segunda-feira, 26 de março de 2012

Leituras desabaladas



De Boni ao criador da literatura de Cordel, da Paris do Terror aos botequins cariocas, uma viagem regressiva aos primeiros livros apreciados com calma neste ano apressado

2012 está sendo um ano veloz, divertido, com mudanças engatilhadas e feriadões sem qualquer espécie de desperdício. Já tivemos o Ano Novo em Natal, o carnaval em Pernambuco e vem aí a já tradicional Semana Santa em Caldas Novas, onde o turismo de massa interiorano faz a gente botar a soberba de molho em águas quentes abastecidas de tranquilidade. Já fomos a Pipa, já passei uma semana com os meninos no janeiro parelhense, já visitei os cunhados Sandra e Novo nas fervuras do alto verão caicoense, já comecei o ano bronzeando manhãs e tardes na praia de Ponta Negra, enfim, se a promessa para os próximos doze meses feita na passagem de ano  – na praia, em Pirangi, no meio de uma multidão festiva e de uma família animada – era, digamos, aproveitar a vida, hedonisticamente falando ela está sendo cumprida até o último segundo de cada noite antes de dormir. Mas o assunto em questão, como é tão comum neste blogue e no seu associado Hamaca de Poti, não tem nada a ver, ao menos diretamente, com este parágrafo de abertura. Indiretamente, sim, há possibilidades de ligação.

Vejamos: talvez seja por isso, por este 2012 estar se saindo tão eficaz nas suas determinações de, sejam quais forem os problemas, fazer a da vida uma diversão possível em 365 dias sem culpa, que o leitor bagunçado que o escreve esteja desempilhando um livro após o outro desde que janeiro chegou. Dezembro, melhor dizendo, que se cronologicamente não faz sentido, do ponto de vista das repartições do tempo que a gente faz com a arbitrariedade que a vida de cada um permite ou exige, este 2012 começou um pouquinho antes. O que se quer dizer com tamanhos rodeios aqui  é que ainda nem acabamos março , o mês três do calendário, e este leitor bagunçado já sorveu sete títulos em leituras diria feriadas de tão divertidas e proveitosas quanto o ano que flui em desabalada carreira. Confira na lista atualizada na Hamaca: tem “O Livro do Boni”, do próprio; “Biografia Prematura”, de Fernando Meirelles; “O Verso e o Briefing”, de Clotilde Tavares; “TerraMarEAr”, por Ruy Castro e Heloisa Seixas; “Um Conto de Duas Cuidades”, o clássico de Charles Dickens e os recentes “Estórias Abensonhadas”, de Mia Couto, e “A Privavera do Dragão”, de Nelson Motta. Faltava deixar aqui umas notas atrasadas sobre quase todos eles – a exceção fica por conta dos dois últimos, um deles já tema de publicação anterior e apressada como tem que ser; o outro, guardado para texto mais à frente.


O LIVRO DO BONI
Desde janeiro, o risco de você ligar a televisão em sinal aberto ou a cabo e dar de cara com a carotonha do senhor José Bonifácio de Oliveira Sobrinho é quase igual à de esbarrar com as bochechas reduzidas de Fausto Silva ou com a voz cansada de Galvão Bueno. É curioso:  nunca antes na história da televisão brasileira aquele que foi seu mais poderoso homem apareceu tanto no próprio veículo que o consagrou quanto agora, quando está aposentado.

Boni, por causa do natural marketing de vendas do livro – tão bom por ter tanto o que contar  que dispensaria tudo isso, mas quem é louco? – tem sido presença constante em dez entre dez talquishows da tevê brazuca. O antes todo poderoso, que depois virou uma espécie de ressentido-mor pela exclusão do círculo do poder (rivalizando com o recém-falecido Chico Anísio) reaparece agora na figura do memorialista que dá bronca e ensina à rapaziada como é que as coisas têm que ser.

Abstraídas essas circunstâncias – e os momentos de soberba memorialística que não haveria como deixar de existir nas suas 500 tantas páginas – o “Livro do Boni” deveria ser leitura obrigatória em cursos de Comunicação, Televisão, Rádio, Multijornalismo, Publicidade e afins. Todo mundo que tem a menor ligação que seja com o trabalho em televisão deveria ter a humildade de ler o que a soberba – em grande parte justificada – do Boni imprimiu no papel de suas lembranças.

