quarta-feira, 19 de setembro de 2012

Revoltas de setembro



 

Inesperadas conexões entre o clima no Planalto Central e a explosão de crises que incendeiam as paixões políticas, aquecendo a já tórrida seca brasiliense
 
Folheando uma enciclopédia de História de papel como não se usa mais editar nem folhear, esbarro numa fotografia que, a despeito de ter sido feita há praticamente 50 anos, parece ter a data de ontem, ou de hoje, ou de amanhã é até possível dizer. A imagem é esta aí acima que ilustra o texto e só de bater o olho a gente identifica nela os anos de chumbo que nos marcaram a História a ferro, tortura e balas. O curioso é que há na impressão causada por esta foto um engano ligado ao tempo histórico – e ao mesmo tempo uma permanência ocasionada pelo tempo climático.

Explico: a solidez do tempo climático vem do fato de, tantos anos depois, Brasília viver ainda sob a mesma atmosfera envolva em brumas quentes daqueles incendiários tempos. Estou falando do clima propriamente dito também, é preciso ressaltar. Ocorre que, a despeito da primeira – e falsa, daqui a pouco se verá – impressão histórica, há na fotografia um fundo igualmente incômodo. Quem não vive ou viveu aqui verá na imagem apenas a violência das armas apontadas para algum lugar no centro do gramado seco da Esplanada dos Ministérios. Mas quem conhece Brasília por nela labutar e deleitar-se na vida corrente do cotidiano implacável verá, muito mais que capacetes, fuzis e tropas prontas a atacar, o rigor de outro exército, o da estiagem periódica que, vê-se na foto – e nem seria preciso ver para certificar-se – por aqui vigora até mesmo em momentos de intensa conflagração histórica.

Se a gente pensar bem, vai notar que à nossa mente arbitrária e subjetiva sempre parece que quando o mundo ou o país ou uma cidade está a se desdobrar nas dores intestinas de uma crise que entrará para os livros o clima atmosférico propriamente dito – ou outras circunstâncias da vida diária, menor, cotidiana – cessam de existir. Ledo engano, como se dizia antigamente, e como comprova a foto que motiva a postagem.

O segundo tópico, referente ao engano histórico, decorre do fato de a data da imagem não coincidir com os períodos mais ferrenhos da repressão militar que caiu sobre o país, sobretudo a partir da decretação do Ato Institucional 5. Pois ocorre que a imagem em questão é um flagrante do “levante dos sargentos”, um fato que é até pré-1964. Deu-se em 1963, nos embates que serviram de preâmbulo ao golpe, e tinha, vejam só, um aspecto bem mais legalista do que supõe a mera visão da foto (ao menos se a gente aspirar do episódio o caráter de quebra de hierarquia militar, mas poupemos o desinteressado leitor atual dos detalhes e minúcias).

Então: a imagem, datada – vejam só, novamente vejam só, de um 11 de setembro, o calendário sempre pronto a nos reservar numerológicas surpresas – mostra um instante da revolta dessa instância hierárquica intermediária do meio militar, nem tanto à cúpula nem totalmente desligada das bases, provocada, à guisa de estopim (que causas, naquele momento pré-deposição de Jango, vinham aos feixes) pelo impedimento da posse de sargentos eleitos para a Câmara Federal naquele princípio da década de 60.

“Em protesto, cerca de 500 sargentos, do Exército, Marinha e Aeronáutica sublevaram-se em Brasília na madrugada do dia 11 de setembro, ocupando os principais centros administrativos e o prédio da Rádio Nacional. Os rebeldes foram dominados em poucas horas, com um saldo de dois mortos”, diz o texto no volume final da série “Nosso Século”, da editora Abril. “O líder do levante dos sargentos, Antônio Prestes de Paula, chegou a ser aclamado pelos civis que se encontravam nas vizinhanças, no intantes em que foi preso. A UNE e o CGT manifestaram seu apoio aos sargentos. O país estava pegando fogo”, diz a enciclopédia histórica, ao que a gente é tentado a acrescentar: “Brasília é que estava pegando fogo”, como acontece em todo setembro, seja qual for – sargentos, mensalão, Lula x mídia – a crise da vez.

