quarta-feira, 18 de dezembro de 2013

Maratona Orlando



 Não posso contar tudo porque não dá pra contar tudo. Também não tem como enfeixar todas as impressões dispersas em uma frase, sentença ou avaliação restrita e inteligente. Não se trata de responder na lata com aquela opinião matadora quando alguém pergunta, tão na lata quanto: - E aí, como é que foi... Não é questão de falta de domínio da linguagem, de escassez de opinião ou de ausência de objetividade: é que, sendo uma pessoa do tipo tão vulnerável aos estímulos visuais, não consigo mesmo encaixotar em períodos verbais a intensidade daqueles a que fui exposto junto com Rejane, Cecília e Bernardo durante uma viagem de férias de seis dias em Orlando, EUA, a cidade famosa pelo complexo de parques temáticos da Disney e dos estúdios Universal. Tudo o que posso fazer aqui é salpicar gotas dispersas de sensações, cacos de encantamento mais do q ue naturais para quem passou a infância consumindo histórias em quadrinhos e similares, perdigotos descontrolados que o também natural deslumbramento faz chover da mente ainda congestionada.

Só não me peçam distanciamento, contenção, pé atrás ou qualquer outra postura que implique em uma abordagem meio blasé diante do que vi, ouvi, senti. Dá não, coração: desde a mais tenra idade, quando deixava minha aldeia de 14 mil habitantes no Seridó potiguar para visitar a metropolitana Caicó, minha cabeça virava. Imagine quando ia a Campina Grande!  O gigantismo urbano é algo que sempre me atraiu, e se você pretende entender melhor como é que isso se dá na cabeça de uma criança, experimente ler uma HQ do Homem Aranha, qualquer uma, prestando atenção nas cenas que se passam no ruge-ruge da cidade: eram aqueles prédios, aquele povo na rua, aquele agitação incessante que me fascinavam. E os parques da Disney e da Universal – sobretudo o Adventure Land, na Universal, na parte dedicada aos heróis Marvel  - condensa, empacota, sintetiza tudo isso e coloca você lá dentro, bem no meio das fachadas traçadas a lápis, da explosão de cores em forma de minicidade, enquanto o visitante se desvia das motos em que os super-heróis transitam de tempos e tempos. Sem falar no brinquedo 4D do Spider Man, aquela visita ao paraíso que me vi fazendo três vezes. Ainda bem que não tinha fila.
Falando em filas, desconfie delas. Ou melhor, não acredite tanto assim naquelas placas que indicam quanto tempo você vai levar para chegar à atração principal. Às vezes está lá 30 minutos, mas é entrar na fila e você percebe que, como diz o ditado, a fila anda, e anda rápido – e algumas vezes há atrações pra lhe distrair enquanto você está na fila. E o que é melhor, às vezes a atração da fila consegue até superar a atração principal, ao menos pra mim. Foi o caso do brinquedo chamado, salvo engano, A Grande Corrida do Cinema: a promessa, cumprida, é de que você vai, dentro do seu trenzinho, transitar por alguns dos maiores clássicos dessa arte americana. De fato, um gangster à James Cagney vai seqüestrar o carrinho em que você passeia, um tiroteio vai  lhe pegar no meio do caminho, Alien, o oitavo pass ageiro, vai borrifar sua cabeça com aquele bafo que só ele tem, e a bruxa de O Mágico de Oz vai lhe jogar imprecações antes de permitir que a viagem continue. Ocorre que, antes de passar por tudo isso, você vai esperar na fila que dá voltas numa simulação de uma sala de cinema onde todos esses filmes e mais outros são projetados numa tela de tamanho real, lhe dando a chance de ver trechos dessas produções que há muito não se consegue ver numa sala escura de verdade. O passeio é ótimo, mas ainda acho que a projeção – e no final do passeio você vai ver mais um pouco – não tem preço.
Orlando, a cidade em si, acabou ajudando meu coração provinciano a entender Brasília um pouco melhor: é uma cidade absolutamente plana, esquadrinhada por ruas que mais parecem auto-estradas. Entendi melhor o choque que tanta gente experimenta ao conhecer Brasília. Orlando é Brasília elevada ao cubo. Ninguém nas ruas. Ninguém. Calçadas, quando existem, são iguais às de Brasília – aquela trilha de cimento estreita entre faixas de grama. Aí você entra num out-let, num shopping ou mesmo numa daquelas gigantes lojas “de rua” (como a livraria do tamanho de uma loja de material de construção brasileira) e descobre onde as pessoas se escondem. Só não conseguimos mesmo foi entender onde as pessoas moram. É, moram. Porque tudo o que vimos, numa cidade que além de plana é de prédios predominantemente baixos, com uma ou outra torre sobressaindo, foram ins talações comerciais. Claro que não podemos dizer que “conhecemos” Orlando: os lugares por onde passamos, presumo, é que são assim. Deve haver uma cidade mais normal além do horizonte imediato, mas este não vimos.
E se dá pra fazer alguma tentativa de ser objetivo, arrisco dizer que o que mais me chamou atenção nas pessoas – nas quais também reparei, em busca daqueles pontos em comum que nos faz a mesma humanidade embora dispersa por países tão diferentes – foi um certo espírito assertivo. A assertividade americana, se posso dizer assim. Eles podem até não ser, mas parecem muito assertivos em tudo o que fazem: desde o negão que me ajudou a embarcar na conexão Miami-Orlando, explicando com firmeza, atenção e educação três vezes para que eu tivesse cuidado quando fosse retirar uma bolsa do bagageiro superior do avião, até a garota que, numa loja massa de quadrinhos em que infelizmente não pude me demorar, saiu do caixa – do caixa – para me explicar onde ficava uma loja de brinquedos que procurávamos para Bernardo. Atenciosos, educados, sorridentes, relaxad os (mas atentos ao trabalho, fosse ele qual fosse) e, numa palavra, assertivos: foi assim que os norte-americanos de Orlando me pareceram. Se alguém de coração menos provinciano do que o meu me disser que isso é porque se trata de uma cidade turística, vou entender perfeitamente. Mas por favor não me negue o prazer do deslumbramento, porque ele pode ser muito valioso num tempo em que desfazer de tudo e de todos no Facebook parecer ser a máxima sensação de prazer que alguém pode experimentar. Fico – e feliz – com o provincianismo, que me faz manter nos olhos um encantamento a ser despertado cada vez que vejo algo que sendo diferente é também bonito, interessante e estimulante. E a assertividade, aqui como lá, pode ser tudo: quem disse que o negão do bagageiro tinha a obrigação de sair do canto dele e dar tanta atenção a um passageiro desconhecido... idem para a garota do caixa.
Voltei com a impressão de que com assertividade a gente tanto pode atender bem um turista – a Copa vem aí, faça sua parte – quando construir um país. Dá trabalho, leva tempo, exige esforço e paciência (outra característica que vi muito entre os nativos gringos) mas acaba acontecendo. Se eles têm defeitos – um monte, e a manchete dos jornais e telejornais nos dias em que estivemos lá foi mais um daqueles massacres malucos em escolas – têm também qualidades como a assertividade. E, em viagem, desculpe aí mas tenho que defender meu ponto de vista, prefiro reparar mais nas qualidades do que nos defeitos. Na vida, em geral, também. Talvez seja isso o que esteja mais em falta entre nós, brasileiros.

terça-feira, 26 de novembro de 2013

Ê, Goyaz!



O cenário em volta é de filme de época, meio novela das seis meio conto de Tolstoi. Um ar metade Escrava Isaura, metade Crime e Castigo. Bruma, luar e silêncio. Continentais pedras no chão e uma torre gótica no alto. Luz amarela, que vem de postes fantasiados de lampião. É possível ouvir o canto mais pra melódico do que para rítmico dos saltos das sandálias das moças tocando o chão no que descem a ladeira. Onze da noite, os vultos – não fantasmagóricos, mas animados – começam a surgir e se solidificar em pequenos grupos na dança dessa descida. O destino é a Igreja do Rosário, que apesar do nome tipicamente colonial-brasileiro tem a aparência de uma Notre Dame tropicalizada tanto quanto possível no coração do Goyaz. E aqui se clarifica o completo da locação: estamos na Cidade de Goiás, ou Goiás Velho como eles não gostam de ser chamados – apesar do apelo poético deste outro nome; mas vai ver os habitantes já vivem saturados de poesia apenas pelo fato de residir nesta cidade mágica. Aqui, o acontecimento da noite é uma serenata.

Goyaz, a cidade, por estes dias e estas noites ganhou uma camada humana a mais entre seus becos e casario que parece desenhado a lápis de tão bonito – e no entanto se trata de um lugar habitado como qualquer outro, o que prova que a poesia não é nenhum delírio; embora felizmente o seja mas essa é outra questão. Os habitantes a mais de que se fala são os coralistas, palavra que nem sei se existe mas que aqui casa muito bem com a mais célebre figura da cidade, a poeta Cora Coralina – aquela que ensinou a sábia arte de viver enquanto entre nós esteve, ao misturar panelões de doces com o exercício da poesia, depois de retornar ao casarão onde nasceu uma vez tendo feito  crescer os filhos de outra etapa da vida que soube tão graciosamente encerrar para recomeçar à sua maneira. Os coralistas, pois então, casam com Cora e dão um retoque no fim de semana de uma Goyaz que realiza assim como um informal encontro de grupos corais.