Porque o livro é, antes de qualquer coisa – claro que ler de olho nas histórias de bastidores do tempo em que ele reinou na Rede Globo é um pequeno prazer, confesse – uma gigantesca e informal aula sobre comunicação. E não apenas no que se refere à emissora de tevê mais poderosa do país. Porque ao longo de seu livro, Boni vai revelando ao leitor atento como é possível estabelecer uma comunicação cada vez mais gradativamente abrangente com o conjunto médio da população de um país grande, diversificado, multicultural e por tudo isso tão caótico quanto criativo. E isso se dá desde o início  na publicidade – cuja leitura me lembrou os tempos da Faz Propaganda, no artesanato diário com o mestre Solino em Natal – até os grandes marcos televisivos com que ele demarcou seu território neste governo à parte que se tornou a Rede Globo no Brasil.



BIOGRAFIA PREMATURA
Melhor do que ler o “Livro do Boni” é ler, logo depois dele, a “Biografia Prematura” que o cineasta – e também ex-diretor de filmes publicitários – Fernando Meirelles escreveu para a série publicada pela Imprensa Oficial de São Paulo (íntegra disponível, grátis, na internet. Dá um Google aí que acha). É como se você estivesse lendo o “Livro do Boni II”, uma espécie de continuação acidental, em que outro homem de comunicação, embora na área do cinema (e tendo vindo da mesma publicidade que gerou o executivo global), conta sua história, seus truques, suas circunstâncias.

Dá a impressão de que Meirelles – e não Boninho – é o verdadeiro filho do homem: mudaram os meios, mudou o público, alterou-se o caldo de cultura onde o elemento comunicativo (livro, filme, programa de tevê, site ou o que seja) vai tentar cravar sua flechas; mas tem gente nova aberta ao tal inconsciente coletivo brasileiro fazendo suas tentativas e tendo sucesso. A trajetória de Meirelles é muito menos ritual, menos formalística e absolutamente mais desprovida de de chances de acertos do que a do Boni da era da tevê zero ponto zero, mas a essência de um e outro é a mesma, nos dois livros: a capacidade de ouvir, processar e devolver para a audiência o resultado deste entendimento. Boni não é só um homem de televisão, Meirelles não é apenas um talento do cinema: ambos são dois brasileiro munidos de um atributo capaz de tocar corações e mentes: o poder da comunicação. (P.S: foi o primeiro livro que li em tablet, excelente, lúdica e ágil experiência; aprovado)



O VERSO E O BRIEFING

Comunicativa como ela só, Clotilde Tavares não tem compromisso com o Oscar e muito menos com a programação da tevê brasileira. Mas tem todo o comprometimento do mundo com a cultura nordestina e aquilo que ela tem de único, só nosso, engendrado e burilado no meio país ou país e meio que vai de Pernambuco ao RN, essa pátria à parte onde reinam Ariano, Cascudo e José Lins, pra ficar em apenas um representante de cada uma das etnias humanísticas dos distintos mas tão comuns territórios. Pois Clotilde Tavares, a partir da sua varanda na avenida Miguel Castro, cidade do Natal, estampou para quem quiser ver a figura de um outro homem de comunicação de feitos notórios; embora semidesconhecido.

O nome dele é Leandro Gomes de Barros e se isso não diz nada pra você não estranhe:  por ter nascido e vivido longe do circuito que gera e faz circular país afora seus conceitos e ideias, é quase natural – mas noutro sentido, será sempre um absurdo – que Leandro Gomes da Silva seja um desconhecido. Pois se trata aqui do nordestino que consolidou a chamada literatura de cordel, tema de “O Verso e o Briefing”, livro em que Clotilde Tavares examina como essa forma de comunicação abarca em si a publicidade regional. Uma curta mas saborosa viagem pelo mundo dos poetas e cantadores que a modernidade vai abduzindo da vida urbana nordestina.



TERRAMAREAR
Depois, veio o aguardado “TerraMarEAr”, coletânea de artigos sobre viagens do casal Ruy Castro e Heloisa Seixas, em que a dupla vai da Paris da Revolução Francesa – pra ver que no livro o conceito de viagem vai muito além do literal, o que é ótimo – aos botequins cariocas, onde os autores podem provar iguarias populares sem se dar ao trabalho de comprar passagens ou fazer as malas. Tudo é viagem no livro de Castro-Seixas: seja uma chegadinha às paisagens de Saint-Tropez consagradas pelo filme “...E Deus Criou a Mulher”, seja o mergulho de batismo nas grutas submersas de Fernando de Noronha.


