segunda-feira, 28 de maio de 2012

Verdade e Ficção


Romance-espionagem de Luiz Gutemberg pode até parecer livro de bolso, mas revela-se mais incisivo ao reconstituir o mundo dos generais-presidentes do que o painel documental de Élio Gaspari. E ainda vale por uma comissão da verdade informal.


O livro está fora de catálogo, mas a discussão está na ordem do dia. Agora que a Comissão da Verdade foi instalada e designada, toda vez que você ouvir um convertido de última hora dizer que é preciso também apurar os tais “crimes da esquerda”, pode muito bem lhe tacar na cabeça o romance de espionagem brazuca “O Jogo da Gata-Parida”, de Luiz Gutemberg, edição da Nórdica hoje só disponível em sebos, como o exemplar que encontrei no Sebinho de Brasília e tracei em velocidade bem maior do que a que o país levou para admitir a criação da Comissão da Verdade.

Mas qual o poder de fogo de um livro típico daqueles lançamentos da década de 80, quando jornalistas censurados durante anos finalmente botavam pra fora, como podiam, as histórias da violenta repressão política vivida pelo país até a noite anterior? O leitor pode achar que se trata de leitura datada, feita para dar vazão a um sentimento de época, coisa que o Brasil não leva mais que 15 anos para esquecer e tocar pra frente. Poderia ser, mas o diabo dos detalhes, aquele que mora onde menos se espera, trata de proporcionar uma outra leitura à ficção semidocumental que produziu Gutemberg, jornalista que habitou o vídeo dos telejornais da TV Bandeirantes durante anos, você lembra. Era o “Guti”, como gostava de abreviar Marília Gabriela.

O primeiro detalhe é uma ironia: o fato de uma ficção ter tanto a dizer sobre a página infeliz da nossa história. Sim, porque ao juntar as informações e o caldo de cultura do período da transição iniciado no governo Geisel até a indicação do general Figueiredo para sucedê-lo, Gutemberg até deu novos (codi)nomes aos personagens da já distante “abertura política”, mas o que está descrito na sua elaboração ficcional comporta, pela liberdade do gênero que aqui e ali beira o livro de bolso (e isso não é um defeito, ao contrário), uma reconstrução muito mais verdadeira do que, por exemplo, aquela série de livros documentais escritos por Elio Gaspari.

Não que o painel composto pelos livros de Gaspari seja ruim – é outra coisa que se lê afogando num pântano de curiosidade histórica das mais movediças. A questão é que, se Gaspari construiu toda sua elaboração do período militar a partir de notas e impressões do general Golbery – sua fonte pretérita que acabou definindo muito de sua visão, com a qual nem sempre o leitor atento tende a concordar – no caso de Gutemberg o ponto de vista é mais, digamos, “assumido” – e por tabela, intelectualmente mais honesto. Assiste-se à novela política e paramilitar da imposição do general Figueiredo como “candidato do sistema” – vencendo com as armas da época dois concorrentes de peso ombro a ombro nas mesmas fileiras do generalato, é lógico – por dentro do processo, entre quartéis, salas do “serviço” (SNI) e carros equipados com transmissores para ouvir  telefones e ambientes grampeados como jamais sonhou a inocência ética de um Gilmar Mendes.

Ou seja: enquanto a não ficção séria de Gaspari gargareja a voz oculta de Golbery, a ficção livresca de Gutemberg não tem pudor de contar tudo – ou ao menos o episódio da escolha de Figueiredo dentro do painel geral da ditadura – pela ótica interna dos generais no poder. Resultado da equação: o “inventado” , no caso, pode ser muito mais contundente do que o “recriado”. Sobras da equação: se, entre os própios militares da cúpula do poder, cada qual mais guarnecido de costas quentes do que o outro, as artimanhas competitivas contavam com chumbo para-oficial de tamanho poder de fogo – há até um sequestro na história de Gutemberg – imagine-se o que tal poder não chancelaria diante dos esfarrapados e ingênuos grupos de esquerda armada nas noites anteriores?

