terça-feira, 31 de janeiro de 2012

Crônica do pai-cinéfilo



O leitor bagunçado que é o autor desse blogue idem também é, ou tornou-se, por circunstâncias familiares, um cinéfilo em igual condição. Cinéfilo bagunçado é aquele que lê todas as resenhas e assiste a um por cento dos filmes sugeridos, quase sempre no horário em que é possível, quase nunca de acordo com a preferência pelo filme mas pela disponibilidade que a vida oferece, eventualmente sim, casando necessidade com expectativa. A vida deste cinéfilo se divide entre A.F e D.F, antes e depois dos filhos. Ao que já pude ouvir de quase todo mundo, isso acontece com quase toda gente: a parte da humanidade que, gostando de filmes ou não, torna-se pai de família. A gente perde a dependência química da visão de sagas em celulóide – hoje, em digital, mas neste caso o meio não interfere na mensagem – de tão poucas chances tem de se manter fiel a ela. Mamadeiras, quebra-cabeças e chamados insistentes de “papai, papai!” num tom de voz que indica que a convocação é pra ontem ocupam o lugar daquela sessão vespertina que parecia um hábito até a chegada do advento da paternidade.

Tudo isso pra dizer, sem firulas em tatibitate de adulto, que a paternidade responsável, infelizmente, não combina com o hábito de se manter em dia com o que de melhor – ou pior, dependendo da temporada – o cinema mundial tem a oferecer aos nossos olhos fatigados do imediato pós-parto. De maneira que o pai-cinéfilo (ou o ex-cinéfilo que foi assaltado pela condição de se tornar pai) costuma contrariar mesmo o gosto da maioria de aficionados por cinema que não é pai de meninos pequenos (no caso dos grandes, dizem que depois de fazer 14 os filhos são tomados por uma estranha mas providencial vergonha de andar perto dos seus progenitores, a conferir). A gente costuma vibrar com um filmeco qualquer que um expectador menos mutilado em seu hábito de ir ao cinema não considera mais do que banal – ou ruim mesmo. E quando vem aquele filme super-esperado, coberto de elogios, portador das mais abalizadas opiniões quanto aos cortes de linguagem que promove, o pai-cinéfilo pena tanto pra conseguir ver que... pode muito bem sair decepcionado, por mero excesso de expectativa. Ou então não entender mesmo umas partes, que a paternidade responsável tem dessas coisas: você assiste tanto ao DVD dos três mosqueteiros da Disney (Pateta, Mickey e Cia) que acaba ficando um pouco prejudicado mesmo quando se trata de sensibilidade estética e inteligência audiovisual.

Mas – sempre tem um mas, mesmo nas profundezas da vida de pai de duas crianças de seis e quatro anos numas férias de fim/início de ano que parecem não acabar nunca – o horizonte das possibilidades pode se abrir quando você menos espera. A mãe dos meninos de repente é tomada por um acesso de generosidade e libera você para uma sessão de... “Cavalo de Guerra” às... 21 horas, o que significa que você não vai voltar pra casa antes das 23. Ou então é o espírito das férias fora da sua cidade de moradia que permite uma quebra dos hábitos. Ou então é a própria programação de cinema das crianças que lhe leva de roldão como as águas das enchentes da temporada. O caso é que, por uma ou outra dessas circunstâncias, as portas dos cinemas se abriram pra mim neste final de 2011 e início de 2012 – e foi tanta emoção que até agora estou sem condições de julgar o que vi. Apenas vi, o que não é pouco. Vamos à crônica propriamente dita do pai-cinéfilo em ação:

O “Cavalo de Guerra” foi como um daqueles repleis que a vida vez em quando oferece: você com 4.6 rodados tem a chance de entrar no cinema e se sentir de novo com 1.9. É a volta do velho Spielberg pra quem gosta – e não para quem acha brega. Dizem que todo homem tem direito a chorar, no máximo, quatro vezes durante o ano. Levando em conta que vou chorar lá pra novembro, na formatura de Bernardo no Jardim de Infância da Escola Sagrada Família Menino Deus (como chorei na formatura de Cecília), restam dois prantinhos preu administrar, já que o segundo eu já gastei, claro, vendo “Cavalo de Guerra”. É o conforto do cinemão do cara que reinventou a arte de entreter e emocionar as grandes platéias em algum ponto da passagem dos anos 70 para os 80. É o cinema que não tem medo de levantar a cortina pesada da trilha sonora emotiva quando o personagem – mais uma vez, e obrigatoriamente, um garoto em rito de passagem, como aquele distante Christian Bale em “Império do Sol”, o meu preferido – vive seu momento decisivo. É a evocação de um sentimentalismo que o cinismo contemporâneo pisou em cima, esfregou o sapato e depois chutou para a sarjeta. É o filmão que lhe toma três horas do seu dia sem que você perceba que se passaram mais que dez minutos. É o filme de painéis, de horizontes, de pinturas de guerra que tanto abordam as tragédias humanas em língua média quanto trazem a sínteses desses acontecimento que de tão grandes para sempre esmagam a humanidade. E ainda tem a dolorosa cena do cavalo enredado no arame farpado das trincheiras que dividem aquela outra raça em facções em disputa – e a conseqüente e inesperada união momentânea que livra o animal irracional do suplício e por um instante abstrai dos racionais em seu entorno o instinto de aniquilação mútua. Para o cinéfilo que não é mais pai de meninos pequenos pode até parecer piegas, óbvio, metaforicamente pobre demais. Mas só pra eles.

A maratona cinematográfica acidental da passagem 2011-2012 também incluiu um outro filme do qual restou apenas o nome: “Missão Impossível- O Protocolo Fantasma”. Nomão pomposo, sessão de ingressos disputadíssimos no shopping natalense, a expectativa de ver um mero filme “de espionagem” que é como a gente chamava o gênero na infância, um Tom Cruise ancião vestindo uma malha falsa de juventude forçada e mais nada. Não consigo lembrar de uma mísera cena. É o contrário do que aconteceu com “Alvin e os Esquilos 3” (segure sua onda, eu avisei que isso é a crônica de um pai-cinéfilo), que enxertou quase à revelia várias e várias sequências nas minhas memórias de freqüentador agora eventual da sala de projeção. Tem uma explicação: fui obrigado por meus filhos a assistir duas vezes – eu disse duas, é sério – ao filme das férias. Nem a minha simpatia também eventual por “Saimon” que vira “Simon” me livra do trauma de rever tudo aquilo de novo – e eu nem preciso contar que, de volta a Brasília, Cecília e Bernardo já voltaram a ver o mesmíssimo filme no cinema mais duas outras vezes, felizmente sem a minha supervisão, que aproveitei pra conferir outras atrações em cartaz, o que explica o fato de repentinamente eu ter a impressão de morar num cinema. Tchau, esquilos: até o capítulo 4, e que demore muito (lembrando que, neste ínterim, teremos Madagascar 3 e, viva! um respiro, “A Ameaça Fantasma” de volta em 3D).

Pois bem, enquanto Cecília e Bernardo arrastavam Rejane e Ivone pra mais duas sessões esquilosas já aqui em BSB Citi, obtive uma licença para ver “Dois Coelhos” (se aparecer mais um filme com bicho no nome eu saio correndo pro meu home cinema) e, ufa, “Os Descendentes”. Do primeiro, que vi sem ter lido uma linha a respeito, logo entendi tratar-se de um cruzamento de Tarantino com “Lost”, aquele negócio de mostrar algo aqui e só  mais em seguida revelar os antecedentes da cena, dando a ela um novo significado. Não é tão novo assim. Lembra também o mexicano Iñarritu (é assim que escreve? Claro que não, mas você entendeu) de “Babel” e quejandos. Não é ruim – e tem uma Alessandra Negrini na plenitude de suas capacidades, pra ficar no tucanês cinematográfico – mas também não é essa batata quente toda. Soa exibicionista. E se trata, principalmente, daquele tipo de filme a que você se sente obrigado a assistir de novo, pra conferir os truques narrativos em que caiu na primeira vez em que o viu. Tem uma última referência, que não vi ninguém fazer, que é Jorge Furtado. É como se fosse um filme do cineasta gaúcho rodado numa câmera equipada com um bate-estaca. Perde-se um pouco de inteligência contemplativa no processo. Sai-se da sala entre confuso e vazio: um videoclip de água poluída é o filme, com diria o compositor baiano.