Mas o filé, por incrível que pareça – e eu já avisei algumas linhas acima que o conceito de viagem aqui é mais elástico do que permite a leitura mais literal – é o passeio à cidade onde moram os personagens de desenho animado que já tiveram fama e fortuna e hoje curtem, tanto quanto possível, a decadência e o semi-anonimato. Ali onde Mickey Mouse comemorou com estardalhaço seu  sexagésimo aniversário ou onde o ex-bruto Brutus que infernizava Popeye recolheu-se à vida doméstica e fora do armário na companhia dos  Sobrinhos do Capitão. É uma viagem hilária, do tipo que não se pode ler quando se está a caminho de casa no ônibus – ao ouvir as risadas que não se consegue nem se está interessado em conter, vão pensar que você é um abilolado intelectual que ainda consome livros, se é que ainda se usa ir pra casa de ônibus.
UM CONTO DE DUAS CIDADES




Se você não é chegado a essas liberdades narrativas e prefere algo melhor encadernado pela costura do tempo, faça como eu, arrisque-se a ler um autêntico clássico e veja o que estava perdendo. “Um Conto de Duas Cidades” foi meu primeiro Dickens, a quem cheguei estimulado pela leitura de uma reportagem de revista sobre uma data comemorativa relacionada ao escritor inglês.
Ao lado de Shakespeare, Dickens é , como se sabe, o grande autor do país de Kate Midletown. E no mundo dos cultuadores contumazes dos grandes autores, quem gosta dos ingleses e não é fã de um é discípulo de outro. No filme “Além da Vida”, de Clint Eastwood, o médium vivido pelo ator Matt Damon é um aficionado por Dickens, autor mais conhecido por seu romance “David Coperfield”, difícil como diabo de se encontrar nas livrarias e até nos sebos.
Mas tudo isso é firula e perde completamente a relevância quando se inicia a leitura deste “Um Conto de Duas Cidades” – e, imagino, de qualquer outro dos seus livros. Abre-se diante do leitor um panorama de uma época grandiosa e sangrenta, a imediatamente antes e o logo depois da Revolução Francesa, com painéis paralelos que mostram, de um lado, a brutal exploração e a inimaginável miséria dela resultante entre os franceses dos dois lados deste muro antes de a revolta explodir; de outro, a sede de vingança que vem depois e anula, babando sangue em praça pública, toda a justificável mudança de ordem que a antecedeu. Falam muito da “Revolução dos Bichos”, de Orwell (que este leitor bagunçado não leu), mas isso aqui é cinema-verdade na tela leitora da sua mente. Muito além da mera metáfora.
“Um Conto de Duas Cidades” – o título se refere a Paris e Londres ao tempo em que esses acontecimentos históricos se davam – pareceu, aos meus olhos atuais, uma imensa reportagem sobre os fatos da época, com personagens incisivos colhidos no momento de suas ações e reações, escrito em prosa semi-ensaística de legível barroquismo, em frases tão extensas quanto ansiosas, como se Dickens fora um antepassado de José Saramago metido em querelas políticas de outras tonalidades e anteriores  à crítica da globalização que o português tornou um adesivo à sua figura de escritor.
A extensão não prevista da postagem não recomenda, mas quem chegou até aqui merece a reprodução de pelo menos um trecho para entender de que prosa se está a falar: o parágrafo em que Dickens entra com a gente nas masmorras onde os condenados pela fase que ficou conhecida como “O Terror” esperam o beijo da guilhotina em seus inúteis pescoços . “Na escura prisão de Conciergerie, os que deviam morrer aguardavam seu destino. Eram em número igual ao das semanas do ano. Dos vagalhões da cidade para o oceano eterno e infinito, cinquenta e duas cabeças rolariam naquela tarde.  Antes que esvaziassem suas celas, novos ocupantes eram designados; antes que seu sangue se misturasse ao sangue derramado na véspera, aqueles que se misturaria ao deles já estava separado.”