Você está descendo malemolente a ladeira da Igreja do Rosário e é meio que elevado do chão pelo misterioso canto que vem não se sabe bem de onde. São os coralistas na igreja, cantando um repertório de clássica MPB radiofônica.  No dia seguinte, tarde-noite de sábado, eles estarão na praça, espantando com suas vozes o insuportável – e absolutamente alienígena – barulho repetitivo e poluído que vem de alto falantes cuspidores de funks feios, sujos, grosseiros e impacientes. Sim, Goyaz, apesar de a visão de 360 graus em torno sugerir tanta história e tamanha carga de sensibilidade urbana, também tem seus defeitos. Nada que um coral não possa interromper uma vez ou outra. 

Antes de retornar à serenata improvisada que saiu qual cortejo levando música às janelas da cidade, é preciso lembrar que Goyaz é aquele tipo de lugar onde tudo parece muito parado, nenhuma surpresa à vista além da placidez decorrente da contemplação de suas casas, museus e monumentos, inclusive os naturais, como a cadeia de montanhas da Serra Dourada que tudo cerca como se desejasse conter entre muros verdes essa poesia emanada no local.  Mas não é bem isso, como provam seus restaurantes mineiramente escondidos no meio do casario, sem maiores placas, apelos e gritos gráficos. É preciso andar em Goyaz, calmamente como um de seus doces velhinhos caipiras, para farejar seus perfumes bem guardados.

E é aí que a surpresa pode tocar no ombro: aguardando um pouco o apetite chegar para um jantar, sentamos num banquinho em frente ao terminal turístico quando um cartaz colado na fachada do cine-teatro ali em frente nos chama a atenção. Pessoas começam a chegar, recebem um folheto da recepcionista postada no local e entram para assistir a alguma coisa. A curiosidade nos moveu do banco e fomos lá: era uma apresentação de um grupo de dança de Goiânia, show gratuito, teatro lotado, um pequeno acontecimento artístico feito sem alarde, uma hora de sensibilidade pura que não precisa constar dos roteiros turísticos. Algo que é feito primeiramente para o morador da cidade de Goiás. Nós, visitantes, temos mais é que pedir licença se quisermos assistir também.

Um espetáculo sobre a trajetória do rock and roll em Goiânia – Yes, man – com uma dança contemporânea coalhada de efeitos cênicos e turbinada por sombras típicas da estética dos anos 80. Belo show, ainda mais porque em determinado número o som falhou – e a companhia de dança continuou como se nada tivesse acontecido. Profissionalismo anhanguera. Persistência bandeirante, índios escravizados à parte. Torrente de aplausos no final. Ainda com o som pifado, um número solo de uma bailarina que logo perde a condição solitária, uma vez que o público não demora a cantar para fazê-la continuar dançando a letra mais que conhecida da balada “Pais e Filhos”, clássico da Legião Urbana. Somente no próximo número o som retorna, encerrando uma noite de alguma transcendência, que é como se pode qualificar essas coisas que não estão previstas mas, uma vez acontecendo, derrubam muralhas da parte cronicamente apática do nosso ser.

Faltava conferir a serenata, esta sim prevista, de hora marcada, mas de detalhes incertos, como que para manter o espírito vivo da poesia que sai melhor quando se improvisa, livre de normas rituais. Aquelas sombras da noite que se solidificavam em grupos foram aumentando, enchendo o pátio da fachada da Igreja do Rosário. Uns violões, do tipo que não dava para saber mesmo quantos eram e onde estavam: bastava que fosse como eram, uma espécie de rede de notas sobre as quais aquelas dezenas de pessoas vindas de várias direções poderiam pular qual criança, usando a voz, a noite, a potência do luar e o cenário em volta como propulsores de uma emoção musical capaz de anular a gravidade da rotina.

A certa altura, qual procissão religiosa de que Goyaz é também notória – o cortejo dos encapuzados na Semana Santa é o marco número um do município – começamos a caminhada, calma, lenta, musicada por velhas canções de um Brasil quase tão antigo quando as paredes em volta. Sempre que se encontra uma janela aberta com um morador à espreita, dá-se o presente de incalculável valor que é parar e cantar só para ele – ou eles, caso frequente em que uma família aguardava o momento de ser  homenageada com tal exercício de doação.  Palmas, agradecimentos, e novamente o grupo se desloca, devagar, como que saboreando o gostinho de pisar em cada pedra, gravar em cada porta a nota de uma voz, o carimbo sertanejo de um canto.  Ê, Goyaz!

quinta-feira, 14 de novembro de 2013

Águas profundas


Em cinema, literatura, às vezes até na música - quando se trata de um tipo de canção de natureza mais narrativa - existe uma pré-condição, um condicionamento prévio sem o qual nada se sustenta. É bem conhecido e chama-se "suspensão da descrença". Graça a esse instrumento narrativo - espécie de pacto não formalizado entre o autor e seu público, seja qual for o meio empregado - acreditamos, ou fingimos acreditar sem prejuízo para os fatos narrados, nos maiores absurdos. O Superman com oito anos suspendendo um carro apenas com uma mão. Cientistas com jeitão de super-heróis construindo uma geringonça gigante capaz de evitar que um meteoro ainda mais hiperbólico destrua a Terra. Dona Flor tendo que dar conta do maridão certinho que acabou de chegar da farmácia e ao mesmo tempo do fantasma do finado marido anterior que se foi desta para melhor mas não esqueceu do prazer de certos momentos. João Grilo e Chicó enganando uma cidade inteira com as lorotas mais improváveis apenas para conseguir matar a fome de cada dia.

Como diz o nome daquele festival de filmes, é tudo verdade. A gente acredita em tudo: basta que o capítulo inicial do livro, ou as primeiras sequencias do filmes ativem aquela maquininha de condicionamento mental que a gente carrega na mente como se fora um projetor paralelo no escurinho das possibilidades - a tal "suspensão da descrença". Foi isso o que não aconteceu comigo durante a primeira meia hora deste celebrado "Capitão Phillips": o mecanismo da suspensão da descrença, habitualmente tão capaz de nos fazer passar por cima de impossibilidades reais para embarcar na oportunidade de acompanhar uma boa história travou legal, como diria um garoto, bem no início do filme, exatamente naquele ponto onde ele tinha, precisava funcionar.

Passei o resto do filme incomodado com um elemento narrativo que me pareceu improvável: como é que os americanos, esse povo tão fascinado pelo uso de armas de fogo, não carrega nem uma dessas espingardas de bala de borracha que a PM brazuca usa e abusa nos tais protestos de rua, ao realizar a travessia marítima por uma região tão perigosa? Eu, na minha sacrossanta ignorância - a quem não canso de prestar minhas homenagens, pois dela advém, além de certa humildade muito providencial, também o entusiasmo quando sou apresentado a alguma novidade - não sabia que a marinha mercante não usa armas de fogo. Tudo bem: não precisa ser um navio militarizado pela ótica do mundo pós-Bush-Iraque, mas nem uma armazinha assim pra efeito de qualquer coisa acontecer? Nem alguma coisinha simples, tipo o bacamarte do Urtigão? Tenho que pedir ao amigo Carlos de Souza pra perguntar ao pai dele, que passou a vida navegando na marinha mercante, se é assim mesmo.

Porque aqui não se trata apenas de um caso em que a suspensão da descrença não funcionou - para mim, só posso falar por mim, porque o que mais vejo, leio e ouço é o pessoal empolgado com o filme. Aqui o que temos é um troço mais maluco ainda: um caso de suspensão da descrença que não funciona num filme... inspirado em fatos reais, de amplo conhecimento público, com os protagonistas de fato dando milhares de entrevistas no embalo do lançamento do filme. Então, em princípio, eu não teria mesmo do que duvidar - o pessoal todo daquele barcão, tripulado por vinte homens bem alimentados ou parrudos de chope, que seja, não conseguiu mesmo dar conta de quatro magricelas famélicos e expoliados da mais clássica África envolva em guerras, tráfico e banditismo. E armas, nem pensar... Sabe qual é o problema? A danada da suspensão da descrença não quer saber se o filme vem de fatos reais ou não: ela precisa existir na condição de gatilho narrativo sem o qual a história não consegue ser disparada. A questão é menos o fundo verídico do fato do que a superfície narrativa sobre o qual ele é distribuído em forma de cenas, diálogos e situações. 

 
Talvez tenha faltado uma cena - uma daquelas cenas que os roteiristas detestam ter que escrever - com uma explicação minimamente didática sobre o fato de a marinha mercante não querer papo com armas, nem preventivamente. Tudo bem que a possibilidade de um tripulante dar cabo de um pirata usando uma arma ancestral - os próprios braços - ainda assim ficaria no ar, mas já seria um alento. A oposição entre o navio gigantesco e a canoa raquítica pode e é sim pungente do ponto de vista da mensagem visual, mas a construção do caso - precisamente a arquitetura da suspensão da descrença - precisa passar por águas bem mais profundas do que a rasa navegação entre as bacias das metáforas.

quarta-feira, 30 de outubro de 2013

Nem ouro nem prata




Diante da ambição que é o fenômeno Serra Pelada, a gente que aprecia o cinema de Heitor Dhalia entra no cinema com uma expectativa no olhar e uma dúvida na cabeça: que filme veremos? Alguma coisa com a pronúncia visual que é tão própria do cineasta - ia dizer "cineasta pernambucano", mas a folha corrida que ele vem construindo não permite este tipo de classificação que a outros, sem demérito, constitui uma legitimidade - ou algo que, sendo mais ambicioso, poda aqui e ali sua verve tão particular?