E o que dizer de “Os Descendentes”? Em tudo que leio sobre o filme, sinto exatamente isso: uma falta do que dizer. Todo mundo gosta, é da mesma lavra do diretor do saboroso “Sideways”, um ou outro fica forçando uma barra pra se mostrar, “enquanto crítico”, superior ao cineasta (caso da moça da Veja, aquela que treina seus vastos dons estilísticos usando filmes como pretextos), mas o fato é que este é o tipo da produção que rouba as palavras dos comentaristas. É um filme de imersão, uma piscina narrativa que lhe envolve tanto que você vai perdendo a capacidade perceptiva de analisar com distanciamento – e se é assim, é ótimo, ora. É o que mais você espera do clássico cinema contador de histórias em imagens que os americanos desenvolveram à exaustão. Em casos assim, dane-se o crítico: a fruição do espetáculo áudio-visual (e estamos falando de um filme bem pouco espetaculoso, com sua trama comum e seus personagens quase patéticos de tão normais) é muito superior às medidas da régua usada pelo analista. E ainda tem um quitute para a parte masculina da platéia: ou você não acha que aquela forma destrambelhada de George Clooney correr quando fica sabendo que foi traído pela mulher é um desfavor a esta parte da raça? Só perder para o andar trôpego e ridículo de Chico Buarque nas ruas do Rio que aparecem no primeiro daquela série de DVDs em que o músico e compositor brasileiro revê sua trajetória. Pois é: Clooney e Chico, dois dos maiores queridinhos da mulherada, precisam ter um defeito bem à vista, daqueles que nem desviando o olhar dá pra deixar de notar, pra compensar o resto da humanidade que veste calças (com o perdão da imagem no final da frase que, mesmo tendo perdido completamente o sentido desde 1968 em Paris, ainda quebra um galho se o caso é destituir os artistas em questão de um mínimo do fascínio que nossas mulheres insistem em lhes dedicar).

Esqueci alguma coisa? Falei sobre “O Protocolo Fantasma” que poderia se chamar “O Filme Fantasma”? Então é isso: mesmo carente de  cinema em tela grande, o fato é que, com a qualidade da projeção cada vez menos condizente com minha miopia quase cinquentona, ando preferindo ver os filmes em casa, no conforto e na definição do DVD-Blue Ray, do que no sufoco de filas e barulhos paralelos do cinema. E em casa pelos meus olhos passaram, tema para outras conversas, desde um velho e pessimista Elvis Presley (antecipando a onda revisionista dos filmes pró-indígenas americanos de meados dos anos 80), “Estrela de Fogo”, até a elegância anticomunista de “A Insustentável Leveza do Ser”, de que eu mal me lembrava. Voltando ao cinema propriamente dito e pra encerrar o papo, esqueci de dizer que no caso do “Tom Cruise Fantasma” ainda tiver que assistir tudo com dublagem de português, esse fenômeno Classe C que depõe contra a própria, mas isso é outra história.

segunda-feira, 23 de janeiro de 2012

Biblioteca do Sopão

Enfim, e com o atraso regulamentar, a tradicional lista de fim de ano no Sopão, Hamaca e agregados:

Livros que este blogue leu em 2011

  • MUITO ALÉM DO NOSSO EU - Miguel Nicolelis
  • O SOLAR DA FOSSA - Toninho Vaz
  • A FORTALEZA DOS VENCIDOS - Nei Leandro de Castro
  • A MAGIA DO COTIDIANO - Clotilde Tavares
  • SARAMAGO - João Marques Lopes
  • GRANDES FILMES - Roger Ebert
  • BOA VENTURA - Lucas Figueiredo
  • PARIS É UMA FESTA - Ernest Hemingway
  • 1808 - Laurentino Gomes
  • OBRA COMPLETA - Manoel de Barros
  • MEMORIAL DE AIRES - Machado de Assis
  • OS TRANSPARENTES - Florence Dravet
  • O DOSSIÊ ODESSA - F. Forsyth
  • PORNOPOPÉIA - Reinaldo Moraes
  • DO GOLPE AO PLANALTO - Ricardo Kotscho
  • ASSIM FALOU ZARATUSTRA - F. Nietzsche
  • 5O ANOS A MIL - Lobão
  • O GATO SOU EU - Fernando Sabino
  • A CABANA - William P. Young
  • ITALO CALVINO - PEQUENA COSMOVISÃO DO HOMEM - Gustavo de Castro
  • O JOGO DOS OLHOS - Elias Canetti

Sopão por aí




 