No  livro de Gutemberg não tem Marighella, Lamarca ou Yara. Não tem a Dilma da ficha publicada pela Folha. Tem Figueiredo, Octávio Medeiros, o próprio Golbery e os demais integrantes da távola militar de então. Não li, mas posso dizer por informações transversais que tem também o elevado grau de conspiração interna presente em outra não ficção marcante do período – a “Guerra das Estrelas” em que outro jornalista conhecido, Carlos Chagas, narra outra sucessão, a de Costa e Silva, de quem foi assessor.

Por oposição, e por não sair nunca dos limites verde-oliva do alto generalato brasiliense do final dos anos 70, o livro de Gutemberg serve de espelho à investigação da Comissão da Verdade recém-instalada. Toda vez que alguém vier falar em excessos da esquerda, sua chapa de vidro em forma de páginas impressas estará lá, refletindo e devolvendo em raios luminosos de fina ironia a desproporcionalidade da acusação. “O Jogo da Gata-Parida”, que poderia muito bem ser relançado à sombra desses novos acontecimentos, é uma comissão da verdade informal e à parte, que as novas gerações esquecidas ou mesmo ignorantes das coisas de então poderiam e deveriam conhecer.

quarta-feira, 16 de maio de 2012

Um livro, muitos filmes



A narrativa sobre o Glauber Rocha pré-Deus e o Diabo feita pelo cronista do Leblon contém pelo menos três boas ideias de roteiro para filmes. E uma omissão típica de quem não enxerga além da Zona Sul do Rio de Janeiro

Um bom livro sobre cinema, cineastas ou de ensaios sobre a sétima arte pode ser aquele que contém um filme interno, com uma narrativa que mesmo sendo escrita produz um efeito visual irresistível, personagens que cativam ou trechos/cenas que impactam. Pois o livro que o mala-pop Nelson Motta escreveu sobre a juventude de Glauber Rocha, “A Primavera do Dragão”, consegue ser bem mais que isso. O que dizer de um livro que contém em suas econômicas 360 páginas – muitas delas ricamente ilustradas num projeto gráfico que lembra mais uma revista de bom gosto – três filmes possíveis? Ficam faltando somente cineastas dispostos a encarar a tarefa de tirar esses filmes do livro e colocá-los nas telas. Mas são absolutamente filmáveis e apreciáveis em sala escura ou DVD pelo menos três das histórias que o último cronista do Leblon garimpou ao pesquisar a vida de Glauber Rocha desde a infância até o momento da consagração no Festival de Cannes em 1964 (com a exibição de “Deus e o Diabo na Terra do Sol” que, embora perdendo para o francês “Os Guarda-Chuvas do Amor”, foi a grande sensação daquele ano) para este livro tão bonito quanto interessante – e ligeiro, o que conta muito para os leitores ditos impacientes.

As sinopses estão lá, à espera de quem se candidate a filmar: a mais fascinante delas poderia se chamar “A Princesa da Casa do Padre”. Iria narrar o fascínio que reinou entre os moradores do vilarejo onde um certo dia chegaram Glauber e sua tropa de artistas e técnicos para rodar “Deus e o Diabo”. Havia, entre todos, uma estrela – mas que estrela! Era Yoná Magalhães, que numa temporada teatral em Salvador virou a menina dos olhos do filho de um latifundiário local. E filho de latifundiário baiano nos anos 60, você sabe, pode tudo: até fazer com que Yoná, que já era uma atriz “nacional” na época, largasse tudo para casar com ele e viver na Bahia. Ocorre que o tal filho de latifundiário tornou-se também o principal financiador de “Deus e o Diabo” (essas contradições brasileiras, vá entender) e Yoná seu principal personagem feminino, a Rosa, como está cansado de saber quem assistiu ao filme. Pois bem: como já chegou estrela a Salvador, sempre houve em torno de Yoná um tratamento de celebridade à antiga. Agora você transfira isso pro lugarejo onde foi filmado “Deus e o Diabo”. O relato do livro é de que foi alugada apenas para Yoná a casa do vigário local – obviamente, a melhor da cidade. E lá vivia a atriz, protegida pelas janelas fechadas, gerando um rumor de curiosidade e veneração entre os habitantes locais que, coitados, mal sabiam o que era a produção e realização de um filme. Não demorou a se espalhar a história de que quem vivia na casa do padre era uma espécie de princesa. Dá ou não um filmaço? Pense nisso nas mãos de Guel Arraes, com um tratamento lírico-cômico-nordestino como só ele é capaz de fazer sem culpa?