Na primeira cena, "Serra Pelada", o filme, deixa o público cativo de Dhalia animado com a chance de a primeira opção vencer. O super-close de Juliano Cazarré sendo inquirido por um policial dá o tom de dramaticidade quase gráfica que é tão particular do cineasta de "O Cheiro do Ralo". Mas o filme prossegue e, depois de uma muito bem montada sequencia de abertura em que o próprio nome da produção serve de veículo para situar quem nasceu depois de 1990, vai-se o Heitor Dhalia do enxuto, milimétrico e sensível "À Deriva". Fica, na tela, um bom filme, sim - aquele tipo de filme que tem tudo pra cair nas graças do público brasileiro, ao remeter a um certo cinema brasileiro dos anos 70, quando o tema de preferência era o drama policial, o tratamento passava necessariamente por um molho de sensualidade morena e a linguagem atingia em cheio tanto a garotada zona sul quanto o ancião de subúrbio; e do interior do país quando lá chegavam as últimas e desgastadas cópias. Com os bônus que bons filmes têm obrigação de oferecer: neste caso, é bonito ver uma atriz televisiva como Sophie Charlotte se esforçando para ir além do padrão que o video oferece ao país, assim como é impressionante constatar como, em pouquíssimas cenas, o gênio habitual Wagner Moura é capaz de arrebatar a mais burocrática plateia.

No final das contas, "Serra Pelada" é como uma mistura, batida na medida para conscientizar e entreter, de duas referências recentes do cinema brasileiro - ambas, não por acaso, também fortemente calcadas naquilo que enchia salas nos anos 70: pense em "Cidade de Deus" misturado com o primeiro "Tropa de Elite". De ambos, "Serra Pelada" utiliza a abordagem semidocumental e uma coloração tecno-realista que o selo da produtora de Fernando Meirelles jamais deixa de exercitar. Imagine então aqueles dois filmes - embora o segundo não pertença à O2 - embebidos numa calda mínima de introspecção desenhada em imagens, que tem sido o forte de Heitor Dhalia, e você chegará bem perto. Fica claro que é muito elemento para um filme só: perde o Dhalia que fareja a intimidade (como vimos em "À Deriva"), que namora a excentricidade (como mostra "O Cheiro do Ralo") ou que investe no que as sombras têm de poesia (conforme o nem sempre lembrado "Nina"). 

Claro que o diretor tem todo o direito de frequentar outras praias com suas câmeras e sua forma de contar históricas e extrair emoção da arte cinematográfica. "Serra Pelada" segue tal caminho, jogando um especialista do minimalismo nos barrancos de um grande painel social de um dramático momento brasileiro. Mas quando o filme termina, fica a impressão de que ele é bom mesmo é na arte de lapidar pepitas raras, daquelas que passariam imperceptíveis nas mãos de garimpeiros de imagens menos atentos como esses que hoje, ontem, sempre, enchem os cinemas do país. Ou, o que é bem pior, fazem os tão mal afamados filmes nacionais.

domingo, 13 de outubro de 2013

Canção do absoluto



Na poça de chuva da noite anterior,
Cecília bate o pé em brincadeira ritmada:

-Tudo, nada, tudo, nada
 Tudo, nada, tudo, nada

Cecília, onde você aprendeu isso?
Na casa de Solange 
(nossa empregada)

2008*


A passagem de ano
foi tenebrosamente rara.
Choveram pedras goianas,
seixos de estrada velha
sobre os telhados na aguada.
Relâmpagos perfilizaram as serras
como refletores pré-programados
para um temporal espetáculo.
Por fim, qual champanhe final,
faltou luz - e a verdadeira
eletricidade se fez em
blecaute natural.
Receita para começar 
o ano
no mais fértil nada.

*Fazenda Manduzazan, Cidade de Goiás, feriadão de fim de ano. Se fosse na passagem de 2009 para 2010 seria absolutamente premonitório do ano difícil que tivemos. Mas 2009 foi beleza, a calmaria antes da tempestade que, felizmente, também ficou para trás.

Bioderrapadas

Acabei de ler o artigo semanal de Caetano Veloso no Globo e não entendi nada: quer dizer que biografia não autorizada de Sarney pode - mas de Gloria Perez não? Um é ser humano e pode sair machucado e o outro não? Isso parece fala do velho George Bush: quem não for meu amigo é o diabo e pode ser destruído sem mais nem menos. Não tenho tido muita paciência para essa discussão sobre biografias-liberdades-privacidades-direitos (porque quando a história explode demais na rede social causa uma sensação de mídia saturada que mela tudo), mas esse reducionismo não me parece digno do artista Caetano. Talvez tenha a ver com o empreendedor Caetano, que também existe - e tem todo o direito de existir, que fique claro - mas sem que uma coisa comprometa de tal maneira a outra. Ficou confuso? Vai lá no Globo virtual e lê o artigo: garanto que não vai ficar mais claro do que isso. Gostaria de saber a opinião sobre tudo isso de um cara como Tom Zé, o último tropicalista não pragmático, se é que ainda o é.

sexta-feira, 4 de outubro de 2013

Fala sério, Marina Silva

Acabo de conferir aqui num portal da rede (com r minúsculo) que é aquilo mesmo de que desconfiava no post anterior: Marina Silva deu uma entrevista hoje para dizer que dirá em outra entrevista amanhã se vai ou não disputar a Presidência da República. Jornalistas têm cometido muitas gafes, pra não dizer idiotices puras e simples, nos últimos meses, e estrelado involuntariamente o ranking do "pior das redes sociais", quase sempre merecidamente. Mas hoje, li agora há pouco num portal, depois de Marina dizer que que só vai decidir amanhã, uma jornalista não identificada soltou um sonoro "fala sério". Pois eu acho que essa jornalista externou, de supetão, quase sem querer de tão natural, o que vai pela mente de grande parte dos brasileiros diante do comunicado de Marina.

A imprensa brasileira, que de uns tempos pra cá pegou a feia mania de dizer que fala em nome do país (me exclua fora dessa, por favor) com suas manchetes tipo sermão de padre formado nos seminários do Instituto Millênio, bem que poderia dar destaque à expressão da jornalista. Não só dar destaque: aderir, tomar como sua esse sintomático "fala sério", estampá-lo em manchete e enfiar goela abaixo dos leitores e assinantes (por uma dessas cancelei dias atrás minha assinatura do Correio Braziliense, mas esse é outro papo). "Fala sério" é o mínimo que se pode dizer diante deste cozinha-galo de Marina, que, eu acho, está começando a brincar com aqueles quase 20% de votos que obteve há pouco menos de quatro anos.

Mas, por outro lado, estamos no terreno da política, onde até o mais sonhático dos militantes não tem como abrir mão de táticas: só posso acreditar que amanhã, sabadão, Marina Silva vai descer do salto com que seu círculo de assessores a calçou e anunciar, na antepenúltima hora, em lance sensacional e emocionante, já por si mesmo carregado de um arrebatamento que se traduz em votos e novas adesões que, sim, vai sair candidata pelo PPS, PTB, Solidariedade, Contrariedade, Pros ou Contras, não importa. O suspense, a demora, o bico-doce de quem se faz de difícil teria sido apenas para confeitar na medida certa o bolo do tão esperado anúncio - que, claro, já faria o efeito de angariar simpatias e votos. Meios alternativos de fazer o mesmo que a "velha" política que a candidata soberbamente diz que veio para eliminar. Tudo legítimo, se não contrariasse a construção do próprio discurso que ela mais e mais vezes faz questão de declamar. Se não for assim, a insondabilidade do pensamento e da estratégia política da candidata a coloca a distância suficiente de ser compreendida por qualquer eleitor, seja ou não seu simpatizante. E como se pode aderir a quem não se compreende?

Acho que a Justiça Eleitoral está errada em negar o registro do partido de Marina (enquanto as fraudes dos outros vão ficando pelo caminho); não voto em Marina, pelo menos a princípio; mas considero que o movimento à que ela se põe à frente existe de fato, socialmente falando, e por isso deve ter sua expressão partidária reconhecida (assinaturas à parte, o que é quase outra história e também diz muito sobre a candidata e seu séquito prematuro). Mas lamento que a ex-senadora do PT tenha enveredado por um caminho tão sinuosamente individualista em termos políticos que beira a autoproclamação absoluta, sem o lastro de um movimento organizado como ocorreu com o partido pela qual ela se notabilizou. Alfredo Sirkis que o diga (leiam os portais). Agora triste, decepcionante mesmo, foi ver uma figura como Domingos Dutra levado a trocar o PT pelo partido de Paulinho da Força em meio às aluviões desta confusão toda. Também vi hoje que o pedetista histórico Miro Teixeira - com quem não simpatizo nem antipatizo - resolveu entrar para o Pros (ele que é sempre tão contra), também ele à deriva depois da decisão da justiça eleitoral sobre a Rede - agora, sim, com maiúscula mas sem registro. 