domingo, 18 de março de 2012

Meus diários sem motocicleta




Como fazer um filme render um pouco mais a cada vez que é visto. E ainda evocar os amigos que com quem a gente foi construindo as várias etapas de um negócio complicado, divertido, belo e surpreendente chamado vida




A primeira vez em que assisti a "Diários de Motocicleta" achei o filme propositadamente largado, como se fora essas bandas de rock atual que, copiando o desprendimento pop de Los Hermanos, apresentam-se em camisas quadriculadas e tá bom demais. Quanto menos glamour, mais verdade - o que, evidentemente, acabou virando outro clichê, ou seja, uma nova inverdade que acabou de ser inventada e assimilada. Ao filme: a culpa pela má impressão foi mais minha que dele. Já disse uma vez neste gasto blogue mal alimentado que a apreciação de um filme depende muito de um certo elemento exterior à luz, ao roteiro, à interpretação dos atores, ao estilo visual, ao ritmo e todos os outros quesitos pelos quais a fita na tela ou no DVD caseiro pode ou não nos atingir em cheio. Este estranho elemento somos nós mesmos, a nossa disposição naquele dia, o clima interno segundo a meteorologia pessoal do momento. Digo isso com base em minha recente (recente?) experiência de assistir a filmes (no cinema, em casa já houve avanços) quando posso e não exatamente quando quero. Sou do tempo - essa digressão vai longe mas já-já eu volto ao ponto - em que se tomava banho e se vestia uma roupinha legal para sair de casa naquele passeio quase ritual rumo ao cinema da rua. Isso aí ficou impregnado até hoje - não tem banho que tire ou pelo menos desbote. Como as circunstâncias mudaram, vejo-me procliticamente obrigado a ir ao cinema depois do trabalho - resultado: quem sofre é o filme, sobre cuja pessoa eu despejos meus incômodos. Pra resumir: um cansaço acumulado de uma jornada de trabalho é, pra mim, a melhor maneira de estragar um filme de que, de outra maneira, eu iria gostar muito.


Foi isso o que aconteceu com minha estreia em "Diários de Motocicleta" em sala escura e tela grande. Mas não apenas isso: havia uma expectativa por algo grandioso que o filme, obviamente, não é (e nem interessa se ele avisa isso num letreiro logo no início, que expectativa é que nem hábito, não sai no banho nem a poder de bucha seca). Enfim: esperava um painel latino de cores fortes, uma visão mais apaixonada de um homem por seu continente, algo mais apegado e menos distanciado do que o que me trouxe o filme. Intoxicado por essa expectativa, achei que Walter Salles quis fazer um filme "tipicamente independente", com aquela aura cool que acabou desprezando o calor de nosotros. Em parte, ele fez isso mesmo. A questão é que, ao fazer esta outra opção, ele também fez um filmão, embora com cara de filminho.


Só precisei rever "Diários de Motocicleta" mais uma vez para entender o engano em que caíra na primeira exibição. E passei a gostar cada vez mais do filme, progressivamente mais (permitam a redundância, mas preciso dela para dar conta do que pretendo dizer), abrindo novas portas a cada vez que o vejo e vejo de novo. E olhe que revejo muito este filme. Hoje mesmo o fiz. E depois de me deter, nas exibições anteriores, em aspectos como a forma intimista e quase sutil como o filme mostra o amor que o personagem devota à gente de seu continente, ou o tom quase documental de sequencias como aquela em que visita uma espécie de feira nos belos cafundós do Chile, ou ainda de passar o filme inteiro somente absorvido pela beleza deselegante e meio encabulada de campos e pequenas cidades por onde passam os amigos Ernesto e Alberto; depois de tudo isso, na exibição de hoje dei-me conta de que, além de ser um "filme de estrada" (se é o caso de catalogar e explicar seu fascínio para quem por ele se deixa fascinar), este é também um "filme de formação". Ok, tudo isso é muito óbvio, mas hoje, pra mim, sobressaiu, muito mais do que a juventude de um futuro mito, a convivência de uma dupla de amigos recriando a vida em aventuras em comum numa determinada fase da existência. Não sou Guevara, não desci de Sierra Madre, tampouco tomei Cuba para os braços do sonho da igualdade revolucionária mas hoje assistindo a "Diários de Motocicleta" me lembrei dos amigos em comum com quem dividi períodos ricos da minha vida pequenina e invisível.