A outra história é sobre a cena em que o personagem do beato Sebastião exorta sua multidão de seguidores e sobe com eles o monte santo do lugar. Essa multidão de quatrocentos figurantes foi recrutada entre os moradores do lugarejo mesmo. E recebia um salário para atuar no filme. Mas quem disse que eles estavam dispostos a subir o tal monte umas quatro vezes, debaixo dos gritos de Glauber e diante daqueles trambolhos esquisitos que eram as câmeras? Deviam se perguntar: pra que subir tanto – uma vez não basta? Enfim, houve resistência. Foi preciso que aquele mesmíssimo filho de latifundiário recorresse a um pagamento extra: latas de leite que ele retirou dos estoques do pai, que também tinha o costume de diversificar seus negócios. Com a promessa de duas latas de leite em pó para quem participasse da cena, choveu figurante. Veio gente dos vilarejos vizinhos, o beato brilhou e, como vem diz Nelson Motta no livro, “Glauber chorava atrás das câmaras”.  Mas como diz aquele personagem de Billy Wilder numa das falas mais célebres da história do cinema mundial, “ninguém é perfeito”. Pois um defeito na câmera melou a filmagem e foi preciso fazer tudo de novo. Sem estoques de leite em pó, restou a alternativa de rifar uma máquina de costura entre os figurantes pra ver se novamente era possível atrair outra multidão. Deu certo, como você pode ver alugando o DVD e vendo novamente  o filme. Uma história à parte que dava sozinha um outro filme, bastasse um Fernando Meirelles encarar a missão com a mesma energia de seu antecessor no posto de cineasta número um do país. “Os Figurantes de Deus e do Diabo” não seria um mau título. Até um documentário renderia, nas mãos de um cabra disposto a encontrar, hoje, os mesmos figurantes de então e ver como eles se encontram agora.

A última das três histórias contidas no livro “A Primavera do Dragão” que merecia ser filmada é de natureza mais poética, daria um filme mais singelo, uma produção mais Walter Salles: narraria a decisão de Glauber, muito antes de filmar qualquer coisa, de sair em expedição pelo interior do Nordeste para se inteirar melhor da realidade de sua gente e de seu país. É um road movie perfeito como foi, por exemplo, “Cinema, Aspirinas e Urubus”, de Marcelo Gomes – outro que poderia rodar com os pés nas costas essa terceira história. E seu momento culminante se dá quando Glauber encontra o poeta pernambucano Ascenso Ferreira num vagão de trem. Só a locação já é um poema visual em si: Ascenso, lembrem-se, é o autor daquele célebre poeminha cujo trecho todo mundo conhece e que repete, na sua métrica, o barulho do trem em movimento: “Vou danado pra Catende / Vou danado pra Catende / Vou danado pra Catende/ Vou danado pra Catende/ Com vontade de chegar” (o poema é o Trem das Alagoas). Sentiu alguma coisa meio “Diários de Motocicleta” no clima desse encontro? Então...