Acho que Marina tem grande responsabilidade neste vespeiro de abelhas tontas a que assistimos. E prorrogar até o último minuto o seu anúncio não ajuda em nada a melhorar o estado das coisas. Não há nada de errado em que o que é alternativo seja também algo razoável - é da vida, essa evidência que dividimos todos e da qual a boa política é também uma extensão. Dito isso, ou tudo isso, só me resta repetir esse chavão batido que hoje uma jornalista anônima transformou de chofre numa reação tão autêntica quanto original diante da massadas de Marina Silva: fala sério, candidata!

domingo, 29 de setembro de 2013

Todo poder ao bandejão


Caiu no ruge-ruge do Facebook por estes dias a imagem de um bandejão de restaurante universitário, aquela placa metálica com divisões onde se coloca as porções de alimentos de um almoço ou jantar. A imagem mexeu com minhas memórias e ao fim de uma rápida investigação sobre o significado daquele apetrecho para as minhas décadas de vida terminei encarando o clássico bandejão quase como um troféu. O signo de uma luta travada com alegria, disposição, sacrifício e recompensas não apenas por mim, mas para muitos e muitos amigos com quem dividi a convivência tanto num internato onde cursei o segundo grau quanto - e principalmente, pela extensão do tempo e valor da experiência - as alamedas do Campus da UFRN, em Natal. 

A imagem do bandejão me jogou de chofre numa época muito diversa da atual - e aqui me refiro aos pontos em que essa diversidade resulta em prejuízo para os dias atuais. Diversa do ponto de vista pessoal, como é natural que seja, pois que os anos passam, a gente sai de uma condição para outra, escala empregos, aprimora afazeres, compõe currículos, vê nascer filhos, vê crescer tais filhos em velocidade de cruzeiro, muda de cidade (no meu caso), recomeça, cansa, reclama e segue em frente. O rio nunca é o mesmo, todo mundo sabe quando está diante de mais uma travessia. E é assim que o bandejão e tudo o que ele representa vai ficando para trás. 

A realidade social e coletiva da cidade e do país também contribuem para este movimento - este esquecimento. Qualquer um que viveu os picos da juventude nos meus temos de UFRN, década de 80, sabe dessas diferenças e, aqui e ali, lembrando delas, queria trazer alguma coisa de volta. Não digo aquela juventude numérica, que a resistência física mesmo impede, mas os sinais do momento que tanta falta fazem hoje. É aqui que o bandejão reina soberano no seu posto de troféu do tempo: visto hoje num post de facebook seu metal rude brilha como ouro ao nos lembrar do quanto menos individualistas éramos, da nossa sobrevivência em bandos arrancada aos centavos, do congraçamento que provávamos em detrimento da comida que, feita em enormes quantidades, naturalmente não podia proporcionar o paladar refinado dos cardápios caros - ou caseiros. Não importava: à frente do bandejão, a gente se alimentava também de outras matérias que andam muito em falta neste mundo mercantilizado de Pequim a Jucurutu, terra do amigo Vilmar, a quem nunca mais vi, ou Marcelino Vieira, cidade de Antônio Edson, companheiro da Residência Universitária que dormia sobre livros de medicina e a quem também nunca mais vi. 

Quem compartilhou no facebook a imagem sintomática do bandejão foi a amiga Guia Bezerra, conterrânea com quem passei a conviver apenas depois de passar a morar na residência dos universitários que não tinham teto em Natal e que foi, tão simbólica quanto aquele prato de metal, uma espécie de liderança informal no grupo todo. Ninguém melhor para nos trazer de volta a imagem do bandejão, com a legenda marota: "quem usou não esquece". O pior, Guia, é que muita gente que usou esquece sim. Eu mesmo não lembrava. Mas, ainda que não lembrando, sei que guardo dentro de mim o que posso chamar de "espírito do bandejão" - um certo senso de solidariedade misturado com humildade que me lembra o tempo todo, mesmo que nem sempre eu perceba claramente, a importância de caminhar junto com meus semelhantes na busca de vitórias que somente a carência anterior a ela é capaz de nos fazer perseguir. Mas é verdade, muita gente nem isso guardou: mudou de vida, como é natural, mas mudou também de pensamento, mal embalados pelos novos e falsos consensos que surgem em torno de competitividade, distinção e aparência. Para esses, é preciso exibir o bandejão o tempo todo, dar verdadeiras bandejadas em suas cabeças, na tentativa de acordar o melhor que tinham em si e de que também se esqueceram, junto com o instrumento onde anos atrás sequer tinham o direito de escolher o feijão a ser despejado no compartimento apropriado - era um funcionário do restaurante coletivo quem fazia isso, automaticamente e impessoalmente como tantas vezes é necessário, sem prejuízo para os traços individuais que todos e cada um também trazem em si. Por tudo isso, viva o bandejão!

Música ao longe


Brejeiro é o adjetivo que remete ao habitante das regiões chamadas de brejos, latitudes aquosas em meio a geografias habitualmente secas. A Paraíba tem um famoso brejo com o qual me familiarizei desde criança, não por conhecê-lo mas pelas quase diárias referências que meu pai, vendedor de mangaio por profissão, fazia a tal lugar. O brejo paraibano é uma região úmida e fria instalada nos costados altos de um estado que, de fato e simbolicamente, para todos evoca a imagem de um Nordeste árido. Mas o adjetivo brejeiro - que meu pai usava e abusava quando queria descrever certo tipo de pessoa pelo comportamento particular que apresentava, alguma coisa entre o sinuoso e o desconfiado (mas isso eu vim a entender melhor bem mais tarde, como explico ao final*) - ganhou outra conotação. Especialmente quanto aplicado à condição feminina, essa tal brejeirice tem a ver com um muito especial tipo de beleza regionalizada, quase uma etnia estética à parte, apegada às morenices de algumas regiões brasileiras, palavra que emula cheiros doces, peles retocadas pelo sol, e uma sensualidade imanente que surge pespegada a essa brasileira mesmo quando ela se ocupa das mais comezinhas tarefas do dia-a-dia. Pense na matas da Costa do Cacau baiana ou numa pequena enseada em Touros, no litoral potiguar, e você começará as ser tomado por essa atmosfera.

A brejeira é como a cabocla do romance que virou novela mais de uma vez. É como a Gabriela cravo e canela da mãe Bahia. É prima da guria dos gaúchos, numa linhagem que vai se ramificando pelo vasto país. Mas essa evocação sobre brejos primordiais como os romances de Jorge Amado está aqui a propósito não exatamente de uma especulação sobre a beleza física das brasileiras mais enraizadas e sim por causa de um outro elemento fortemente fincado nos solos que divididos da Amazônia aos pampas: a música. Dois discos lançados ainda recentemente trazem a música daquele que é pra mim o mais brejeiro dos artesãos instrumentais do Brasil. E aqui o adjetivo brejeiro precisa estar bem situado para não incorrer em significados menos exatos: é algo acima do tão esforçado e sempre tão menosprezado "cantor da terra" mas um tom abaixo de certa musicalidade hermética que se fecha na técnica e se reprime de emoções. Sem mais partituras vãs, aqui se fala de Dori Caymmi, arranjador de sucesso e cantor de extensão própria e timbre telúrico - e sim, eu sei, a conversa parece se referir mais ao outro Caymmi, seu pai. Todo poder a Dorival pai, mas é que o som de Dori filho me fala mais diretamente às células auditivas, talvez pelo fato de estar mais próximo da minha geração. Ou, dito de outro jeito: me fala de forma diferente e independente do classicismo paterno. Não gosto dessas coletâneas que juntam num mesmo disco os "sucessos" de um determinado artista, mas aqui e ali, por uma questão meramente prática, adquiro uma. E o assunto aqui é precisamente este "Dori Caymmi - O Cantador", que tem o benefício de trazer em 14 faixas "o melhor" do músico, alguma coisa difícil de conseguir de outra maneira, visto que a discografia deste filho de Dorival não é nada fácil de encontrar nas lojas, ainda mais agora nesta era de muitos downloads e poucos produtos físicos à venda. Em Natal, na mais recente temporada de férias, achei num sebo do Beco da Lama um LP de Dorival, original, que comprei com a avidez de quem adquire um stradivarius com número de série. Na casa de Titina e César, botei o bicho pra tocar e quase caio da banqueta em que estava sentado quando ouvi os primeiros versos de "Desafio" ("Éramos eu e um cavalo / No seu galope macio / Pulando cerca de arame, pisando morro de pedra, andando em leito de rio"). Na viagem para Brasília, de carro, não sei como, o disco sumiu. Pra minha sorte, foi lançada essa coletânea que contém, além da canção que até hoje me lembra a adaptação para a televisão do meu romance preferido de Jorge Amado ("Terras do sem fim"), outra brejeirices clássicas e de composição absolutamente perfeita, como "Na ribeira desse rio" e a não menos impressionante "Desenredo", com aquela sua perolada tristeza lusitana a reunir todas as dores do mundo no silêncio das Geraes ("Ê, Minas, ê, Minas / É hora de partir, eu vou / Vou me embora pra bem longe"). 


É como se eu tivesse recuperado o disco original perdido na viagem - mas na verdade eu bem que gostaria de esbarrar nele qualquer dia entre os cacarecos de casa. Só que minha sorte não havia acabado, ou, posso dizer, nossa sorte, caso o leitor se interesse por esse cancioneiro tão sensível e sofisticado em sua aparente simplicidade e saia também em busca de tais discos. Digo tais discos porque o segundo lance de sorte foi o lançamento deste outro "Caymmi", disco que Dori fez com os irmãos Nana e Danilo para lembrar o pai, dando prioridade a canções menos conhecidas. O danado mesmo é chamar de "menos conhecida" qualquer canção de Dorival, dono de tal brejeirice nas veias que qualquer coisa que compunha já saía do violão com cara não diria nem de clássico, mas de algo muito mais ligado à terra que nos habita tanto quanto a habitamos: fosse ela qual fosse, já era uma música com cara de "domínio público" - aqueles coisas tão retocadas em sua exatidão simplificada que à primeira audição soa como cantigas que, transmitidas de geração a geração, têm autoria tão remota quando difícil de descobrir. É uma música de vem dos céus e parece cruzar o corpo, as mãos e o violão de Dorival como um raio benfazejo, diluindo-se numa músicalidade chuvosa que nos molha a todos, brasileiros cientes das nossas mais atávicas origens (basta ouvir a buliçosa "Balaio grande", no pot-pourri de abertura). Não é mesmo por acaso que seu filho Dori, cujos discos infelizmente não se encontram assim-assim nas prateleiras das lojas de CDs que restaram, é pra mim esse mais brejeiro dos músicos da Terra de Santa Cruz.  

