segunda-feira, 26 de agosto de 2013

Mais médicos, menos jornalistas

Essa polêmica dos médicos está erigida sobre uma obviedade tão evidente (a esta altura não serei mais um a banalizar o velho "ululante" de Nelsão), que dispensa até maiores reflexões, textos, palpites. Parece o tipo do assunto diante do qual é mais inteligente reduzir tudo à sua essência do que ficar inflando controvérsia onde não existe. Ou não deveria existir, caso não houvesse, agora sim, uma doença chamada desonestidade intelectual.

Assim: 1) faltam médicos na rede pública e isso é gritante, sobretudo no interior, especialmente onde a medicina tem uma função mais geral do que nas cada vez mais sofisticadas tecnoclínicas que excitam os superpoderes da categoria nas metrópoles; 2) falta estrutura de trabalho para os médicos, yes, sobretudo nos mesmíssimos lugares descritos no item anterior, o que rende uma bela desculpa para os profissionais que não sentem o menor apelo para dar as costas ao ultra-qualquer coisa que cospe exames a preço de ouro e encarar a carência até de papel higiênico no postinho público do grotão.

Dito isso, sacramentado o que todo mundo está cansado de saber, espanadas as hipocrisias de ambos os lados - doutores e governos - temos então o programa Mais Médicos produzindo histerias ideológicas em conselhos e aeroportos. Temos mais: uma outra categoria profissional cuja função social é mediar as complicadas relações entre classes, profissões, instâncias e demandas. Nós, os jornalistas - que nos encontramos metidos até o pescoço na tal "polêmica", mesmo sem usar jaleco ou sem nunca termos ido a Cuba, a não ser para férias em Varadero e similares, claro.

Na edição desse domingo do Correio Braziliense, jornalistas escrevem, numa reportagem de título auto-explicativo ("O apelo eleitoral do Mais Médicos"): "A avaliação é de que críticas, neste momento, podem não ser compreendidas pela população que sofre com a falta de médicos no país". Eu, leitor, ex-redator deste mesmíssimo jornal, me atrevo a substituir palavras (e lembro de Rubem Alves, que diz que pensar é brincar com as palavras, essa só aparente inutilidade): "A avaliação é de que críticas ÀS ENTIDADES MÉDICAS, neste momento, podem não ser compreendidas pelos JORNALISTAS que NÃO sofrem com a falta de médicos no país."

Opus allienum dei

Está começando de novo e o automático da vida quer me convencer a dizer apenas que todo ano é a mesma coisa. Não é: cada seca de Brasília é como se fosse uma nova e desconhecida estação climática a mexer com as nossas convenções extra-atmosféricas. Já vão pra mais de dez anos que esse capricho natural da região central do país me envolve como a todos que vivem aqui, reelaborando a forma como respiramos, dormimos, acordamos, resistimos ou suamos - ou não suamos, que é o que de fato acontece enquanto os outros verbos são conjugados no todo-dia de cada um. Mas, repito, é como se fosse sempre a primeira vez.

Ou melhor: a segunda, porque a primeira sempre tem aquele gostinho de novidade que dilui as piores agruras em calda doce de curiosidade, dando às sensações um outro efeito. A segunda, sim, é aquela que soa que nem ferro em brasa em pele de cordeiro - sem mistérios de expectativa. No nosso caso particular aqui, um dia você acorda e nota que, hoje, claramente, bem mais do que ontem, aquela camiseta velhinha que cai em pano suave nos seus ombros está estranhamente meio rídida - como se você, no lugar da roupa, estivesse vestindo uma embalagem de papelão.

Isso é a seca de Brasília, tanto quanto as queimadas que fazem o belo céu azul faiscar em eletricidade aspirada. A diferença é que os incêndios são cenográficos, logo estão no telejornal, rendem manchetes na internet. Quem imaginaria que não é só isso, o fantástico daqueles aviõezinhos que jogam água no ar impressionando os olhares daqui e de alhures? Quem, senão os que de fato estão imersos neste ambiente, lembraria da fuligem com passagem marcada para entrar no seu nariz, além do incômodo de encarar um  guarda-roupa embalsamado em secura?