O livro é mais que conhecido; a capa, com uma foto de Glauber solarizada, lembra aquele disco de Caetano Veloso de 1981 (“Outras Palavras”); a leitura corre ligeira que nem o trem das Alagoas; as ilustrações dão a impressão de que você está lendo uma dessas revistas culturais; as histórias de bastidor são saborosas como é imprescindível neste tipo de livro; as letras são grandes para quem já está com a vista prejudicada e “A Primavera do Dragão” ainda contém esses três filmes embutidos. Dessa vez o mala-pop Nelson Motta matou a pau. Só cometeu um deslize: esqueceu de mencionar na introdução um outro livro, tão importante quanto (ou mais) que traz a biografia inteira de Glauber Rocha( “Glauber Rocha – Esse Vulcão”), escrito pelo baiano e companheiro de geração do cineasta João Carlos Teixeira Gomes. Mas, como o alcance da lente intelectual de Nelson Motta não vai além da Zona Sul do Rio de Janeiro (e, quando passa disso é sempre ali pros lados de Manhatã), o esquecimento fica explicado. O fato é que são livros diferentes – enquanto o do carioca de Manhatã vale como bate-papo divertido, o do baiano brazuza se sustenta nas suas 600 páginas como estudo de profundidade explicitada. Melhor ler os dois. Enquanto se espera que aqueles três filmes entrem em cartaz.

terça-feira, 8 de maio de 2012

SOS jornalismo!



A julgar pela manchete da edição de hoje, o jornal “Correio Braziliense” está seriamente empenhado em tomar o eventual lugar que a revista “Veja” deixe desocupado ao final desse processo de perda de credibilidade em que a publicação da editora Abril vai se afundando. O jornal que chegou aqui em casa hoje traz o seguinte destaque principal na sua primeira página: “Uma bolsa sob medida para o PT nas eleições”.  A notícia (que o jornal “O Globo”, só por efeito de comparação, deu numa mera nota de coluna na página 2 desse domingo) é sobre o lançamento do tal “Brasil Carinhoso” que vai reforçar ainda mais a política compensatória – e, por outra via, econômica mesmo, disse se falará mais adiante – de redistribuição de renda por meio do auxílio financeiro direto. O anúncio será feito a dois meses da eleição  municipal, daí a ilação editorial feita pelo Correio, que não é bem aqui o objeto da contestação.

A questão é o ódio antipetista que o fato de alçar tal notícia a manchete e com tamanha carga de rancor editorial (muito além do caráter, vá lá, “fiscalizatório” da imprensa quase sempre exercido com seletividade constrangedora) demonstra. Jamais vi – trabalhei no Correio e durante boa parte do tempo exatamente como redator desta mesmíssima primeira página – tamanha fúria fiscalizatória quando o PSDB estava no poder. Não lembro de o jornal investir de tal maneira, destacando o partido governista em particular com semelhante ênfase manifesta e latente ressentimento subtendido. Entendo que a grande parte do público leitor do Correio esta manchete causa um infeliz contentamento: é o vasto círculo de assinantes que compõem a classe média estabelecida de Brasília (uma classe que até a era Cristovam era petista de brigar na rua com cabos de bandeiras vermelhas contra as azuis de Roriz, veja a ironia) que tem completa ojeriza a qualquer forma de bolsa, compensação, cota e similares. Mesmo assim, botando na balança qualquer forma de adulação mútua entre editores e leitores, a manchete é um exagero que merece repúdio. Só se explica, repito, caso o “Correio” esteja com inveja da belicosidade editorial da “Veja”. Por que não recontratam logo para redator o tal Policarpo, que também já passou por lá?

Abre-se o jornal e na página 4 a colunista Denise Rothenburg mal consegue conter suas simpatias tucanas ao analisar o noticiário político de Brasília. Aqui é necessário um parênteses: é bom que os jornais, sobretudo o jornalismo impresso, contenha profissionais que naturalmente nutrem as mais variadas simpatias político-partidárias, até o ponto, igualmente natural, de saber administrá-las. Eu, por exemplo, que nunca tive sequer espaço para manifestar com destaque minhas simpatias idiossincráticas, sempre fui muito cioso de não estar fazendo isso sem pensar ao editar reportagens feitas pelos colegas. Faço isso diariamente como editor do telejornal da TV Câmara, onde trabalho. No caso do colunismo de jornal impresso, espera-se naturalmente uma análise. E concorda-se, num pacto informal entre leitor e jornalista, que este tenha uma afinidade maior com tal ou qual tendência ou partido. Se o jornal que o publica tem a saudável política de publicar também outros jornalistas com visões diversas daquele, está tudo no equilíbrio, na paz. O “Correio”, por exemplo, publica análises de Marcos Coimbra que eu aprecio muito mais. A questão aqui é quando o jornalista deseja vender para o leitor uma análise que é muito mais decorrente de suas afeições do que da configuração geral do país que deveria ser seu objeto de análise.

