quarta-feira, 24 de abril de 2013

OBITUÁRIOS INESPERADOS



Por algum motivo oculto que o curso da vida ainda não me revelou, tenho sido frequentemente - ou repetidas vezes, de maneira não menos que marcante - objeto de um tipo de surpresa que poderia chamar de, no mínimo, intrigante.  Sem rodeios, trata-se aqui do fato de ficar sabendo por uma notícia impressa, em jornal ou revista, da morte de pessoas queridas - sejam celebridades culturais ou gente com quem tive alguma proximidade. 

Foi o que acabou de se dar agora mesmo, no instante que antecede o post que você lê neste momento, sabe-se lá em que circunstância do seu dia ou da sua vida. Estou folheando um exemplar de revista quando, virando a página, quase pulo da cadeira diante da capacidade de me ejetar emocionalmente que a notícia provoca. Fico sabendo, por meio de um susto impresso, sobre a morte do crítico de cinema Roger Ebert.

Morreu - e acho que só eu não sabia - o crítico que, descoberto ainda recentemente há poucos anos, proporcionou-me horas memoráveis de fruição ao analisar filmes e mais filmes aos quais eu, como tanta gente, me afeiçoei - e o fez com um texto que, de tão acuradamente analítico, dificilmente poderia escorrer tão suavemente pelos veios da mente deste leitor que vos fala. 

Devorei dois livros de Roger Ebert, crítico notabilizado pelos comentários sobre filmes no Chicago Sun-Times, jornal da cidade norte-americana. Depois de ler suas análises - que não eram resenhas rápidas, especialidade de outra celebridade da área, Pauline Kael - os filmes renasciam diante dos olhos de qualquer leitor com uma queda mínima pela sétima arte. São livros em que os comentários de Ebert são feitos, não raramente, a partir de seminários instigantes, em que ele juntava estudantes de cinema em auditórios para analisar sequência por sequência, com a paciência de quem faz uma autópsia não num cadáver mas num repositório de belezas, grandes produções que entraram para a história do cinema.

A crítica de Roger Ebert, assim, vertia uma forma de arte de natureza áudio-visual em outra, uma forma particular de literatura feita como que por meio de um decalque daquilo que a gente via na tela grande. Sobreposição de linguagens de caráter revelador para quem tinha um de seus livros à mão.

E tudo isso de repente adquire uma outra condição quando, ao virar uma página de revista, fico sabendo da morte do crítico - ademais um senhor de idade para quem o ponto final da vida nem deveria ser algo de natureza tão abrupta. Ocorre que, ao retornar dos meus vastos e nunca incomuns períodos de alheiamente ao noticiário nosso de cada dia, costumo tropeçar em evidências como estas. E não é a primeira vez, nem é esta a única forma como este tipo de manifestação se ancora na minha forma de viver neste mundo.


Há alguns anos, trabalhava como redator no jornal Correio Braziliense. Enquanto aguardava os repórteres entregarem suas matérias prontas para serem retrabalhadas, por exemplo, rumo a uma edição de domingo repleta de bons textos que precisaram apenas ser reformatados em páginas atraentes, dei um pulo numa sala próxima à redação para passar os olhos em edições recentes do Diário de Natal, que como integrante dos mesmos Diários Associados, enviava regularmente seus exemplares para Brasília. Eram tempos pré-internet, onde só se podia ler o jornal de um estado distante recorrendo a esses artifícios.

Abro o Diário e vou folheando sem pressa quando deparo com a notícia da morte do jornalista Alfredo Lobo, que outro dia mesmo estava ali naquela mesma redação, à frente do caderno de Turismo. Pra deixar mais claro o impacto da notícia: Alfredo Lobo foi um dos muitos jornalistas encerregados de fazer uma das inúmeras mudanças editoriais no jornal Tribuna do Norte, também de Natal, durante a década de 80. E foi o responsável por um dos períodos mais ricos para quem lá esteve enquanto ele inseria no jornal natalense um frescor que dia a dia o diferenciava do concorrente - justamente o Diário onde anos depois eu leria a notícia da sua morte.

