguaretama, RN. Descobriu-se que ele, oficialmente preso em regime semiaberto, “mora” na praia de Pipa, ali pertinho, onde é até dono de uma pousada. No momento da prisão, estava realizando essa atividade tão prosaica pra qualquer um que não é nem cirurgião plástico e muito menos condenado por matar suas pacientes: voltar para casa. O mundo está cheio de pessoas impressionantes, seja por suas qualidade ou seus defeitos, porque tanto uma coisa quanto outra é capaz de chocar pelo menos à primeira vista. Pois tanto quanto Caron voltando pra casa, impressiona o caso do policial rodoviário que o identificou apenas por lembrar das notícias sobre ele na televisão. Caron foi parar na delegacia, mas, soube-se depois, poderá, sim, continuar morando em Pipa, mesmo sendo um preso em regime semiaberto condenado em Goiás. Isso lembra ou não uma novela de Gilberto Braga no horário nobre?

Antes que alguém solte um indignado Brazil-zil-zil, convém lembrar que a ressurreição de figuras como o cirurgião plástico golpista no país da impunidade servindo de roteiro para histórias que nem a ficção criou com tanto apuro não é privilégio aqui de baixo do Equador. Se fosse assim, não haveria casos igualmente bestiais como o de um certo Paolo Gabriele, um sujeito cujas intenções são uma grande interrogação e cujo procedimento vale por um livro de  Dan Brown. Por estes dias, ficamos sabendo que este italiano – que vem a ser, pela função que ocupa, talvez  a mais suspeita pessoa do planeta, pois mais do que um mordomo, é o próprio mordomo do papa – surrupiou uns documentos que comprovam fraudes não na banca de bicho de Carlos Cachoeira ou nos contratos da Delta, mas no próprio Vaticano, tá bom pra você?


Pra gente ver como, sem perceber, perdemos tempo se formos dar bola ao noticiário geral que tenta colocar uma emoção que seja no julgamento do tal mensalão. Enquanto a velha mídia quer provocar torcicolos nos nossos pescoços fazendo a gente olhar na marra para a modorra que tem sido o plenário do STF, temos aí – nesta mesma imprensa, que não pode tudo – histórias como a de Marcelo Caron e Paolo Gabriele, exumando velhos fantasmas dos tempos em que o culpado só podia ser o mordomo, Hosmany Ramos era o fim e também o máximo – e quando um certo José Dirceu estava fazendo o caminho inverso, saindo da clandestinidade que um tempo sem política, no sentido legítimo da palavra,  o obrigou a abraçar.

domingo, 5 de agosto de 2012

Um novo Tom Zé no terreiro



Também sou do clã - inclusive por questões de origem - do missionário teórico-musical Tom Zé, além de fã de Barretão (veja post anterior). E a edição do Globo deste domingo também traz boas novas sobre o bardo assimilado (e também desprezado, embora agora repescado) pelos bianos maiorais do recôncavo. E as tais palavras que estão no jornal são do maioral maior dentre eles. Caetano Veloso bota a viola no saco e mais uma vez se penitencia diante dos farrapos geniais de seu estranho conterrâneo expelido à face da terra entre os pedregulhos da Bahia-sertão. Leiam comigo:

"Como ali, na tese do 'lixo lógico' (é o novo CD de Tom Zé, que a coluna caetaniana analisa) surge a informação séria que se sabe cômica em seu deslocamento. Como pedir cachaça no avião (em 1968: hoje, cachaça, confirmando o profeta Tom Zé, é assunto de presidente dos Estados Unidos). E o tom com que os aspectos sensatos e os aspectos histriônicos são alternada ou concomitatemente revelados é a força artística de Tom Zé. Aqui mostrando-se rica como nunca, nas menções meio ocultas a nomes, timbres e cadência da época. E de agora. Talvez a intensidade com que isso acontece se desva ao tema ser a Tropicália. Diferentemente da bossa nova, a Tropicália é coisa de Tom Zé. Não só ele fez parte do movimento: ele realizou as obras mais ambiciosas no sentido de caracterizá-lo. É como se eu, Gil, Sérgio Dias e Rita Lee tivéssemos cada um partido para algo livre do projeto inicial: Tom Zé ficou com as questões centrais. E a biografia da Tropicália que ele apresenta nessa nova obra tem muito de autobiografia. (...) Essa versão radical da Tropicália como o choque entre uma mente pré-aristotélica e a terceira revolução industrial é fascinante."

Barretão reconstruído



Quem me conhece saber: gosto de Barretão e seus filmes, controvérsias sobre a produção e as mil e uma divisões do cinema brasileiro à parte. No perfil escrito para a edição deste domingo de O Globo, Cora Rónai - ou Cacá Diegues, a ambiguidade do texto não permite identificar precisamente a autoria - tem a felicidade de resumir o nem um pouco pacato cidadão. Leiam comigo:

"Luiz Carlos Barreto foi uma das maiores estrelas jornalísticas de 'O Cruzeiro' -  lembra o cineasta Cacá Diegues. "Ele chegou ao cinema justamente pelo texto (o roteiro de 'Assalto ao Trem Pagador') e pela luz (a fotografia de 'Vidas Secas' - em destaque na foto que ilustra o post). Cearense acariocado, filho de Assis Chateaubriand com o Partido Comunista, de Macunaíma com Padim Ciço, vagou pelos estádios do mundo atrás de Garrincha e Nilton Santos, cobriu cruzeiros chiques e tumultos proletários, flagrou Marilyn e os Kennedy, pescadores e pecadoras, até encontrar, numa longuíqua praia baiana, o cineasta Glauber Rocha com uma câmera na mão e muitas ideias na cabeça. Uma delas era trazer o sertanejo cosmopolita para o seio de uma revolução, chamada Cinema Novo. Não contente em apenas aderir, Luiz Carlos se tornou um de seus líderes mais importantes. O resté é História."