Daqui até meados novembro, que é quando de fato a seca acaba - quem lê este blogue há tempos sabe que existem uns intervalos, com a tal "chuva da seca" que vem com tempestade mas se vai tão misteriosamente quanto chegou - a pisada é esta: poeira em suspensão máxima, a impressão de que estão passando um ralador de coco no seu couro, e o azulão celeste pra compensar os inconvenientes da estação. É a manifestação da natureza que pega todas as classes, idades, tribos, cores políticas. Até o presidente da República tem que aguentar o rojão. É como se a seca estivesse dizendo: desculpe, estou construindo uma temporada de chuvas. Trabalhando na matéria dos ciclos - no lugar de reclamar, se veio para aqui trate de começar a fazer parte dele.

Enquanto aguardo, vou lendo; e um dos livros que me distrai agora é Ostra feliz não faz pérola, de Rubem Alves. Poderia fazer galhofa desse título tão provocador quando o assunto é a chegada, sem sombra de qualquer umidade, da seca de Brasília pra quem vive nas suas modernas geometrias. Planalto feliz não faz chuva. Mas vamos menos de trocadilho e mais para a citação mesmo: diz lá, na página 132, que os teólogos medievais falavaram sobre a opus proprium dei e opus allienum dei. "A obra própria de Deus é quando ele faz a obra boa, diretamente, sem desvios. A obra estranha de Deus é quando ele faz uma coisa ruim para chegar à boa." Rubem Alves está falando de professores excelentes e também dos medíocres, mas poderia estar se referindo à  seca de Brasília - essa coisa ruim (embora pontuada também por pingos de beleza, vide o céu e a inconstância colorida dos ipês) que deságua, literalmente, numa outra, boa entre as melhores. O jeito é esperar.

quarta-feira, 21 de agosto de 2013

Castelos de Casares


Há literaturas que mais parecem arquiteturas. Construções narrativas feitas por caminhos geometricamente tão necessários ao efeito final que soam menos como contos do que como esculturas. Histórias que evocam a poesia concreta; causos que emanam números literalizados; histórias sustentadas em pilares verbais que o leitor quase consegue tocar com os olhos. São assim as "Histórias fantásticas" do argentino Adolfo Bioy Casares, patner literário de Jorge Luiz Borges que aqui exercita esse meio termo entre letra pura e cinema de mistério, ambientando tudo num espécie de pampa universal que trespassa o rio da Prata, tangencia o Uruguai e corre em zique-zague pelo nosso Rio Grande do Sul.

Numa das histórias, acompanhamos o discurso agressivo de um quase panteísta cético contra o monoteísmo cristão, em argumentos duelados com um adversário a princípio não identificado e cuja revelação mostrar-se-á, com o perdão da mesóclise, a laje literária da narrativa toda: é o próprio diabo enfezando-se para defender a existência de um único Deus, ainda que este seja seu adversário primeiro e total. Em outro, de extração que lembra as brumas absurdas e sufocantes de "O Castelo" de Kafka, é a real identidade de um assassino que ludibria com gosto mesmo o leitor mais prevenido: a graça literária aqui está na qualidade dos enganos que Casares consegue produzir usando apenas a matéria elástica das palavras, frases, parágrafos.

O livro é pura mistificação iluminada, prestidigitação verbal, manipulação perdoada de quem sabe erigir de um arranjo de palavras um castelo de impressões, apenas pela volúpia de demolir tudo na penúltima página. E o prazer final é todo seu, leitor.

Suprema entropia

Um colega dos tempos da residência universitária em Natal, Josenildo, comunista até o tutano dos ossos; adversário da televisão que dizia servir só pra passar propaganda; inflexível defensor de uma revolução geral que passasse tanto pela Química que era seu objeto de estudo quanto pela Sociologia de muitos outros e a Comunicação da nossa parte, tinha especial predileção pela palavra "entropia". Qualquer chance de usá-la e nosso caicoense vermelho preferido sapecava a palavra, como quem ejeta no ar um argumento incontestável: é a entropia!