Mercado Público de Caicó-RN, restaurado com respeito ao desenho original do prédio.

sexta-feira, 20 de janeiro de 2012

Festa no interior




Quando você chega lá à noite tem a impressão de ver, a partir dos elevados da estrada, uma planície de vagalumes. É a cidade iluminada aos pés da serra da Borborema, uma cordilheira que vem da Paraíba com suas ondulações geológicas e só acaba por lá, no que chamamos de boqueirão – um dos marcos físicos, culturais e paisagísticos da cidade em questão. É Parelhas, no Seridó potiguar, município típico do semi-árido nordestino e feito para e por quem tem resistência ao rigor do clima e dos sertões, na margem direita do leito seco do rio que dá nome à região, a 240 Km de Natal. A população atual, segundo o IBGE, é de 20.354 habitantes (não mais que 14 mil na época em que efetivamente deixei de morar lá). E como em todo o país, sobretudo no interior do Brasil a partir da era Lula, a cidade se espalhou  e autoturbinou-se em gente, comércio, atividades e também tumulto – o que é o subproduto indesejado de todo crescimento que ocorre assim, depois de anos de demanda represada.

Hoje, 20 de janeiro, é a data nacional de Parelhas, que tem em comum com o Rio de Janeiro o padroeiro protetor contra as pestes que dizimam civilizações. É o dia de São Sebastião (por ter nascido na véspera, recebi o nome dele), o santo a quem os pioneiros que desbravavam a região no século XIX, nos capítulos seguintes à célebre Guerra dos Bárbaros, dedicaram suas orações e sua fé em busca da cura para um surto de cólera que se espalhou por aqueles sertões no ano de 1856. A história humana é curiosa: dos piores fatos podem nascer as mais inesperadas conseqüências, inclusive as melhores delas. Parelhas nasceu assim: da mistura da devoção ao santo invocado para deter “a peste da fome e guerra” (como diz o hino que se ouve em cada esquina nesta época do ano por lá) e do lazer dos sertanejos de então, que era disputar corridas de cavalo em parelhas – daí o nome que a cidade tomou. Até hoje se diz, em tom de brincadeira, “vamos às parelhas”. Os mais ortodoxos completam: “às parelhas do major Antão”. Uma tosca capela foi erguida em homenagem ao santo padroeiro como forma de apelo para que a epidemia de cólera cessasse. E em torno dessa capela e do casario já existente, instalou-se a cidade incrustada quase no centro da barriga do elefante com que se parece o mapa do Rio Grande do Norte.

Seria abuso recorrer a Carlos Drummond de Andrade e dizer que Parelhas hoje é um retrato na parede – e como dói. Não vou fazer isso: a parte do retrato até se aplica, porque o meu interesse pelas urbanidade metropolitana que se manifestou muito cedo realmente me levou pra longe de lá assim que foi possível. É um caminho que sempre quis, depois foi uma necessidade estudantil que se impôs, em seguida tornou-se uma condição profissional inevitável. Gosto das cidades grandes, interessa-me e me estimula o mundo informativo que elas trazem, embora aprecie, por uns dias, a calma e a poesia do nosso Brasil interior. Mas não há mais aquela dor que o poeta tanto lamenta quanto cultiva: o que existe é uma contemplação de longe que de vez em quando se torna uma saudade da cidade física e da gente com quem a dividi quando dela chego perto, como fiz nas férias de agora por uma semana. Tenho lá amigos que preferiram ficar na sua paisagem natural, outros que saíram por aí e retornaram para se instalar definitivamente, outros que vão eventualmente como eu, embora bem mais. Por um lado, a cidade que reencontrei agora é um caos urbano como qualquer outro – e isso me assustou um pouco. Ruas onde durante anos o parelhense se abasteceu calmamente de leite nas vendas domésticas hoje são corredores de trânsito onde dificilmente se passa trinta segundos sem ouvir o ronco de motos e automóveis  – ou o barulho trovejante dos carros de som apregoando uma festa ou uma promoção do comércio (esses sempre existiram, mas nunca com a dimensão que tomaram agora).