*Há estudos antropológicos que explicam a desconfiança mútua entre "brejeiros" e "sertanejos" no cenário paraibano - e este é também um tema predominante no clássico romance "A bagaceira", de José Américo de Almeida". 

quarta-feira, 4 de setembro de 2013

Nas redes da burocracia



A burocracia da Justiça Eleitoral tem sido o maior cabo eleitoral de Marina Silva. Se depender de seus carimbos viciados na velha política, cedo ou tarde todos vamos cair de simpatias pela candidata ex-petista, verde-alternativa e evagélico-sem-ranço. Explico: tenho mais de uma ressalva à maneira como Marina se comporta politicamente desde que deixou o PT à sombra de um explícito ressentimento causado pela opção do partido em priorizar um projeto de distribuição de renda associado ao crescimento econômico do país. Considero a crítica pura de Marina relevante - e estou ciente de que tais ressalvas não partem apenas dela, mas também de figuras como Leonardo Boff, dono das melhores referências quando se trata de analisar a realidade do país e de toda gente. Discordo dos métodos; da defecção e da denúncia que a mim soa fácil; do oposicionismo conveniente. Considero que, dentro do PT - e relevado o inconformismo pessoal decorrente de uma já distante disputa entre ministros de Lula, com ela de um lado e Dilma Houssef de outro - Marina teria mais a acrescentar, legitimidade maior para travar a luta interna tão necessária a que um partido outrora pequeno se mantenha fiel à sua essência uma vez alcançado o poder. 

Esse preâmbulo todo é necessário para situar o real adversário da hora, seja de Marina, do PT, da continuidade desse projeto de país (contestações e avaliações à parte), até mesmo dos outros concorrentes como Aécio e Eduardo Campos: quem está do outro lado do balcão, porque se trata de um balcão tanto literal quanto metafórico, é a Justiça Eleitoral. Numa sentença: os obstáculos burocráticos que a Justiça Eleitoral tem criado para a criação do partido de Marina são ilegítimos diante da demanda social que existe, de fato, para a criação da legenda. Você pode, assim como eu, discordar dos gestos de Marina, torcer a cara para a candidatura dela, achar como muitos que o aspecto de chororô da candidata não é muito alvissareiro, que evidentemente o conteúdo "sonhático" de suas postulações encontra forte obstáculo na real política do país etc etc etc; mas você precisa concordar comigo - que não pretendo votar em Marina para presidente; mas tampouco me encontro em grau de empolgação diante de Dilma - quanto ao fato de que a Justiça Eleitoral está sendo mais rigorosa com ela do que a nova política no horizonte do país admite. Ou tanto quanto compraz, em derradeira instância, àquela mesma real política em processo de vencimento. 

Para algum lugar há de escorrer a energia cidadã que busca se expressar por meio do partido de Marina Silva. Não adianta o instrumento burocrático de uma conferência de assinaturas se interpor. Não lembro de ter visto - prazos e demais figuras à parte - tal rigor quando Kassab foi criar um PSD que, diante de qualquer olhar desprevenido, não encontra um mínimo de demanda social quando comparado à Rede da ex-senadora do Acre. Kassab e PSD fizeram tudo conforme manda o manual, mas que o deus da boa política nos livre de um partido que normativamente está em dia com a papelada mas socialmente se encontra distante da mais elementar noção de cidadania e representatividade.   

segunda-feira, 26 de agosto de 2013

Mais médicos, menos jornalistas

Essa polêmica dos médicos está erigida sobre uma obviedade tão evidente (a esta altura não serei mais um a banalizar o velho "ululante" de Nelsão), que dispensa até maiores reflexões, textos, palpites. Parece o tipo do assunto diante do qual é mais inteligente reduzir tudo à sua essência do que ficar inflando controvérsia onde não existe. Ou não deveria existir, caso não houvesse, agora sim, uma doença chamada desonestidade intelectual.

Assim: 1) faltam médicos na rede pública e isso é gritante, sobretudo no interior, especialmente onde a medicina tem uma função mais geral do que nas cada vez mais sofisticadas tecnoclínicas que excitam os superpoderes da categoria nas metrópoles; 2) falta estrutura de trabalho para os médicos, yes, sobretudo nos mesmíssimos lugares descritos no item anterior, o que rende uma bela desculpa para os profissionais que não sentem o menor apelo para dar as costas ao ultra-qualquer coisa que cospe exames a preço de ouro e encarar a carência até de papel higiênico no postinho público do grotão.

Dito isso, sacramentado o que todo mundo está cansado de saber, espanadas as hipocrisias de ambos os lados - doutores e governos - temos então o programa Mais Médicos produzindo histerias ideológicas em conselhos e aeroportos. Temos mais: uma outra categoria profissional cuja função social é mediar as complicadas relações entre classes, profissões, instâncias e demandas. Nós, os jornalistas - que nos encontramos metidos até o pescoço na tal "polêmica", mesmo sem usar jaleco ou sem nunca termos ido a Cuba, a não ser para férias em Varadero e similares, claro.

Na edição desse domingo do Correio Braziliense, jornalistas escrevem, numa reportagem de título auto-explicativo ("O apelo eleitoral do Mais Médicos"): "A avaliação é de que críticas, neste momento, podem não ser compreendidas pela população que sofre com a falta de médicos no país". Eu, leitor, ex-redator deste mesmíssimo jornal, me atrevo a substituir palavras (e lembro de Rubem Alves, que diz que pensar é brincar com as palavras, essa só aparente inutilidade): "A avaliação é de que críticas ÀS ENTIDADES MÉDICAS, neste momento, podem não ser compreendidas pelos JORNALISTAS que NÃO sofrem com a falta de médicos no país."

Opus allienum dei

Está começando de novo e o automático da vida quer me convencer a dizer apenas que todo ano é a mesma coisa. Não é: cada seca de Brasília é como se fosse uma nova e desconhecida estação climática a mexer com as nossas convenções extra-atmosféricas. Já vão pra mais de dez anos que esse capricho natural da região central do país me envolve como a todos que vivem aqui, reelaborando a forma como respiramos, dormimos, acordamos, resistimos ou suamos - ou não suamos, que é o que de fato acontece enquanto os outros verbos são conjugados no todo-dia de cada um. Mas, repito, é como se fosse sempre a primeira vez.

Ou melhor: a segunda, porque a primeira sempre tem aquele gostinho de novidade que dilui as piores agruras em calda doce de curiosidade, dando às sensações um outro efeito. A segunda, sim, é aquela que soa que nem ferro em brasa em pele de cordeiro - sem mistérios de expectativa. No nosso caso particular aqui, um dia você acorda e nota que, hoje, claramente, bem mais do que ontem, aquela camiseta velhinha que cai em pano suave nos seus ombros está estranhamente meio rídida - como se você, no lugar da roupa, estivesse vestindo uma embalagem de papelão.

Isso é a seca de Brasília, tanto quanto as queimadas que fazem o belo céu azul faiscar em eletricidade aspirada. A diferença é que os incêndios são cenográficos, logo estão no telejornal, rendem manchetes na internet. Quem imaginaria que não é só isso, o fantástico daqueles aviõezinhos que jogam água no ar impressionando os olhares daqui e de alhures? Quem, senão os que de fato estão imersos neste ambiente, lembraria da fuligem com passagem marcada para entrar no seu nariz, além do incômodo de encarar um  guarda-roupa embalsamado em secura?

Daqui até meados novembro, que é quando de fato a seca acaba - quem lê este blogue há tempos sabe que existem uns intervalos, com a tal "chuva da seca" que vem com tempestade mas se vai tão misteriosamente quanto chegou - a pisada é esta: poeira em suspensão máxima, a impressão de que estão passando um ralador de coco no seu couro, e o azulão celeste pra compensar os inconvenientes da estação. É a manifestação da natureza que pega todas as classes, idades, tribos, cores políticas. Até o presidente da República tem que aguentar o rojão. É como se a seca estivesse dizendo: desculpe, estou construindo uma temporada de chuvas. Trabalhando na matéria dos ciclos - no lugar de reclamar, se veio para aqui trate de começar a fazer parte dele.