Grandes amigos e dificílimas figurinhas premiadas como Ítalo, Gilton, Tonho, Augusto Cesar, Jano, Carlão, Adriano, Renato e Plácido - estes dois últimos já na fase atual em Brasília. Cada um deles foi um companheirão nas jornadas que vão da infância no interior à juventude na capital, da descoberta de uma profissão às vivências da maturidade. São personagens do meu diário sem motocicleta, mas cheio de bons momentos. Esse post é dedicado a eles, todos eles.

quarta-feira, 7 de março de 2012

Gabo, 85



O primeiro Gabo vinha já trazia um assassinato sob encomenda, ruelas saturadas de cores latinas, parentescos e paixões carnais e cruzadas. Era “Crônica de uma morte anunciada”, que capturei entre as jóias dispersas nas estantes da biblioteca municipal de Parelhas, interior do RN, cidade onde cresci. O acervo,  mal sabíamos nós inocentes aprendizes de leitores, continha um vasto manancial de pepitas numa cidade pequena e sem livrarias. Faltava um orientador, um cérebro capaz de tanger as aventuras literárias dos infantes. Mas, com na ausência reside a força, eu e os amigos nos metíamos entre aquelas estantes e, sabe-se lá com base em quais desígnios, separávamos o lixo cívico tão em voga nas infâncias dos anos 70 da moeda literária forte que também, como por milagre – nada a ver com o econômico de então – ali existia.

O segundo Gabriel Garcia Marquez deve ter sido mesmo o tijolo fundamental dessa América de nosotros, “Cem anos de solidão”, que certamente eu consegui em outra biblioteca. Um parênteses para encaixar a realidade dessa circunstância nas facilidades dos dias atuais: livros, naqueles tempos de estudante, raramente saiam do próprio bolso; livrarias eram vitrines onde o desejo fetichista de adquirir este ou aquele outro título se contentava em apenas projetar-se nos reflexos. “Cem anos”, então, tenho quase certeza, veio da Biblioteca Central da UFRN e foi devidamente devorado numa daquelas férias no interior em que se dava um tempo da universidade ocupando por tardes memoráveis de evasão mental os bancos da praça da cidade do interior. O clássico absoluto de García Marquez, nesta condição, fez companhia a coisas como “A ilha”  e “Olga”, de Fernando Moraes, e “O cavaleiro da esperança” e “Tocaia grande”, de Jorge Amado.  O banco da praça continua lá e pode confirmar tudo isso. Anos mais tarde houve uma releitura a partir de um volume baratinho, desses de promoção das bancas, adquirido num feriadão em Fortaleza. Releitura é o máximo: a gente esquece da importância das vitaminas para o corpo e fica só sentindo o gostinho do prato.

Depois da primeira leitura de “Cem anos”, veio “O amor nos tempos do cólera”, aquela leitura prazerosa que se faz quando já se estabeleceu uma sintonia anterior com um dado autor. Gabo era como vizinho, companhia para os dias de domingo enquanto o sol e o vento natalense batiam com carinho nas vidraças da janela da Residência Universitária Campus I, apartamento 11 – o célebre  apartamento 11, permitam esse enxerto – onde fez companhia a Bukowski e um bocado de malditos de estimação.  “O amor” foi o primeiro Gabo de próprio bolso, resultado da renda de repórter iniciante, tomado pela paixão a um ofício. Bons tempos.

Recentemente, Gabo reapareceu nas mais de 500 páginas em espanhol de “Viver para contar”, que comprei em Buenos Aires e li no original, certamente perdendo muito da informação objetiva que o livro traz mas tão certamente quanto saboreando muito mais a musicalidade da escrita primeira desse texto memorialista. “Viver para contar”, como acontece com livros marcantes, sempre vai me lembrar o tempo e lugar em que foi lido, no caso dele os oitões, sombras de árvores e calçadinhas da casa onde morei no Lago Norte, em BSB Citi. A edição propriamente dita caiu no fosso de um momento de extremo desapego que me acometeu quando nos mudamos da casa de volta para este apartamento aqui no Sudoeste. Doei pilhas de livros para uma escola pública de segundo grau na Asa Norte, entre eles meu “Viver para contar” salpicado de grifos e ainda cheirando à ansiedade que vazava dos meus olhos enquanto o decifrava com meu espanhol de terceira.