Mas há outra face – mais silenciosa, pungente e necessária – desse meu encontro com a cidade onde cresci (por acaso e só por isso, nasci em Caicó, ali ao lado). São os momentos de transcendência interiorana que experimento quando me vejo diante de um pedaço da geografia do doce passado – um canto de rua, a velha casa que meu pai construiu e onde “sempre” morei (hoje ligeiramente reformada pelos atuais proprietários), a foto de seu Severino como eu o via quando menino e que hoje posso contemplar no seu túmulo, a biblioteca municipal que forneceu os primeiros livros lidos numa cidade sem livrarias, a fachada do grupo escolar e muitos outros. É uma coleção de sensações que se experimenta diante de um elemento urbano qualquer que, na sua imobilidade comunicativa de testemunha do tempo, lembra a contribuição que deu pra você se tornar a pessoa que é. E isso acontece o tempo todo, independente do barulho em torno, do crescimento caótico, da cacofonia festiva das comemorações nos dez dias em que Parelhas celebra São Sebastião. É o melhor, o momento só seu, o instante Cinema Paradiso que faz a vida parecer muito mais do que um filme. Quem veio de outra cidade, sobretudo de uma cidade do interior, vai entender o que estou querendo dizer. Quem não veio mas tem sensibilidade urbana e humana, também. 

quarta-feira, 18 de janeiro de 2012

4.6




Quatro ponto seis deve ser como um motor cansado, mas tranqüilo. Uma máquina engrenada mas já prejudicada em dispositivos laterais como a visão física. Uma composição de carga que foi deixando os secos e molhados pelas estações enquanto aprendia a adquirir a leveza do vazio. Um caminhão veloz, embora pesado. Um carrossel francês de um filme em branco e preto que fica muito bem quando aparece num filme novinho em 3D. Um navio de cruzeiro quando todos os turistas barulhentos dormem – e sem risco de naufrágio por artes de afoitezas de comandante noviço. A parte mais espessa da fumaça que a esquadrilha de aviões deixa no ar, com a sabedoria e o desprendimento de sumir quando mais a multidão cá embaixo tenta enxergá-la melhor.

Quatro ponto seis deve ser como reaprender a andar de bicicleta sem medo de estourar a unha do dedão do pé ainda em definição. Como mergulhar em antigos vídeos da tevê a lenha no YouTube e voltar se sentindo completo como uma tela de alta definição da Sony. Como reunir a família e anunciar que vai largar o emprego pra dar uma volta ao mundo, sem a menor chance de isso acontecer – só pra ver as reações a uma pilhéria de quarentão a caminho dos cinquentinha. Deve ser como se sentir o eterno cozinheiro daquela Madeleine proustiana que você incorpora ao cardápio de imagens mesmo sem ter lido a série de livros. Como descobrir uma Madeleine por hora em sabor, cheiro, visão e audição – como passar a conviver muito mais intensamente com a sensação de deja vu que, segundo Matrix, nada mais é do que o sistema se traindo.

Quatro ponto seis deve ser como um choro de Paulinho da Viola tocando por dentro do corpo, usando as câmaras do pulmão como viola e os antebraços como cordas. Deve ser como ser um brinquedo antigo, desbotado e mesmo assim querido, aquela testemunha tão muda quanto lírica de um tempo que passeia sobre a sua baça pessoa. Quatro ponto seis deve ser um baita poema de Drummond, desses  que a gente decora quando tem 20 e poucos anos e nunca mais esquece, o das coisas findas, que muito mais que lindas, essas ficarão. Deve ser como calmo e quente como uma enseada nordestina; pungente e tocante como uma valsa de Edu e Chico, simples como uma jangada, triste como Portugal, feliz e apascentado como um rio no instante vasto em que se faz estuário. Vamos ver, de amanhã em diante, como é mesmo essa qualidade de viver em escala quatro ponto seis. Vamos ver.

sexta-feira, 6 de janeiro de 2012

Antropologia pop do Pinta


Dizem que ele é um publicitário. Para outros, é um advogado. Não importa, todo mundo que tem um pouco de senso de humor, mora em Natal Citi e não teme esbarrar nas esquinas da cidade com um legítimo representante do baixo proletariado local – essa turma que ainda vai entrar para a nova Classe C mas que enquanto isso vai se divertindo como pode na cidade do sol – curte, no sentido lato e no sentido faceboquiano da palavra, a figura incomum e ao mesmo tempo comuníssima do Pinta Natalense.