Mudando para Brasília, reencontrei Lobo - ele mesmo um dos principais responsáveis pela minha mudança para cá, mas isso é outra história -, no Correio Braziliense; eu como redator novato na sessão Brasil/Política e ele como editor do suplemento de Turismo. O tempo moveu suas rodas, Lobo deixou o Correio, voltou a Natal para novo desafio - reformar outro jornal, desta vez o Diário - e o contato foi se perdendo. Um dia, Lobo de volta a Brasília mas trabalhando em alguma assessoria, nos encontramos num shopping e almoçamos juntos, relembrando os tempos de Natal. A roda do tempo move-se novamente e... aqui estou eu na sala próxima à redação do Correio com o Diário nas mãos e o coração aos saltos. 

Ainda bem que não era a primeira vez (!?): pois é, já havia acontecido antes. Morei durante um bom tempo no conjunto Parque das Pedras, em Natal, em tempos de vacas magras e felicidade urgente. Tempos de inflação em alta, quando a gente alugava um apartamento por uma fortuna que, dois meses depois, valiam quase nada. E nisso, pulando de um apartamento do Parque das Pedras para outro, acabei ocupando um imóvel de propriedade de um médico que vivia em Brasília (!), mas cujo aluguel devia ser pago à sua avô, uma solitária e nostálgica velhinha que residia num quartinho de fundos de uma casa em Petrópolis, ali perto do Palácio dos Esportes, em Natal.

Dona Letícia Galvão tinha perdido quase tudo na vida - o marido, o único filho, os bens, o conforto. Só restou a ela o neto, um único e escasso neto como diria o dramaturgo. Na sua velhice solitária, Dona Letícia escrevia romances a ponta de lápis em cadernos pautados, vivia rodeada de fotografias e figuras de revistas que lhe remetiam aos tempos passados, e tinha toda uma vida de recordações acondicionadas em um cômodo escuro onde o único brilho vinha de uma tevê de 14 polegadas que o neto lhe comprara há pouco tempo.




Toda vez que eu ia pagar o aluguel, Dona Letícia me alugava - com o perdão do trocadilho, que está aqui apenas para você me entender melhor e não por galhofa. Eram horas e horas escutando as histórias dos saraus literários que aconteciam na casa de Dona Letícia quando ela era apenas uma poetisa na flor da juventude; uma corredeira de minutos escoando naquela casa de fundos enquanto ela lembrava do dia-a-dia com os pais e as irmãs numa Natal que não existia mais; ampulhentas virando e revirando enquanto ela, melancolicamente, mudava das lembranças de outrora para a penúncia dos dias de então, quando a relação com as irmãs - que também lhe restaram, mas de nada serviam - desandava. Sessões de um quase monólogo muito típico de pessoas mais velhas diante de ouvintes bem novos que invariavelmente denotava também a falta que ela sentia da presença física do neto distante no tempo e no lugar. 

Sensibilizado com o mundo de Letícia Galvão, cheguei a produzir uma reportagem na TV Cabugi, que a repórter Lúcia Matias preparou com esmero e me entregou prontinha para uma edição minimamente sensível (sonorizada, infalivelmente, com Elis Regina cantando os sonhos mais lindos que sonhou). Mas acabei mudando de moradia e me distanciando de Dona Letícia, seus cadernos e suas memórias. Um dia, outro dia qualquer como aquele em que fiquei sabendo da morte de Alfredo Lobo, ou como hoje diante da revista com o obituário de Roger Ebert, abro um jornal casualmente na redação da TV Cabugi e lá está: um anúncio de missa de sétimo dia em lembrança da alma de Letícia Galvão. Publicado pelo neto, a única pessoa no mundo que lhe restara no final da vida.

Com a confidente Letícia, o renovador Alfredo Lobo e o instigante Roger Ebert vou aprendendo que, mais do que fazer doer o coração, a morte é este ponto final que intriga a cabeça da gente; expõe nossa vulnerabilidade, esquadrinha essa intangível falta de dimensão mensurável que somos nós outros, os vivos. 

Mas tomar conhecimento por meio de uma nota impressa no jornal sobre o falecimento de quem nos foi querido, ainda que distante, às vezes inalcançável, é como recobrir a morte de uma camada a mais de perplexidade. 

Dói de um tipo de doçura como a do chocolate que cobre a massa do bolo de aniversário: você fica a pensar na vida e na morte como esse sabor de nada no fundo da boca, como se uma entidade desconhecida lhe houvesse tirado o doce das mãos da criança que você, sem saber, continua sendo.