*Abaixo, outras imagens do levante com a seca de Brasília de coadjuvante:   
 
 
 

sexta-feira, 14 de setembro de 2012

A vida na bruma



Acho que foi Luiz Fernando Veríssimo quem disse certa vez que, a despeito da corrupção que alimenta bolsos e jornais, Brasília é a cidade mais transparente do país. Mais que transparente, é ofuscante de tanta luminosidade, a ponto de irritar a visão que busca uma nesga de sombra que seja para descansar os olhos. Que, mesmo com tamanha superexposição, seus prédios privilegiam vidraças, buscam os raios solares, abrem-se à claridade como um inseto noturno se apaixona por um poste de luz. Pois no presente momento, Brasília, quem vê o Jornal Nacional já deve estar sabendo, é tudo menos isso.

Em setembro, quando a seca brasiliense se condensa em névoa , essa cidade é justamente o oposto da claridade – ainda que se mostre curiosamente mais e mais brilhante. Faz-se difícil de enxergar, turva suas tão conhecidas linhas, veste-se de subjetividade visual. Torna-se estranhamente sombria, dotada de um inesperado tipo de meio tom – uma bruma clara que evoca a cegueira branca do livro de Saramago que Fernando Meirelles transpôs para o cinema.

São dias em que Brasília parece uma foto em negativo dos fogs londrinos. Nisso e em tudo o mais, é preciso alertar o espectador distante que a visualiza pelo Jornal Nacional, nossa bruma de cerrado é em tudo diversa ao que aparenta. O tato costuma associar a névoa ao frio e à umidade – e aqui dá-se o oposto. Nossa bruma é o envoltório natural de um grande bafo quente – turbinado pela fumaça das queimadas, claro, e pela poluição concentrada no ar pela falta de chuvas.

Você acorda de manhã, olha pela janela e vê uma branquidão borrada. Tudo fica indefinido,  o plano e seus habitantes, a mata baixa e o traço do arquiteto. E o céu queda-se subtraído do azul habitualmente tão comentado. Tudo queima, irrita, chamusca. Vai-se a transparência. E o cenário urbano fica muito mais propício à má fama da cidade, com a bruma seca protegendo em sombras brancas os lobistas desconfiados entre os blocos da Esplanada dos Ministérios.  
 
É como se Brasília se tornasse o cenário de uma inusitada espécie de filme noir, onde a escuridão das tramas e dos personagens se vestisse de branco, desbravando um novo ambiente para suas tramas recorrentes de roubos, golpes e armadilhas. Antes que a primeira e aguardada chuva dilua essa imprecisão toda com um aguaceiro daqueles e traga de volta nossa luminosidade objetiva que quase cega os olhos do cronista.

* A foto que ilustra o post é de Elza Fiúza/Agência Brasil

quinta-feira, 6 de setembro de 2012

Aquém e além do Paradiso




Giuseppe Tornatore conquistou na maciota uma legião de admiradores com seu cinema memorialístico tipo torrão natal que fazia uma pequena cidade italiana parecer o espelho de um grotão global. Com “Cinema Paradiso” (1988), o cineasta conseguiu, ao mesmo tempo em que fazia uma sentimental ode à sétima arte, realizar também uma espécie de sonho implícito nas memórias de quem nasceu e cresceu no interior – seja da Itália, seja do Brasil. Aquela cidade, aquele cinema, aquele menino e aquele projecionista chamado Alfredo eram a recriação diante de nossos olhos abestalhados de um tempo e lugar onde nós mesmos, integrantes daquelas plateias hipnotizadas, havíamos habitado. Era mais que cinema, chegava a ser uma forma pagã e estética de religião. Um novo cult no cartaz, do tipo instantâneo e definitivo.

Tão cult que naturalmente eclipsou os filmes seguintes de Tornatore, como “O Homem das Estrelas”, “A Lenda do Pianista do Mar” e “Malena”. O primeiro ecoou como um quase natural desdobramento de “Paradiso”. O segundo,  crônica sobre um instrumentista num transatlântico, soou como uma novela literária diante do romance russo que foi o antecessor. O terceiro, no meu caso, nem cheguei a ver – só lembro dele já em vídeo ou DVD, hiato do cinema propriamente dito sempre é um desestímulo. Agora, encontro em Blue Ray a cópia estalando de nova do novo, ou mais recente, “Baarìa” que, pelo aspecto da embalagem e pelo teor dos trechos dos comentários que traz inscritos leva diretamente a “Cinema Paradiso”. Novamente Tornatore retorna à sua aldeia – o que, no caso dele, é quase certo que poderá corresponder à nossa.