O Pinta, pra quem lê este blogue em outras paragens urbanas como Brasília Citi e adjacências, é um personagem da capital do RN que habita o mundo do twitter com suas tiradas ultrapopulares, seu afiado verbo que colhe nas ruas a fina flor da sacanagem, seus torpedos incendiários que impedem o pessoal metido a chique que freqüenta a rede social de esquecer que em toda esquina de Natal tem um vendedor de CDs piratas pronto para lhe assaltar com sua lábia.

O homem, digo, o Pinta, já foi até motivo de reportagem de jornal, resguardando obviamente sua identidade secreta – que no fundo não interessa a ninguém e é imensamente menos importantes do que as presepadas verbais que ele apronta via twitter. Ou por outra: essa identidade interessa apenas na medida em que por trás delas pode estar alguém que absolutamente não faz parte da classe social em que o personagem se filia. Se for isso mesmo – há apenas suposições; de maneira que já dá o maior prestígios nas redes dizer que conhece a identidade secreta do Pinta – tem um aspecto que precisa ser ressaltado: a antissegregação que salva o país de se tornar um campo de guerra urbana permanente.
Ocorre que nada mais interessante do que um publicitário ou jornalista de classe média ser a mão por trás do Pinta (sem trocadilho, por favor): se assim for, estará provado que mesmo na classe média mais acomodada de Natal (diferente da de Brasília, mas também insuportável em certos momentos) há alguém que capta, entende, sintoniza e reproduz a fala do povão. Alguém que está interessado no que o povão está dizendo. E que não dá de ombros pra quem mora fora do muro do seu condomínio. E isso é o que pode confeir um mínimo de harmonia possível às cidades atuais: o diálogo entre classes, segmentos e as várias vertentes da vida urbana.

Mas a análise aqui está ficando pedante demais quando o assunto é algo ligeiro, divertido e aparentemente despretensioso como é o Pinta Natalense. E a gente encerra, como de costume, com o verdadeiro motivo da postagem: naquela noite com Rejane e Raísa no Consulado Bar, na rua das Virgens, coração noturno da Ribeira, bairro histórico e boêmio de Natal Citi, enquanto a banda de pop-rock-blues atacava seus hits, eis que aparece na janela, quem?, sim, ele mesmo, o Pinta Natalense.

Sim, senhor, um entre os muitos natalenses que podem ser o Pinta de verdade, o cidadão desprovido de direitos e premiado pelo destino com uma vasta coleção de gaiatices que habita cada canto de Natal, em especial o comércio das praias ou o burburinho do Alecrim, pra não falar na confusão da Cidade Alta. O cara – um guardador de carros que, animado pela boa música que vinha do bar sofisticadinho ao lado, largou o batente – chegou no janelão do Consulado, bem do lado da gente e começou a curtir, de fato e muito mais do que faceboquianamente a noite no estabelecimento. Dançou, sorriu, cantou, vibrou na janela – e muito mais do que o público pagante interno.  
Boné de Pinta Natalense, óculos rayban de Pinta Natalense, camiseta regata de Pinta Natalense, pele morena e grosseira de Pinta Natalense, cabelo carapinhado de Pinta Natalense, sorrisão de Pinta Natalense, enfim, animação de Pinta Natalense, não restava dúvida: ali estava “o” Pinta Natalense, esse anfitrião que a cidade de Poti oferece aos sisudos e branquelos  turitas paulistanos que aqui chegam em bandos a bordo dos pacotes da CVC prontinhos para se encantar com a espontaneidade local. Vai ver é por isso que esse pessoal volta maravilhado: Natal não é só a cidade do sol e do mar, das dunas e da carne de sol. É também, e principalmente, o país dos Pintas Natalenses, com sua lição de viver o momento. Um carpe diem apotiguaiado sem firulas de erudição.

Se a banda do bar em frente tocar um cover do Raul Seixas, aí então é a loucura: como aconteceu aquela noite no Consulado. O vocalista atacou de “quem não colírio usa óculos escuros”, no que pareceu uma homenagem àquele integrante do público que assistia ao show do lado de fora da janela, como quem via tevê no vizinho nos anos 70. O cantor, assim como o autor do perfil misterioso do twitter, captou a figura: foi lá na janela e pediu emprestado os óculos, que passou a usar no restante da apresentação. Diágolo entre pessoas, gente demolindo barreiras sociais tanto quanto isso seja possível. Pinta Natalense pode parecer só uma conta divertida na rede social – o que, de toda maneira, é – mas não o subestime: se você pensar bem trata-se de um fenômeno antropológico de tolerância urbana típico das capitais da costa nordestina.