Sem mais circunvoluções: ao falar sobre o contentamento no Palácio do Planalto pela eleição do socialista François Hollande na França, a colunista empurra texto adentro, como se fora algo de senso comum (mas é assim, dessa forma aparentemente casual, que muitas vezes se forja o senso comum desejado) o comentário de que é errada a comparação entre o momento que a França vive agora com Hollande e o que o Brasil viveu em 2002 com a chegada de Lula ao poder. Por quê? Ora, porque segundo a analista, Lula não alterou as bases da política econômica de Fernando Henrique. Pois eu e milhares de milhares de brasileiros dotado de um mínimo de inteligência não dirigida pela grande imprensa e de uma porção qualquer de sensibilidade social discordamos: pra nós, tomar o caminho da redistribuição de renda, usar as tão renegadas bolsas em dinheiro como forma de movimentar a economia de regiões esquecidas na era tucana como o Nordeste, elevar o salário mínimo a patamares condizentes com o amplo espectro de bolsos brasileiros que dele dependem são sim, POLÍTICAS ECONÔMICAS. Reinstituir diretrizes mínimas de Estado onde antes só tinha vez a lógica absoluta do mercado é sim política econômica.  Se o jornalista acha que política econômica se resume à ata da reunião do Banco Central ele está viciado em números, acomodado nos gabinetes, intoxicado por uma ordem – a neoliberal dos anos 90 – que há muito deu sinais de enfado, pra dizer o mínimo. A economia, jornalista, realiza-se na realidade das ruas, do comércio, da renda que vai e vem, do saque que o aposentado faz no caixa eletrônico que acabou de ser instalado, do incremento que muda a realidade de cidades antes pouco mais que estagnadas. Esse é um paradigma que ninguém quer quebrar – e nisso a jornalista Denise Rothenburg, como muitos de seus colegas que parecem mal conseguir conter o entusiasmo diante da mera lembrança da era FHC, não está sozinha. É geral essa dificuldade, pra não dizer teimosia.

A cereja no bolo dessa leitura do “Correio” de hoje está ainda na coluna de Denise Rothenburg. É preciso transcrever a sentença para que não pareça que estou aqui torcendo as palavras da jornalista: “O que o governo brasileiro espera de Hollande é que ele tenha a mesma sorte para poder servir de inspiração a outros países europeus”. Semântica é tudo: repare na palavra escolhida: sorte. Foi, na análise final da jornalista, o que Lula teve. Mérito, nenhum. Sensibilidade social de entender as carências e desigualdades do Brasil, nada. Inteligência financeira para perceber que a saída poderia estar no mercado interno e no exercício da soberania no plano externo, necas. Lula teve... sorte. É assim que um jornalista que não consegue controlar sua simpatia tucana (e aqui deixo clara a minha simpatia petista) analisa um  governo como o anterior que, em muitas e muitas faces, continua no atual. É assim que um jornal se desconecta da realidade, ainda que alimente com migalhas apetitosas de  rancor partidário e preconceito social os leitores que mantém, como fez na manchete desta terça-feira, 8 de maio.  