Josenildo, de quem não tenho notícias há anos, teve esta semana, continue a ser ou não o comunista férreo de 1985, uma chance daquelas de definir uma situação à sua maneira. Só ela mesma, a entropia, para explicar, numa palavra, o inesperado ataque do jornalista Ricardo Noblat ao presidente do STF, Joaquinzão Barbosa. Depois do show do mensalão e suas mil e uma interpretações, eis que o jornalista dirige toda sua verve de detonador de reputação para aquele que minutos atrás era o tal menino pobre que iria mudar o Brasil. Não tenho simpatias por Barbosão, mas Noblat chegou às raias do assédio moral ao dizer que lhe falta "educapção de berço". Pensei na mãe de família sacrificada que criou o filho Barbosinha e seus irmãos com dificuldades e hoje o vê presidindo a mais alta corte judicial do país. E a entropia não termina aí, visto que ato contínuo a jornalista Miriam Leitão saiu em defesa de Barbosa, entornando de vez o caldo dessa... entropia.

Entropia é uma palavrinha do tipo que impressiona à primeira pronúncia e, como tantas assim, tem um batalhão de significados complicados atrás de si para lhe garantir essa aura de autoridade meio imprecisa. Vem do mundo das substâncias, explica processos químicos que ocorrem quando um meio passa bruscamente de uma condição para outra. Tem a ver com níveis de temperatura e pressão. Decorre das perdas que tais mudanças acarretam. Não por acaso, nosso estudante de Química e comunista de carteirinha surrada Josenildo a descobrira e dela se apropriara como quem ocupa um latifúndio improdutivo. Não por acaso também, de tão cifrada a palavra logo virou instrumento de metáfora. Não por acaso ainda, transposta para a área da comunicação a entropia significa alguma coisa sobre resultados imprevisíveis de um processo marcado por muitas variáveis. E o que Noblat, Leitão e Barbosão têm a ver com isso?

Os três são movidos pelo ego de ofícios ultracompetitivos onde tem mais espaço quem fala mais alto - independente do talento na construção das sentenças (e aqui esta palavra está em seu sentido não necessariamente jurídico, embora de parte dos jornalistas exista sempre o desejo de extrapolar tal limite semânico). Quanto tantas vaidades se juntam no mesmo espaço - a folha do jornal, a coluna na televisão, o plenário do Supremo, o show da TV Justiça, a guerra de análises na internet - alguma imprevisibilidade há de escorrer dos veios das contradições que são inerentes a todos os processos, incluindo os políticos e aqueles relativos à comunicação. A entropia nasce dessas fendas que aparecem nas mais sólidas rochas. E quem conhece sabe que Noblat, Leitão e Barbosão são cada um uma pedreira em particular.

segunda-feira, 19 de agosto de 2013

Edward Hopper na W3 Norte

Numa noite de domingo de ruas desertas, silêncios urbanos e atmosfera de sono pesado, alguém pode ter a nítida impressão de ver um disco voador, ou a forte sensação de estar sendo sugado para outras dimensões. Nesse domingo, depois de sair da sessão de "Flores Raras" no final da Asa Norte, em Brasília, vivi não sei bem em que estágio da imaginação a experiência sensorial de estar dentro de um quadro de Edward Hopper. É perfeitamente explicável minha curta viagem de oito quilômetros, que é a extensão percorrida por mim entre o local do cinema e uma outra rua onde esse feitiço estranho e maravilhoso se desfez como por encanto: eu havia saído de um filme onde a linguagem visual é toda baseada nas telas do artista norte-americano.

"Flores Raras" se passa predominantemente entre a cidade do Rio de Janeiro e a serra fluminense, mas em todos os enquadramentos, ambientes, objetos e pontos de vistas - diria mesmo, em todo pensamento filmado que a fita exibe para quem tem olhos capazes de ver - estão presentes as linhas, cores, tons e subtons de Edward Hopper. As salas e quartos são tão amplos quanto meio vazios; uma coloração levemente pálida emana de cada take, a bruma humana que preenche a psicologia dos personagens tinge todo o seu ao redor. E tal casamento resulta perfeito: limpa da tela todo o desnecessário para manter estendido como lençol branco em quintal verde as questões que movem - ou paralisam - os personagens. A linguagem Hopper ainda tem um efeito secundário não menos importante, que é de facilitar, com as suas sínteses, a recriação visual dos anos 50 tanto por parte dos produtores do filme quanto de nós que estamos do lado de cá da tela, reconstruindo cerebralmente aquela atmosfera que a história nos propõe.