Outros Gabo virão antes que o próprio complete os cem e se iguale em longevidade ao arquiteto brazuca que todo dia ri da morte.

sexta-feira, 2 de março de 2012

A arte do silêncio



Há filmes que são uma evocação (“Cinema Paradiso”), como há outros que são uma epopeia (“O poderoso chefão”). Há filmes que são um poema (“O Carteiro e o poeta”), como há filmes que são um ensaio (“A árvore da vida”). Há filmes que são uma fantasia (“O mágico de Oz”) e há outros que são uma denúncia (“São Salvador, o martírio de um povo”). Há filmes que são um libelo (“Cabra marcado pra morrer”) e há filmes que são um hino (“Hair”).


"O Artista” é um estudo. Nada professoral, nunca pedante, jamais formal, de maneira alguma didático, mas um estudo, sempre, mesmo quando não parece – e quase sempre isso acontece. É um compassado estudo áudio e visual sobre como uma mudança de tecnologia pode interferir na poesia narrativa e na magia encantatória de uma arte como o cinema. Filmado em branco e preto, naquele formato dos filmes mudos e praticamente sem falas (mas com ruídos e intervenções sonoras meticulosamente precisas para sensibilizar a audição visual do público), “O artista” passa como uma valsa dos anos 30 na nossa frente, dançando na sua melodia evolutiva muito própria, enquanto discorre, disfarçadamente como um mágico de calçadão, sobre os mecanismos internos de seu artesanato.

Se fosse literatura, “O artista” seria uma novela, de páginas com entrelinhamento bem diluído, como aqueles textos que, por ocuparem pouco espaço no papel têm o poder de fazer mais vívidas cada uma de suas palavras. São os artifícios deste estudo que lembra, no enredo, na aparência e na combinação de seus vários elementos um  cruzamento de “O garoto” com “Farrapo humano”, mas batido numa tigela tal de culinária cinematográfica que a calda final resulta mais fluida assim como o verso soa mais etéreo que a prosa. Chapliniano pelas artes de um cão que só falta falar em cena – o que não seria menos lírico num filme que se vale tão bem dos sons do silêncio – “O artista” tem o poder de decantar, enquanto é projetado, todo a algaravia do cinemão atual, toda a potência estéril de mil “Velozes e furiosos”, todo o ribombar inútil de toneladas de “Transformers”.

“O artista”, o filme que é um estudo, só é professoral neste sentido de pedir silêncio na sala para que a aula de cinema seja o mais completa quanto for possível. Pena que o barulho dos dentes cravejando pipocas de adultos infantilizados na fila ao lado nem sempre permita a totalidade da imersão. Mas seria querer demais.

2012 cabalístico


O fim do mundo, está claro, é alguma coisa assim como o tal do gosto: cada um tem o seu e não se discute. Ou melhor: os seus. Ou vai dizer que seu mundo nunca acabou pelo menos umas três vezes para que outros se instalassem no mesmíssimo lugar? Quem tem pelo menos quatro décadas de vida já deve ter passado por ao menos uns três fins de mundo, caso contrário tem algum problema. Pode até não ser o fim do mundo, mas um divã de analista ou ombro amigo já ajuda a resolver. O fato batidíssimo é que este 2012 tornou-se, meio sem que a gente se desse conta, meio que aos poucos, comendo pelas beiradas das ideias, numa promessa de ano bem divertido que já vai se cumprindo. Bastou uma teoria, uma profecia, um calendário exótico, uma maldição pop pra dar uma outra cara aos presentes 365 em vigor: 2012 é o ano do fim do mundo. Mais um, diria você. Aproveite, diria eu.

Aproveite exatamente não no sentido que lhe deu aquele samba de Assis Valente, “E o mundo não acabou”, brilhantemente interpretado, entre outros, por Eliete Negreiros naquele seu disco “A Canção Brasileira – Nossa Bela Alma”, um CD tão bom, mas tão bom que depois de ouvi-lo você não ia se importar nada se o mundo simplesmente se acabasse como quem renuncia à mera possibilidade de haver algo mais tocante. Mas o assunto aqui não é música: é o fim do mundo. E, como dizia, como tantas outras coisas ele não é único – apesar de implicitamente trazer essa condição embutida. Explicitamente, esse fim do mundo definitivo cai na folia e se transforma em algo multicultural como o carnaval de Pernambuco. Por assim dizer, tem fim do mundo em forma de troça, de bloco lírico, de maracatu, de caboclinhos, de potentado pop no Marco Zero e, claro, fim do mundo bem carregado, tipo Rec Beat.