Enquanto aguardo, vou lendo; e um dos livros que me distrai agora é Ostra feliz não faz pérola, de Rubem Alves. Poderia fazer galhofa desse título tão provocador quando o assunto é a chegada, sem sombra de qualquer umidade, da seca de Brasília pra quem vive nas suas modernas geometrias. Planalto feliz não faz chuva. Mas vamos menos de trocadilho e mais para a citação mesmo: diz lá, na página 132, que os teólogos medievais falavaram sobre a opus proprium dei e opus allienum dei. "A obra própria de Deus é quando ele faz a obra boa, diretamente, sem desvios. A obra estranha de Deus é quando ele faz uma coisa ruim para chegar à boa." Rubem Alves está falando de professores excelentes e também dos medíocres, mas poderia estar se referindo à  seca de Brasília - essa coisa ruim (embora pontuada também por pingos de beleza, vide o céu e a inconstância colorida dos ipês) que deságua, literalmente, numa outra, boa entre as melhores. O jeito é esperar.

quarta-feira, 21 de agosto de 2013

Castelos de Casares


Há literaturas que mais parecem arquiteturas. Construções narrativas feitas por caminhos geometricamente tão necessários ao efeito final que soam menos como contos do que como esculturas. Histórias que evocam a poesia concreta; causos que emanam números literalizados; histórias sustentadas em pilares verbais que o leitor quase consegue tocar com os olhos. São assim as "Histórias fantásticas" do argentino Adolfo Bioy Casares, patner literário de Jorge Luiz Borges que aqui exercita esse meio termo entre letra pura e cinema de mistério, ambientando tudo num espécie de pampa universal que trespassa o rio da Prata, tangencia o Uruguai e corre em zique-zague pelo nosso Rio Grande do Sul.

Numa das histórias, acompanhamos o discurso agressivo de um quase panteísta cético contra o monoteísmo cristão, em argumentos duelados com um adversário a princípio não identificado e cuja revelação mostrar-se-á, com o perdão da mesóclise, a laje literária da narrativa toda: é o próprio diabo enfezando-se para defender a existência de um único Deus, ainda que este seja seu adversário primeiro e total. Em outro, de extração que lembra as brumas absurdas e sufocantes de "O Castelo" de Kafka, é a real identidade de um assassino que ludibria com gosto mesmo o leitor mais prevenido: a graça literária aqui está na qualidade dos enganos que Casares consegue produzir usando apenas a matéria elástica das palavras, frases, parágrafos.

O livro é pura mistificação iluminada, prestidigitação verbal, manipulação perdoada de quem sabe erigir de um arranjo de palavras um castelo de impressões, apenas pela volúpia de demolir tudo na penúltima página. E o prazer final é todo seu, leitor.

Suprema entropia

Um colega dos tempos da residência universitária em Natal, Josenildo, comunista até o tutano dos ossos; adversário da televisão que dizia servir só pra passar propaganda; inflexível defensor de uma revolução geral que passasse tanto pela Química que era seu objeto de estudo quanto pela Sociologia de muitos outros e a Comunicação da nossa parte, tinha especial predileção pela palavra "entropia". Qualquer chance de usá-la e nosso caicoense vermelho preferido sapecava a palavra, como quem ejeta no ar um argumento incontestável: é a entropia!

Josenildo, de quem não tenho notícias há anos, teve esta semana, continue a ser ou não o comunista férreo de 1985, uma chance daquelas de definir uma situação à sua maneira. Só ela mesma, a entropia, para explicar, numa palavra, o inesperado ataque do jornalista Ricardo Noblat ao presidente do STF, Joaquinzão Barbosa. Depois do show do mensalão e suas mil e uma interpretações, eis que o jornalista dirige toda sua verve de detonador de reputação para aquele que minutos atrás era o tal menino pobre que iria mudar o Brasil. Não tenho simpatias por Barbosão, mas Noblat chegou às raias do assédio moral ao dizer que lhe falta "educapção de berço". Pensei na mãe de família sacrificada que criou o filho Barbosinha e seus irmãos com dificuldades e hoje o vê presidindo a mais alta corte judicial do país. E a entropia não termina aí, visto que ato contínuo a jornalista Miriam Leitão saiu em defesa de Barbosa, entornando de vez o caldo dessa... entropia.

Entropia é uma palavrinha do tipo que impressiona à primeira pronúncia e, como tantas assim, tem um batalhão de significados complicados atrás de si para lhe garantir essa aura de autoridade meio imprecisa. Vem do mundo das substâncias, explica processos químicos que ocorrem quando um meio passa bruscamente de uma condição para outra. Tem a ver com níveis de temperatura e pressão. Decorre das perdas que tais mudanças acarretam. Não por acaso, nosso estudante de Química e comunista de carteirinha surrada Josenildo a descobrira e dela se apropriara como quem ocupa um latifúndio improdutivo. Não por acaso também, de tão cifrada a palavra logo virou instrumento de metáfora. Não por acaso ainda, transposta para a área da comunicação a entropia significa alguma coisa sobre resultados imprevisíveis de um processo marcado por muitas variáveis. E o que Noblat, Leitão e Barbosão têm a ver com isso?

Os três são movidos pelo ego de ofícios ultracompetitivos onde tem mais espaço quem fala mais alto - independente do talento na construção das sentenças (e aqui esta palavra está em seu sentido não necessariamente jurídico, embora de parte dos jornalistas exista sempre o desejo de extrapolar tal limite semânico). Quanto tantas vaidades se juntam no mesmo espaço - a folha do jornal, a coluna na televisão, o plenário do Supremo, o show da TV Justiça, a guerra de análises na internet - alguma imprevisibilidade há de escorrer dos veios das contradições que são inerentes a todos os processos, incluindo os políticos e aqueles relativos à comunicação. A entropia nasce dessas fendas que aparecem nas mais sólidas rochas. E quem conhece sabe que Noblat, Leitão e Barbosão são cada um uma pedreira em particular.

segunda-feira, 19 de agosto de 2013

Edward Hopper na W3 Norte

Numa noite de domingo de ruas desertas, silêncios urbanos e atmosfera de sono pesado, alguém pode ter a nítida impressão de ver um disco voador, ou a forte sensação de estar sendo sugado para outras dimensões. Nesse domingo, depois de sair da sessão de "Flores Raras" no final da Asa Norte, em Brasília, vivi não sei bem em que estágio da imaginação a experiência sensorial de estar dentro de um quadro de Edward Hopper. É perfeitamente explicável minha curta viagem de oito quilômetros, que é a extensão percorrida por mim entre o local do cinema e uma outra rua onde esse feitiço estranho e maravilhoso se desfez como por encanto: eu havia saído de um filme onde a linguagem visual é toda baseada nas telas do artista norte-americano.

"Flores Raras" se passa predominantemente entre a cidade do Rio de Janeiro e a serra fluminense, mas em todos os enquadramentos, ambientes, objetos e pontos de vistas - diria mesmo, em todo pensamento filmado que a fita exibe para quem tem olhos capazes de ver - estão presentes as linhas, cores, tons e subtons de Edward Hopper. As salas e quartos são tão amplos quanto meio vazios; uma coloração levemente pálida emana de cada take, a bruma humana que preenche a psicologia dos personagens tinge todo o seu ao redor. E tal casamento resulta perfeito: limpa da tela todo o desnecessário para manter estendido como lençol branco em quintal verde as questões que movem - ou paralisam - os personagens. A linguagem Hopper ainda tem um efeito secundário não menos importante, que é de facilitar, com as suas sínteses, a recriação visual dos anos 50 tanto por parte dos produtores do filme quanto de nós que estamos do lado de cá da tela, reconstruindo cerebralmente aquela atmosfera que a história nos propõe.

Dito isso, imagino que agora pareça natural que, saindo do cinema por volta das 23h15 e entrando na avenida W3 Norte, uma das vias comerciais que cortam Brasília, o fantasma pictório de Edward Hopper pareça ter se interposto no meu caminho. Tudo bem que por estes dias acabei também de ler "O Longo Adeus", um Raymond Chandler de carteirinha em branco e preto onde a estética do artista plástico também parece estar impressa junto com as letrinhas da aventura de Phillipe Marlowe. O fato é que, sob os reflexos do livro e o impacto do filme, nunca a W3 me pareceu tão Edward Hopper quanto nessa noite de domingo, com seus prédios baixos, suas lojas de motos e automóveis de fachadas vitrificadas emitindo luz e solidão para a pista, seus sinais de trânsito inúteis e suas pensões improvisadas no outro lado acalentando sabe-se lá que insônias em silêncio. 

Ninguém na rua, um carro aqui e outro muito longe, uma rarefação condizente com o triste mas sugestivo "Aves da noite" do artista dos EUA. Brasília, w3 Norte, às 23h30 de um domingo, imersa na calma entre o shopping Boulevard e o acesso ao Eixo Monumental, é como se fosse qualquer outra cidade do país às duas da madrugada. Se por uns tantos minutos nenhum carro passar, borrando com sua animação movimentada aquela visão figurativa de cidade escura e funcional, a Brasília da W3 Norte vai parecer mesmo um quadro vivo de Edward Hopper. Sobretudo se você ainda estiver lembrado de um romance noir de Raymond Chandler ou acabado de contemplar no cinema a história tocante de Elizabeth Bishop e Lota de Macedo Soares. 

Flores raras, fracas e fortes




Tem o apelo de duas personalidades marcantes e verdadeiras, assim como o atrativo de testemunhar as entranhas de um relacionamento tempestuoso. Tem o pano de fundo histórico composto pelos bastidores de um livro vencedor do prêmio Pulitzer e da idealização e construção do Parque do Flamengo, cartão postal urbano da cidade do Rio de Janeiro. Tem a curiosidade de saber como se davam os casamentos homossexuais no Brasil dos anos 50 na elite de uma cidade que já era então capital cultural do país, além de ser de fato sua cidade primeira. Tem Glória Pires, uma atriz que, como o argentino Ricardo Darín, é sempre uma garantia de um excelente filme - só o fato de estar lá, no elenco, já adianta que se trata de algo bem trabalhado, refletido, elaborado. E tem a assinatura de Bruno Barreto, um cineasta que não tem pudor de realizar filmes de extração mediana no que a palavra tem de bom: é um narrador metódico e comedido, cujos filmes, sem abrir mão de se comunicar com o total da plateia, enxertam poesia e sensibilidade nos casos que levam para a tela do cinema.