Dito isso, imagino que agora pareça natural que, saindo do cinema por volta das 23h15 e entrando na avenida W3 Norte, uma das vias comerciais que cortam Brasília, o fantasma pictório de Edward Hopper pareça ter se interposto no meu caminho. Tudo bem que por estes dias acabei também de ler "O Longo Adeus", um Raymond Chandler de carteirinha em branco e preto onde a estética do artista plástico também parece estar impressa junto com as letrinhas da aventura de Phillipe Marlowe. O fato é que, sob os reflexos do livro e o impacto do filme, nunca a W3 me pareceu tão Edward Hopper quanto nessa noite de domingo, com seus prédios baixos, suas lojas de motos e automóveis de fachadas vitrificadas emitindo luz e solidão para a pista, seus sinais de trânsito inúteis e suas pensões improvisadas no outro lado acalentando sabe-se lá que insônias em silêncio. 

Ninguém na rua, um carro aqui e outro muito longe, uma rarefação condizente com o triste mas sugestivo "Aves da noite" do artista dos EUA. Brasília, w3 Norte, às 23h30 de um domingo, imersa na calma entre o shopping Boulevard e o acesso ao Eixo Monumental, é como se fosse qualquer outra cidade do país às duas da madrugada. Se por uns tantos minutos nenhum carro passar, borrando com sua animação movimentada aquela visão figurativa de cidade escura e funcional, a Brasília da W3 Norte vai parecer mesmo um quadro vivo de Edward Hopper. Sobretudo se você ainda estiver lembrado de um romance noir de Raymond Chandler ou acabado de contemplar no cinema a história tocante de Elizabeth Bishop e Lota de Macedo Soares. 

Flores raras, fracas e fortes




Tem o apelo de duas personalidades marcantes e verdadeiras, assim como o atrativo de testemunhar as entranhas de um relacionamento tempestuoso. Tem o pano de fundo histórico composto pelos bastidores de um livro vencedor do prêmio Pulitzer e da idealização e construção do Parque do Flamengo, cartão postal urbano da cidade do Rio de Janeiro. Tem a curiosidade de saber como se davam os casamentos homossexuais no Brasil dos anos 50 na elite de uma cidade que já era então capital cultural do país, além de ser de fato sua cidade primeira. Tem Glória Pires, uma atriz que, como o argentino Ricardo Darín, é sempre uma garantia de um excelente filme - só o fato de estar lá, no elenco, já adianta que se trata de algo bem trabalhado, refletido, elaborado. E tem a assinatura de Bruno Barreto, um cineasta que não tem pudor de realizar filmes de extração mediana no que a palavra tem de bom: é um narrador metódico e comedido, cujos filmes, sem abrir mão de se comunicar com o total da plateia, enxertam poesia e sensibilidade nos casos que levam para a tela do cinema.

Mas tem algo mais do que tudo isso ao final da projeção dessas "Flores Raras" em cartaz desde sexta-feira: tem um conto sensível sobre a perda. Mais que isso: sobre a capacidade de lidar com a perda. Mais ainda: sobre o jogo de falsas aparências que esse lidar comporta. Temos a arquiteta autodidata e trator humano por formação que é a brasileira Lota de Macedo Soares e seu caso de amor com a poeta norte-americana Elizabeth Bishop. Temos, na brasileira, a força, o ímpeto, a arrogância de uma elite econômica e cultural que até hoje dita - ou imagina que o faz - seus princípios a partir da para sempre capital cultural do país. Temos, na americana, a fragilidade do poeta, o espírito trincado em dor da alcoólatra, a insegurança de quem lida com o sentimento antes de se aproximar do martelo bruto da vida. 

Temos este relacionamento e seus enganos: veremos - e é preciso dizer sem estragar o prazer narrativo de quem, não conhecendo os detalhes da história, ainda não foi ao cinema para vê-la - a força que aquela fraqueza pode ter, e vice-versa. Lota é uma pessoa tão completa dentro de sua auto-afirmação de fundo mimado que, no limite, corre mais riscos do que a bebum Elizabeth e sua constante proximidade da morte. Parece, o tempo inteiro, que Elizabeth vai morrer tragicamente na próxima cena. Parece, a todo momento, que Lota é como um daqueles postes de iluminação que ela colocou no Parque do Flamengo, altos, sólidos, concretos e inflexíveis a ponto de suportar as piores tempestades, iluminando os sobreviventes com um certo desdém de quem vive no alto. 