Ao final da leitura, vi reforçado o meu desejo inicial que surgiu só de bater o olho na manchete: cancelar minha assinatura. Não posso fazer isso por questão contratual – paguei pelo pacote anual. E também não devo por questões profissionais: meio servidor público e meio jornalista, condição de que muito me orgulho no meu modesto posto de trabalho na redação da TV Câmara, infelizmente preciso estar a par da maneira como os colegas que tantas vezes me julgam chapa branca exercem o jornalismo chapa cinza, aquele que coloca uma nuvem de fumaça entre a realidade e o interior das redações.

domingo, 6 de maio de 2012

O veneno de Bethânia



A cantora devolve em forma de fino biscoito musical as agressões que sofreu quando do caso do site de poesia. A questão é: a virulência da resposta não a iguala à violência dos seus detratores? E mais: eles não tinham, sim, legitimidade para contestar o subsídio fiscal ao projeto?




Maria Bethânia queria fazer um site de poesia. Não deixaram, ela fez o de sempre – um disco. E não deixou barato, nem uma coisa nem outra. E sacramentou à revelia – quem, afinal, pode se considerar juiz ou réu quando se trata dos novíssimos tribunais de internet, atualização dos velhos tribunais de bar? – uma nova relação entre artista e público. Ou melhor: entre público e artista – e a ordem dos fatores, o internauta atento sabe, nunca fez tanta diferença. Quanto agora.


Pensou-se um site com uma poesia por dia, criou-se uma polêmica com um protesto por minuto. Algo muito propenso a, como de fato aconteceu, virar um insulto por segundo. Um mal entendido por milésimo de instante. Uma contramanada solta na velocidade dos clics. Curtiu/ Não curtiu. Cobrou, não pensou. Denunciou, condenou. O fenômeno do site de poesia de Bethânia foi um caso perfeito e acabado – por complexo e, pra usar um termo da moda, transversal – de crise de credibilidade algo além de público e artista, como já se disse. Entrou no caldeirão o oportunismo de atingir o consagrado no que ele tem de mais vulnerável – a leve crosta da fama que a certo jornalismo causa tamanho apetite a simples possibilidade de, entre dentes, quebrar. Jogou-se na receita uma pitada de ácido contra o bem-sucedido, seja ele quem for ou em que área estiver. E usaram-se porções generosas de determinados temperos bem próprios da nossa viciada cozinha: garrafadas de desmancha-reputação; purgantes para diluir hipocrisias há muito solidificadas; xaropes contra certa soberba que os baianos tossem com gosto na MPB de desde sempre.


Micou o site, morreu o projeto de uma poesia por dia a peso de ouro regiamente anotado no livro das subvenções tributárias nacionais. Enfim. Deu-se por esquecido. Calou-se a voz da cantora a não ser para cantar – voz que obviamente nem se deu ao trabalho de se pronunciar enquanto a arenga ocorreu. Passou. E quando ninguém mais lembrava, chegou o novo disco da mesmíssima voz calada no projeto de declamar poemas subsidiados. E no novo petardo que a cantora lançou no mercado, mais que sugestivamente chamado “Oásis de Bethânia”, veio aquilo que a Classe C muito pouco poeticamente chama de “o troco”. No oásis baiano da cantora de palestino nome bíblico, mina no aparelho de som a resposta líquida e certa para o caso arquivado. Está tudo lá, na faixa “Carta de Amor”, terno nome para uma ironia mais que declarada. Bethânia despeja imprecações musicadas contra quem a hostilizou em 140 toques. E o grau de ira dessa resposta é tal que, no limite, faz o ouvinte – ao menos este ouvinte aqui, que lhes fala – indagar-se se a virulência de tal retorno não justifica, nos finalmentes, os equívocos cometidos na ida.