quarta-feira, 1 de agosto de 2012

Ode a Roberto



O grande escândalo do mensalão é a figura de Roberto Jefferson, sozinha. Diante de sua empáfia permanente, desde a era Collor até os dias de STF atuais, a gente é tentado a imaginar o efeito que faria uma espetada de agulha fina na bolha daquela soberba em forma de ser humano. Quando ele era balofo como um factoide dos anos 90, ficava ainda mais fácil: parecia que, ao mínimo atrito entre a ponta do alfinete e a epiderme plastificada da criatura, ouviríamos aquele fuuuuu que anima as crianças e o voo ao infinito e além daquele resto de pele que reside por baixo da vaidade de Roberto Jefferson.

O tempo passou, ele silenciou o plenário da Câmara dos Deputados denunciando o mensalão e, evidentemente, aquela soberba de animador de auditório político de terceira continuou sendo mais e mais inflada. Tanto quanto tenta de todas as maneiras aspirar a substância do que quer que seja José Dirceu, a grande, velha e igualmente soberba imprensa brasileira trata de manter cheinho como um balão de aniversário a figura de Roberto. E ele, claro, faz a sua parte: evoca, como um titereiro de encomenda feita a si mesmo, figuras de outras áreas que lhe confiram a credibilidade audiovisual necessária ao show. Roberto pretende ser algo assim como o Galvão Bueno da política, o Faustão do voto, o Alexandre Garcia da eleição. Mais remotamente, um Flávio Cavalcanti dos bons costumes.

O julgamento no STF vai ser aproximando e Roberto surfa na onda que ele mesmo levanta, com o auxílio fanático da mídia antipetista. É uma foto atrás da outra, um facebook informal retocando a sanha quase evangélica e semipop do autor da denúncia. Até a doença é solidária a essa acepção – enquanto Roberto ignora que o verdadeiro câncer, o tumor que se infiltra e vai necrosando tudo por onde passa, não é o mal em si, mas ele  mesmo. Roberto é essa reprodução incontrolável de células de vaidade e dano político, um germe plantado no coração de um processo de oportunidade e amadurecimento do país que ele quase  conseguiu deter. Milhões de brasileiros teriam sido prejudicados, mas não há uma palavra boa como mensalão para tornar essa evidência algo facilmente assimilável.

Ode a Andressa



Andressa Mendonça é linda, cara, arrogante e suja. Mas o que mais dói é perceber que, espanada de suas circunstâncias eventuais como todo o escândalo em que se meteu com o maridão da hora, o Cachoeira, ela é quase a composição perfeita do ideal de aparência e comportamento em vigor entre certa parte do mulheril atual. Andressa parece um genérico de todas as meninas recém-formadas nos mil e um cursos de Direito em vigor nas faculdades do país. Lembra um avatar das milhares de neoburguesas que consomem o que podem e o que não podem nas lojas de grifes das dasluzes autênticas ou copiadas desta mesmíssima nação. Evoca a neomiss Brasil, a garota de aparente bom-tom e bom gosto – aquela que jamais vai citar qualquer coisa menos ofensiva do que o “Pequeno Príncipe” quando se pergunta qual o seu livro de cabeceira. Andressa Mendonça, pois sim, não está sozinha – e aí é que reside a sua, digo, a nossa, danação coletiva.

Diante de Andressa Mendonça, esteja ela usando pulseiras que custam muito mais do que o rim imprestável do crack man da primeira esquina ou personalíssimas algemas de prata encomendadas a um desingner da PF, a tentação imediata é sair por aí em busca de algo o mais natural possível. Um belo exemplar de moça bicho grilo, por exemplo – o que não vai ser nada fácil. Em frente às fotos de Andressa na banca de jornais, o cérebro busca automaticamente uma compensação naqueles tempos em que mulher bonita tinha alguma coisa a ver com transgressão. Você vê Andressa e pensa em Leila Diniz, é inevitável.

Confrontado com a maneira doce e meiga com que Andressa tenta chantagear um juiz federal – e, ao fim das contas, o faz, mesmo depois de denunciada, como o leitor pode conferir agora mesmo no site da revista (argh) Veja – não há com não sentir saudade dos tempos em que o cúmulo do atrevimento em termos de mulher e comportamento era uma grávida pop star brazuca ir à praia de biquíni. Ou soltar uns palavrões, também. Agora tente o amigo imaginar essa bonequinha de luxo abrasileirada que é Andressa deixando escapar um termo de baixo calão de sua boquinha desejável. Definitivamente, para mulheres como Andressa, desacato à autoridade – ou a quem quer que seja, como o povo brasileiro, a quem ela julga que Cachoeira não causou  mal algum – é algo que se pratica com classe. A mesma classe que explica o fato dessa mulherada que a tem como espelho involuntário andar por aí com bolsas de 5 mil reais a unidade: nada mais proporcional a quem pode, a qualquer momento, precisar dispor de 100 mil pra pagar uma fiança que a permita sair da delegacia para entrar na loja mais próxima e mais cara. Volta, Leila!