Mas tem algo mais do que tudo isso ao final da projeção dessas "Flores Raras" em cartaz desde sexta-feira: tem um conto sensível sobre a perda. Mais que isso: sobre a capacidade de lidar com a perda. Mais ainda: sobre o jogo de falsas aparências que esse lidar comporta. Temos a arquiteta autodidata e trator humano por formação que é a brasileira Lota de Macedo Soares e seu caso de amor com a poeta norte-americana Elizabeth Bishop. Temos, na brasileira, a força, o ímpeto, a arrogância de uma elite econômica e cultural que até hoje dita - ou imagina que o faz - seus princípios a partir da para sempre capital cultural do país. Temos, na americana, a fragilidade do poeta, o espírito trincado em dor da alcoólatra, a insegurança de quem lida com o sentimento antes de se aproximar do martelo bruto da vida. 

Temos este relacionamento e seus enganos: veremos - e é preciso dizer sem estragar o prazer narrativo de quem, não conhecendo os detalhes da história, ainda não foi ao cinema para vê-la - a força que aquela fraqueza pode ter, e vice-versa. Lota é uma pessoa tão completa dentro de sua auto-afirmação de fundo mimado que, no limite, corre mais riscos do que a bebum Elizabeth e sua constante proximidade da morte. Parece, o tempo inteiro, que Elizabeth vai morrer tragicamente na próxima cena. Parece, a todo momento, que Lota é como um daqueles postes de iluminação que ela colocou no Parque do Flamengo, altos, sólidos, concretos e inflexíveis a ponto de suportar as piores tempestades, iluminando os sobreviventes com um certo desdém de quem vive no alto. 

Mas Lota não sabe perder - e Elizabeth é, ao contrário, especialista na matéria. Por isso aqui a fraqueza aparente é a resistência mais firme, e vice-versa. Depois deste filme, a gente nunca mais verá os fortes e os fracos com o mesmo olhar de antes. Ao menos não os forte e fracos manifestos, desses que se destacam nos consultórios, nos ambientes de trabalho ou nas passeatas.

Festa dos bonecos


Nesse final de semana, tropas de bonecos teatrais se entrincheiraram nos vastos espaços abertos de que é composto o pátio do Museu e Conjunto Cultural da República, aqui em BSB citi. A partir das quatro e meia da tarde começavam os espetáculos e quando se via, seis ou sete da noite, todo o lugar era um mar de pais e filhos ancorados no chão cimentado para assistir, de cara para os artistas (o que era mais difícil, devido às dimensões dos protagonistas) ou frente aos telões, às apresentações de homenzinhos e mulherzinhas feitas do tamanho de um dedo ou capazes de caber - eles e suas longas e incríveis histórias - no espaço de uma folha de papel. 

E foi assim, de uma imensa dimensão diminuta - a estatura fisicamente restrita dos bonecos - a outra que é pura amplidão - o pátio do museu, que transitamos, pais e filhos, entre outros planos, do da realidade parda para o da fantasia multicor da arte e seus efeitos. Eram muitos espetáculos, grande parte deles simultâneos, o que lhe causava uma feérica confusão: o que assistir, onde se deter? Na arte de animação de bonecos britânica ou no nosso velho e estimado mamulengo nordestino? Cedemos, porque era precisa ceder a algum deles por menos binários que queiramos ser, a um espetáculo de extração latino-americana em que os dedos das mãos do artista, dotados de pequenas próteses de brinquedo que imitam um rosto humano, pés e mãos, transformam-se em pequenas criaturas circenses a se exibir no seu minúsculo picadeiro. É impressionante o grau de abstração que o artista consegue com esses meros complementos e o movimento que dá aos próprios dedos: bastam três minutos para você e as crianças esquecerem que estão diante não de uma mão humana dotada pelo poder da arte, mas de um serelepe circense atrapalhado entre escadas, tochas e bambolês. 

A imersão é completa, como completo é também o mergulho que fizemos nós e as crianças no plano bidimensonal mais banal de uma folha de papel: agora é outro o espetáculo que o telão projeta, dando-lhe apenas um pouco da gigantesca dimensão que ele, mesmo usando tão pouco, é capaz de alcançar nas vielas do nosso cérebro e da nossa sensibilidade. O show agora nem conta com bonecos, fisicamente falando. Ou conta: mas é um boneco que o artista, valendo-se de papel, uma caneta hidrocor, uma tesoura dessas de criança e uma placa luminosa (apenas para favorecer a projeção), fabrica para o efeito que pretende dar ao seu espetáculo. Estamos diante de uma adaptação para papel e lápis da "Flauta Mágica", a história que quase todo mundo conhece ao menos de ouvir falar a partir da ópera de Mozart. E o artista reconta a história toda usando este boneco que ele primeiro desenha e depois recorta em pedaços para realizar uma animação em tempo real que deixa o público estupefato - seja ou não criança, de fato ou apenas em espírito. 

Ainda tivemos o prazer de rever o show "Música de Brinquedo", do conjunto Pato Fu, que já havia sido apresentado em espaços público em Brasília mas que também nunca será demais. Mas encerrada a performance dos músicos e dos bonecos que os acompanham na apresentação, a gente volta pra casa com a mente fixada nas miudezas criativas de bonecos de dedos e do flautista de papel: aquelas nossas imitações da vida em dimensão tão reduzida que acabam por, em oposição, agigantar nossas percepções de nós mesmos. Deve ser esta a magia dos bonecos que o SESI reuniu em Brasília no festival "Bonecos do Mundo": nos reduzir a um pedacinho de papel ou a um dedinho da mão para que a gente, devidamente redimensionados em nossas pretensões de super-homens e mulheres, baixemos a bola e abramos espaço à força da imaginação transformadora. 

Aí então, quando a gente levanta do chão frio do pátio do museu e limpa os fundos das calças dando palmadas nas bundas doídas, estaremos espanando um pouco dos excessos que a vida longe dos bonecos e próxima da rotina fazem crescer. Com isso, redimensionamos a nós mesmo, ficando de um tamanho mais próximo das crianças que levamos conosco, tanto no festival de teatro de bonecos quanto na vida de todos os dias.

A banca e a vida


- Estamos aqui para falar de um assunto que ainda é muito confuso, impreciso, imprevisível. Um instrumento que ainda está em processo de formação, que passa pelos campos da comunicação, da informática, da engenharia, da sociologia, do comportamento, da indústria de entretenimento e também de produtos eletrônicos. Enfim, um tema envolto numa nuvem de indefinições que não facilita em nada nosso entendimento sobre ele.

Com essa torre verbal e oscilante de interrogações iniciei, trêmulo e ansioso, o final de uma etapa de estudos que me ocupou por horas e horas durante o último ano e meio. O que está escrito no parágrafo acima é a forma como abri,  sem garantia alguma de que chegaria a um final coerente, a defesa de um trabalho de pós-graduação lato sensu - ou seja, sem os rigores de um mestrado acadêmico - na Universidade Católica de Brasília. Meu tema, que estudei aplicadamente junto com uma turma de jornalistas da TV Câmara, TV Senado, TV Globo e assessorias de imprensa foi a TV digital - este que é considerado pelos já tarimbados especialistas no assunto não como um aprimoramento do aparelho de televisão como o conhecemos (isso seria o que faz a smart tv que o comércio já coloca à venda), mas como, de fato, um novo meio de comunicação, com todo o peso que essa reclassificação comporta.

Mas a ideia aqui não é falar sobre a TV digital. Ela foi apenas meu objeto de análise. Estudei formas de transição que um programa da TV Câmara poderia adotar para passar da linguagem analógica para a digital, e mais não adianto pra não fugir dos objetivos aqui. O propósito, na verdade, está mais ligado à realização de um curso dessa natureza em si do que ao assunto sobre o qual ele se deteve. Sim, senhor, consegui chegar ao final daquele parágrafo inicial diante da minha felizmente diminuta plateia composta pela orientadora, pelo coordenador do curso e pela minha convidada para a banca - a colega e esta sim especialista Dulce Queiroz, que cravou sobre o meu trabalho os dentes da análise precisa e extraiu dela avanços e percalços ao final dos quais obtive minha igualmente feliz aprovação. 

Rejane, escolada no seu mestrado em Comunicação pela UnB, me disse que só o fato de ter feito este curso vai resultar numa diferença de pensamento, quando eu me encontrar diante de um matagal de ideias conflitantes, ou de um desafio intelectual desta natureza. Segundo ela, me verei, inexplicavelmente, dotado de um manancial de instrumentos também intelectuais capazes de ajeitar daqui, arrumar dali, agrupar lá longe, selecionar em paralelo - enfim, o curso me deu as tais réguas e compassos que a investigação intelectual utiliza diante de interrogações tão ou mais desafiadoras quanto a que envolve a implantação da TV digital no país. 

Entrei no curso sem saber praticamente nada sobre TV digital - igual a grande parte da população brasileira, embora eu já viesse do mundo da comunicação, o que é um agravante e tanto. Pior é ter que reconhecer que grande parte dos colegas se encontra no mesmo ponto em que eu antes de começar o curso. Jornalistas somos cada vez menos estudiosos, cada vez mais escravos da pior noção do ofício - especialmente quanto se trata de televisão - que é a farsa de que não precisamos ser especialistas em nada, a não ser em generalidades. É como se, tornando-nos especialistas, traíssemos nossa vocação primeira de saber um pouco de tudo. Nada mais falso. 