O que é apenas uma maneira cientificamente aprovada de dizer que o Pinta Natalense é o máximo.

terça-feira, 3 de janeiro de 2012

Uma noite no Consulado


Sem um visto que nos permitisse um lugar à mesa para assistir ao show de Khrystal no célebre Buraco da Catita, o mix de casa de samba e boteco pop que anima as noites no bairro da Ribeira, em Natal Citi, recorremos ao Consulado ali em frente. Essa é uma  maneira divertida de contar, em pinceladas diplomáticas rápidas, o capítulo Noite na Ribeira das férias em curso. Era noite de sexta-feira passada e meia cidade desabou em carreiras de celebração de fim de ano para o estabelecimento onde rodas de samba dão o tom há tempo suficiente para que a gente, que também somos filhos de Natal, desejasse conhecê-lo. Mas a potência do chamado publicitário do show de Khystal, que preparou um repertório especial transitando pelas várias facetas do ritmo que confere notoriedade à casa, foi superior à capacidade de absorção de público pelo referido local.

Resultado: chegamos cedo e mesmo assim todos os lugares já estavam tomados. Mas há males que vem para bem, com já diz a filosofia prático-popular dos nossos ancestrais: e eis que, indecisos quanto a ficar por ali diante da lotação esgotada do Buraco em questão – que pareceu sim, simpático como dizem, mas pequeno como ninguém conta – voltamos o olhar para a rua em frente e deparamos com um insólito prédio de ares anos 40, intitulado Consulado Bar, àquela altura vazio e disponível. Como diria Renato Aragão, fumo.

E, surpresa: o Consulado Bar tem ar disso mesmo, de uma distante e nostálgica repartição de expedição de vistos para pessoas em trânsito entre Casablanca e Parnamirim Field nos anos em que a cidade multiplicou sua população e levou um choque cultural de bilhões de volts ao abrigar a base dos aliados nas escaramuças da II Guerra. Tudo estilizado, claro, o que de quebra garante um ar pop-histórico como raramente se vê em Natal – e é incompreensível que seja assim. É entrar no Consulado Bar e notar o quanto a capital de Poti perde, desperdiça ou por outro lado esnoba mesmo ao não explorar, além do sol obrigatório, a herança da história recente que contém.

No Consulado temos uma amostra de com isso poderia se dar: o bar é adornado por reproduções de anúncios da época do conflito, como cartazes de propaganda para adesão aos bônus de guerra, de convocação de reservistas ianques e afins. Um clima absolutamente trampolim da vitória, uma atmosfera Clyde Smith (e se você que lê isso não sabe a quem me refiro isso não diz nada sobre sua ignorância mas tudo sobre o desconhecimento geral da cidade sobre seu passado ainda recente). E se eu lhe disser que, para combinar com essa sessão retro que é a arquitetura em si do bar, com seus arcos internos e seus corredores de piso, supõe-se, original da época, ainda ganhamos de bônus um belo show de uma banda de pop-rock-blues cujo nome criminosamente eu esqueci? Então, como diria João Lennon, tente imaginar aí: Ribeira Velha com Beatles; anos 40 com Dire Streits; mosaicos antigos com Raul Seixas.

Percebeu qual é a do Consulado? Então posso deixar pra depois um capítulo à parte dessa história, que foi o nosso encontro fugaz com um sujeito absolutamente Pinta Natalense enquanto assistíamos ao show da banda de blues neste mesmíssimo bar. Fica pra outra postagem, como caso em particular com direito a texto solo que merece. E assim o Consulado Bar foi uma ótima introdução ao início do show de Khrystal no Buraco ao lado, que estourou em  anos-luz o horário marcado e só se iniciou na boca da madrugada. Ouvimos os três primeiros números do lado de fora do cercado que delimita a Catita e fomos dormir, saciados de história, rock, pop, blues, samba, diversão e amigos como os muitos que encontramos por lá.

*Para saber mais sobre o Consulado, leia reportagem da TN:  
 http://tribunadonorte.com.br/noticia/esse-bar-faz-historia/173814

*Para nossas fotos manchadas da Noite no Consulado, consulte o Tiao Vicente no Focinho Book: http://www.facebook.com/#!/media/set/?set=a.118984678220711.18899.100003275396694&type=1