Mas também há uma lei não escrita segundo a qual os fenômenos cult não se repetem assim-assim. E foi o que se deu. “Baarìa” é como se fosse “Cinema Paradiso” elevado à enésima potência: cada quadro é de uma composição milimetricamente bela; cada sequencia quase um filme por si só, mesmo com duração de cinco minutos; cada personagem retoca todos os tiques e toques que a gente começou a ver no mais cult filme do diretor; Morricone está de volta na trilha sonora; tem filme dentro do filme de novo, passagem de tempo e seus efeitos novamente, saga familiar outra vez. E no entanto não funciona como funcionou “Cinema Paradiso”.

Obstáculo local
 
A pergunta que fica martelando enquanto você tenta encontrar fruição em meio a tantos elementos é uma só: por que “Baarìa”, sendo visivelmente tão bem mais produzido e com um antecedente bem sucedido que lhe deu todas as coordenadas, não retira do espectador a mesma emoção de “Cinema Paradiso”? Enquanto o filme, demorado – aí pelas três horas que parecem durar cinco, o que já é um obstáculo – não acaba, os palpites vão se colocando entre você que o assiste e suas cenas quase inutilmente tão bem elaboradas. Desta vez, Tornatore se concentrou tanto nas coisas específicas de sua Itália natal que travou aquele elemento que pode fazer de uma obra de arte baseada na emoção local algo universal – um insumo muito particular capaz de fazer com que ao se falar de um quadrado,  componha-se um painel que diz respeito a um mosaico muito maior. Há muito de política interna italiana no filme, algo bem menos compartilhável do que a fruição do cinema em si que era evocada no “Paradiso”.

Para piorar, a estratégia narrativa do filme parte de um modelo que faz estancar os episódios: até a primeira meia hora, o que vemos são belas sequências interrompidas (por belos cortes, interessantes transições, mas nem isso diminui o incômodo) por outras, sem que uma deságue na seguinte. Você tem a impressão de estar assistindo a um conjunto de trailleres de futuros longas de Tornatore – como naquela proposição feita em literatura por outro italiano célebre, Ítalo Calvino (“Se um viajante numa noite de inverno”). No livro de Calvino, isso era a própria base tanto da investigação metaliterária quanto da fruição narrativa pura e simples. No filme de Tornatore – que, naturalmente, a certa altura felizmente abandona essa linguagem gaguejada – o que era para ser uma ilustração torna-se uma aporrinhação.

O resultado é um filme travado, que demora para envolver o espectador, por mais que o esplendor visual de cada sequência se imponha. É como algumas das  minisséries brasileiras feitas por Luiz Fernando Carvalho, como a adaptação de “A Pedra do Reino”: ele busca tanto a epifania audiovisual em cada cena que não consegue obtê-la em praticamente nenhuma, visto que, é sabido e corrente, pra se atingir um estado mínimo de transcendência em um momento da vida e da arte, é preciso muitos outros, anteriores e banais, que lhe sirvam a de contraponto, elevador e trampolim.
 
Caleidoscópico

“Baarìa”, ainda assim, é considerado por muitos críticos – como o nosso brazuca Luiz Carlos Merten, de “O Estado de São Paulo” – como o melhor filme de Tornatore. Eu, do meu canto no fundo desse cinema saturado de opiniões, diria que é o mais caleidoscópico. E que é justamente a ambição desmedia que retira dele o poder de fascinação que teve “Cinema Paradiso”.  O que o filme anterior conseguia da primeira à última cena – sobretudo na última, que também é citada em “Baarìa” – o mais recente até realiza, sim, mas no conjunto mínimo composto por cada sequência.

Como a primeira – que, não se sabe se propositadamente  ou não – cita, vejam só, o “E.T” de Spielberg: o menino que corre tanto pra comprar cigarros pra um adulto que repentinamente vê-se voando – e a gente, na plateia, junto com ele. É uma bela e instigante abertura, embora contaminada pela citação de outro cinema tão diverso, ou justamente por isso. Pena que não sustente este “Baarìa” no ar por inteiro.