Durante um ano e meio, submeti minha ignorância aos vários pontos de vista que podem alavancar ou travar de vez a implantação da TV digital de verdade no país. Terminei o curso sabendo imensamente mais - e igualmente mais cético quanto àquela implantação. Cimentei com cuidado de ourives minhas dúvidas diante da melhoria no padrão da comunicação de massa no país. Mas também revi conceitos catastrofistas que guardava na mente apenas por força da acomodação intelectual mais confortável. 

Fiz a travessia do rio metafórico de João Guimarães anos depois de deixar a escola - embora nunca tenha deixado de ser, no dia a dia, um estudante de fato. E me desesperei controladamente no instante imediatamente anterior à apresentação verbal do trabalho, sua defesa frente à banca, munido como guia apenas de um power point dilmoniano que me valeu de salva-vidas conceitual ao longo do longo percurso entre a frase que abre este texto e as derradeiras conclusões entregues à banca. 

Parece que não me perdi muito - sinal de que as garantias, embora não existam, podem trabalhar a nosso favor apenas se a gente absolutamente não contar com elas. Na banca como na vida, vale mais o preparo - duro, árduo, cansativo mas revigorante. Vale mais a experiência do que o sucesso, o processo do que o resultado - é se concentrando em um ou em outro que você diz a que veio, quem é, onde deseja chegar. Agora vou dar um tempo e ler qualquer coisa, ver qualquer filme. Ano que vem preciso urgentemente arranjar outro impasse pra me exercitar.

segunda-feira, 5 de agosto de 2013

Entre a dança e a fúria


"Em primeiro lugar, minha literatura é uma missão: defender o povo e a cultura brasileiros. Em segundo, uma vocação. Não acredito em literatura sem vocação. Em terceiro, é uma festa. Passei por momentos muito duros na vida, mas os enfrentei pela minha arte, que é a minha dança. Eu sei que posso ficar cego, porque sou diabético - mas eu danço. Quando eu digo dançar, quero dizer que participo da festa da literatura. A morte é certa. Todos nós morremos - e eu danço mesmo assim. A tarefa de viver é dura, mas fascinante. Agradeço a Deus o fato de viver. É com estas três palavras que eu danço: missão, vocação e festa."

Soa como um epitáfio - belo, feliz e estimulante epitáfio para nós que estamos na travessia da vida - este  trecho da entrevista que o escritor Ariano Suassuna deu ao jornal O Globo, publicada na edição desse domingo. É algo que ressoa fundo aos olhos de quem, ao ler as palavras do homem, reconhece nelas o poder revelador de sua literatura. Contém a um só tempo uma profissão de fé na literatura que cabe tanto ao escritor quanto ao seu leitor e uma entre as inúmeras - e sempre nunca suficientes - definições do que vem a ser a vida.

Shakespeare tem aquela tão célebre quanto sombria, que cai bem aos olhos de quem enxerga a vida por baixo de uma camada de poeira triste: alguma coisa com um monte de som e de fúria que não faz sentido algum. Aqui do meu observatório situado em algum pico de uma das montanhas seridoenses, no silêncio de lugares dos quais o mundo não toma muito conhecimento, a preferência mira muito mais nos sítios onde reside a percepção de um bem mais próximo Ariano Suassuna. O paraibano de Soledade - portanto, seridoense paraibano como a gente desses picos - que a vida tornou pernambuco e a literatura transformou em universal tem mais olhos para a beleza oculta no homem e na natureza do que o bardo ocidental de todo o sempre. As escolhas estão aí, à disposição de nossas decisões perceptivas. Podemos até errar, mas nunca dizer que não tivemos as palavras iluminadas para nos guiar no caminho dos mistérios do encanto ou da decepção.

quarta-feira, 24 de julho de 2013

Igrejinha



Domingo passado teve missa bilíngüe aqui na capelinha do Sudoeste, cidade-bairro de classe média abastada de Brasília. Trechos da celebração foram replicados em inglês. Parece que ninguém estranhou muito, já que a igrejinha de madeira que serve à restrita comunidade de católicos semipraticantes aqui deste canto do Sudoeste é mesmo dada a umas inovações. Vizinha do Cruzeiro, o bairro-cidade fronteiriço mais popular e completamente distinto do esnobe Sudoeste, a igrejinha é uma obra sobre a qual nem se pode dizer que parece nunca terminar: na verdade, ela parece nunca começar. Mas funciona bem como um barracão dono de uma freqüência fiel a ponto de suportar a alternância de discurso que não se vê facilmente na política. Lá, domingo sim, domingo não quem celebra a missa é um padre mais velho, conservador, durão, castiço, para o qual este governo não merece a menor confiança. Mas também domingo sim, domingo não, quem está à frente do altar é outro padre, mais moço, mais aberto, mais tolerante e também mais incômodo, que não se sabe bem porque insiste em lembrar aos fiéis que essa história de corrupção não é só uma abstração política  – passa também pelo plano pessoal de cada um deles. Bilíngue, portanto, a igrejinha do Sudoeste sempre foi.
Naturalmente, o fato de a missa ter sido rezada em português-inglês e inglês-português agrada à parte dos fiéis que leva a vida segundo o catecismo do estilo e do consumo típicos do Sudoeste. Este é, definitivamente, um bairro bilíngüe. Não é apenas o fato de a missa de domingo passado ter se dado às vésperas da Jornada Mundial da Juventude que explica essa tecla SAP adaptada ao cotidiano fervoroso da fé. O problema é quando a globalização plenamente incorporada ao dia-a-dia de uma comunidade em vários sentidos cheia de si contraria a nova onda que vem do Vaticano. Pois enquanto os neofiéis se diferenciam das ordas de evangélicos ignorantes, fanáticos e de português mal escrito – inclusive os ricaços, ocupantes de outra igreja na mesma rua deste mesmo Sudoeste – pelo exercício da capacidade de falar outras línguas (nada  ver com o ato fundador da fé carismática, por favor), o chefão-geral rema na contramão dessa tendência. Pois o grande diferenciador do Papa Chico não é a exacerbação da simplicidade?  E agora, o que fazer com a nossa sofisticação atávica? Desperdiçar é que não vamos. Não seria nem muito cristão.
Por essas e outras, o Papa Chico é um fenômeno muito interessante: acusado de ter colaborado com a ditadura argentina, foi pedra no sapato dos Kirchner ao mesmo tempo em que se notabilizava por andar de metrô e morar num apartamento simples em Buenos Aires. Canonizado – digo, eleito papa – levou este estilo para o topo do Vaticano e trouxe de volta a idéia de uma igreja determinada a combater a riqueza desigual e a pobreza ostensiva. Enquanto isso, trava sua luta intramuros contra a máfia dos cardeais-burocratas envolvidos em escândalos meio sexuais, meio financeiros. Um coquetel de contradições, indefinições, impasses e retratações que não tem como não jogar seu protagonista para o alto das atenções públicas mundiais, sejam religiosas ou não. De uma maneira ou de outra, ninguém – no Sudoeste esclarecido ou no Cruzeiro acariocado – vai mesmo tirar os olhos dele.
Agora, pensando bem, se é pra dar um caráter mais cosmopolita a algo que em si é por princípio um exercício do que há de mais particular – a fé religiosa – bem que os padres binários da igrejinha do Sudoeste (e se você quiser ler o termo igrejinha em sentido paralelo é por sua conta) bem que poderiam ter acrescentado um idioma mais apropriado ao modo de ser de Papa Chico. Missa em espanhol teria muito mais a ver, pois não?

quarta-feira, 17 de julho de 2013

IMPORTADOS




Somos contra a importação de médicos. Terminantemente contra. Também não admitimos a importação da dignidade. Somos igualmente refratários à importação de tratamento igualitário para todos. E absolutamente avessos à importação de qualquer forma de reserva aos historicamente menos favorecidos em universidades, no mercado de trabalho, no painel geral de possibilidade de ascensão social e outras subjetividades do tipo. Contra a importação do bom senso, não à importação dos direitos iguais, veto à participação no debate público de quem não tem prestígio nos meios de comunicação.

Nem por isso você precisa nos taxar de intolerantes, politicamente fechados ou xenófobos. Somos totalmente favoráveis à importação de carros de luxo, perfumes, roupitchas e outros supérfluos que de uma hora para outra, você sabe, tornam-se absolutamente necessários. É o tipo da importação que não machuca ninguém, não altera nada, não coloca pobres contra ricos, não provoca manifestações de qualquer espécie. Também somos favorabilíssimos à importação do bom gosto, do jeito exclusivo de se viver, da fama e da fortuna – para quem tem berço capaz de acomodar bem essas virtudes natas. 

Dito isso, tudo é negociável, que é pra que ninguém pense que somos o retrato emoldurado do atraso: que tal, por exemplo, substituir essa absurda importação de médicos pela saudável exportação dos doentes? Eles vão achar o máximo sair dos rincões que por sinal deveriam ser mantidos ecologicamente intocáveis e serem jogados no seio da civilização. Cada posto de saúde no grotão mais renitente poderia se transformar em posto de recrutamento. Algo assim como um neo-pau de arara. Uma alternativa não só de saúde mas também de vida para esse pessoal. Uma gente doente que, assim como as criancinhas miseráveis do Nordeste que tantos europeus caridosos tentam sem sucesso adotar, poderia ter ao menos uma chance na vida. Sem precisar de médico, de cotas ou das tais políticas públicas. Curtiu?