Pra comprovar a diversidade dos fins do mundo você nem precisa ir muito longe: analise os seus e tá esclarecido. Eu, por exemplo, tenho minha pequena coleção de relicários apocalípticos no museu da memória. O primeiro deles foi o incêndio de um supermercado que presenciei criança na minha cidade de origem, Parelhas, Seridó potiguar, numa noite em que, como num filme com trilha de John Williams e direção de Spielberg, a cidade inteira foi acordada aos socos nas portas durante a madrugada pra tirar o time de casa e rumar para a zona rural em caminhões improvisados. Tudo porque o mercadinho Tem-Tem (não ria, o caso foi sério e o risco altíssimo) estava em chamas. Sabe o que tinha ao lado do super? O posto de gasolina da cidade, com tanques cheinhos, pronto para liberar todos os cavaleiros da cisão final. Tá de bom tamanho ou precisa mais?

Tem o dia do terremoto em João Câmara, que ocorreu no trairi potiguar mas também sacudiu Natal e fez dançar o chão e cantar as janelas da residência universitária onde eu morava então, nos latifúndios da UFRN. O trote percussivo dos moradores da residência – todos homens, cada um mais macho que o outro – fugindo em disparada no corredor  do primeiro andar para salvar a vida enquanto tudo balançava foi algo como ouvir a cavalgada das sete bestas do Apocalipse sem saber bem como e porquê. Enfim, como dizem os especialistas no assunto – aquele pessoal que pega um tema árido e logo o envolve em mil camadas de análises filosóficas, metafóricas e pop-divertidas – o fim do mundo é muito pessoal mesmo.

O lance legal do calendário maia que torna 2012 essa diversão em forma de medo é um tal alinhamento astronômico que só acontece a cada 26 mil anos, com o sol no centro e os planetas da Via Láctea todos em linha reta com ele. Eu leio isso e fico pensando no torcicolo que acomete os astros para que tal configuração se realize: é o fim do mundo mesmo; e quem sofre recorrentemente de dor no pescoço por causa dos malditos travesseiros que prometem, prometem e nunca garantem uma noite boa sabe do que estou falando. Também estourou aí – estourou é um verbo aleatório, sem segunda leitura, por favor – uma história sobre um tal de 2003 QQ47, que seria uma sobra de explosões do sol correndo desembestada na direção de algum lugar entre a barragem Gargalheiras em Acari Citi e os recortados litorais japoneses. Mas, fala sério, com uma denominação científica como essas – 2003 QQ47, que mais parece o nome verdadeiro do X3PO da Guerra nas Estrelas – não vai dar não.

Medo pede apelido forte, tipo... “mensalão”, pronto. É pronunciar e não precisa explicar mais nada:  o negócio é matar ou morrer – e a racionalidade que se dane junto com o mundo. Nem vou botar Nostradamus, a Bíblia e Delúbio nesse papo. Deixa os caras em paz que o assunto aqui é algo grande demais pra gente se distrair com os vai-e-vem do Supremo Tribunal Federal. Tá bom: só pra fechar a analogia sobre fim de mundo e renascimento, não custa lembrar que quando explodiu (sem trocadilho) o tal escândalo, não faltou quem decretasse o fim do mundo para Lula e o PT, sem saber que junto com essa sentença estava também eliminando por antecipação toda a mudança econômica e social que ainda estava por vir e mudou a face do Brasil como há muito os brasileiros esperavam. Mas, pensando bem, quem agiu assim estava mais era torcendo contra do que analisando, como aliás se tornou hábito a partir de alguma semana do ano de 2003 na imprensa em geral.

Por falar nisso, algum especialista já tentou aplicar o conceito de fim do mundo à maneira como o Brasil lê sua imprensa ou vice-versa? Sugiro que a pesquisa comece por dois jornaisrecém-fechados na Paraíba. Eu disse que o Armagedon é um cara de muitas faces. Escolha a sua e divirta-se. E não perca tempo, que é só até dezembro.