Em claras palavras: Bethânia, como outros, é essa voz que não cansamos de admirar e de ouvir. E antes de concluir é preciso dizer que eu pessoalmente julgo que a dela é a mais brasileira das vozes, que se fosse o caso de mandar para um planeta de outro sistema alguma voz que representasse a nós, morenos filhos desta terra, não haveria de ser outra a não ser a dela. E a essa conclusão cheguei não ao ouvi-la cantar (o que seria  muito mais que o bastante), mas ao ouvi-la como narradora de uma série de documentários sobre países de língua e cultura portuguesa, exibida há alguns anos no canal GNT, mas isso, afinal, não passa de um parênteses.  O que se quer dizer, nesta sofrida tentativa de retratação de um brasileiro comum diante do retratado pela cantora em função do caso que envolveu seu nome é na verdade bem simples: por maiores que tenham sido as porções de ira gratuita despejadas nas time lines da vida, o brasileiro comum, o internauta distraído, o crítico de botequim, o ativista de shopping ou qualquer um outro desses tipos acabados da sociologia das novas relações sociais tinha, sim, o direito de contestar o emprego do instrumento da licença tributária como forma de financiamento cultural no projeto de uma poesia por dia criado pelo cineasta Andrucha Waddington e que seria estrelado pela voz que tanto amamos de Maria Bethânia.


Não que a legitimidade da contestação não existisse antes – como disse, ela sempre esteve posta mas só agora, por uma virada tecnológica que se não iguala ao menos reduz a distância entre produto e consumo, arte e público, pode ser exercida plenamente. Inclusive com seus subprodutos indesejáveis como o insulto, a incompreensão, o equívoco. Ao final do processo, fica a contestação pura e simples: o valor do site era alto e envolvia uma personalidade artística que o mercado  da música há muito consagrou – portanto e por princípio, alguém a quem seria demais oferecer mais uma subvenção governamental que, por uma questão de política pública, foi pensada para garantir um mínimo de visibilidade a setores prontamente barrados na porta do mesmo mercado que recebe Bethânia de braços abertos. E é melhor que Maria Bethânia e quem quer que seja – artista consagrado ou aspirante a celebridade na tevê – entenda isso, essa mudança, esse novo status conferido ao público, o mesmo público a quem ela e outros tantos tantas vezes atribuíram poderes muito maiores. Em teoria, porque a tecnologia social de então não permitia que tal poder efetivamente se manifestasse – exageros e abusos à parte.


Ocorre neste caso um paralelismo entre a arte musical industrializada – o disco, o show, o cantor, o artista – e o segmento da militância política tradicionalmente à esquerda: neste campo aqui, foi comum durante anos o sujeito minimamente na condição de líder abrir a boca e encher os pulmões para falar em defesa do povo. Pois este mesmo líder de outrora agora se estranha com o mesmo povo que declarou representar. Quem estava enganado: o povo ou o líder? Se botar na balança, é um  caso PPS demais para rivalizar com a tensão bem maior, que envolve mais sentimentos simbólicos, que toca em afetividades muito maiores, da relação artista-público. Mas o paralelismo está aí, claro como uma daqueles faixas de protesto tipo “Abaixo a ditadura” que a gente vê nas antigas fotos das manifestações do Rio de Janeiro de 1968. Também há outro jeito de demonstrar sua validade: tente imaginar aquele líder  arrogante dos anos 80, hoje convertido no mais incomodado conservador que perdeu seu lugar na história por falta de sensibilidade social gritando, no lugar de frases em defesa do “povo”, brados retumbantes em favor do “povão”.


Pronto: bastou um leve desajuste linguístico para desmascarar o falso consciente – aquele que usa o discurso da democracia política para justificar seu recorrente e jamais abandonado egoísmo de classe. O que Maria Bethânia tem a ver com isso? Palavras, que são matéria de poesia. O verbo a que ela recorre para compor sua resposta no CD da vez – aliás, belíssimo em tudo o mais; e lembrando um outro delicado e inspirado momento acústico a que poucos se referiram, o disco “Ciclo”, dos anos 80. As palavras estão aí, mudando de sentido, adquirindo novas colorações. E se Bethânia se vale do seu oásis para oferecer água venenosa a quem a desabonou talvez ela esteja repetindo o mesmo equívoco daqueles que lhe dirigiram baldes de lama sem antes se inteirar melhor do que se tratava. Inteirando-se, provavelmente manteriam a opinião – mas destilariam a virulência. A mesma virulência que a cantora devolve agora, em igual medida, embora com a elegância de um biscoito fino.