Mas Lota não sabe perder - e Elizabeth é, ao contrário, especialista na matéria. Por isso aqui a fraqueza aparente é a resistência mais firme, e vice-versa. Depois deste filme, a gente nunca mais verá os fortes e os fracos com o mesmo olhar de antes. Ao menos não os forte e fracos manifestos, desses que se destacam nos consultórios, nos ambientes de trabalho ou nas passeatas.

Festa dos bonecos


Nesse final de semana, tropas de bonecos teatrais se entrincheiraram nos vastos espaços abertos de que é composto o pátio do Museu e Conjunto Cultural da República, aqui em BSB citi. A partir das quatro e meia da tarde começavam os espetáculos e quando se via, seis ou sete da noite, todo o lugar era um mar de pais e filhos ancorados no chão cimentado para assistir, de cara para os artistas (o que era mais difícil, devido às dimensões dos protagonistas) ou frente aos telões, às apresentações de homenzinhos e mulherzinhas feitas do tamanho de um dedo ou capazes de caber - eles e suas longas e incríveis histórias - no espaço de uma folha de papel. 

E foi assim, de uma imensa dimensão diminuta - a estatura fisicamente restrita dos bonecos - a outra que é pura amplidão - o pátio do museu, que transitamos, pais e filhos, entre outros planos, do da realidade parda para o da fantasia multicor da arte e seus efeitos. Eram muitos espetáculos, grande parte deles simultâneos, o que lhe causava uma feérica confusão: o que assistir, onde se deter? Na arte de animação de bonecos britânica ou no nosso velho e estimado mamulengo nordestino? Cedemos, porque era precisa ceder a algum deles por menos binários que queiramos ser, a um espetáculo de extração latino-americana em que os dedos das mãos do artista, dotados de pequenas próteses de brinquedo que imitam um rosto humano, pés e mãos, transformam-se em pequenas criaturas circenses a se exibir no seu minúsculo picadeiro. É impressionante o grau de abstração que o artista consegue com esses meros complementos e o movimento que dá aos próprios dedos: bastam três minutos para você e as crianças esquecerem que estão diante não de uma mão humana dotada pelo poder da arte, mas de um serelepe circense atrapalhado entre escadas, tochas e bambolês. 

A imersão é completa, como completo é também o mergulho que fizemos nós e as crianças no plano bidimensonal mais banal de uma folha de papel: agora é outro o espetáculo que o telão projeta, dando-lhe apenas um pouco da gigantesca dimensão que ele, mesmo usando tão pouco, é capaz de alcançar nas vielas do nosso cérebro e da nossa sensibilidade. O show agora nem conta com bonecos, fisicamente falando. Ou conta: mas é um boneco que o artista, valendo-se de papel, uma caneta hidrocor, uma tesoura dessas de criança e uma placa luminosa (apenas para favorecer a projeção), fabrica para o efeito que pretende dar ao seu espetáculo. Estamos diante de uma adaptação para papel e lápis da "Flauta Mágica", a história que quase todo mundo conhece ao menos de ouvir falar a partir da ópera de Mozart. E o artista reconta a história toda usando este boneco que ele primeiro desenha e depois recorta em pedaços para realizar uma animação em tempo real que deixa o público estupefato - seja ou não criança, de fato ou apenas em espírito. 

Ainda tivemos o prazer de rever o show "Música de Brinquedo", do conjunto Pato Fu, que já havia sido apresentado em espaços público em Brasília mas que também nunca será demais. Mas encerrada a performance dos músicos e dos bonecos que os acompanham na apresentação, a gente volta pra casa com a mente fixada nas miudezas criativas de bonecos de dedos e do flautista de papel: aquelas nossas imitações da vida em dimensão tão reduzida que acabam por, em oposição, agigantar nossas percepções de nós mesmos. Deve ser esta a magia dos bonecos que o SESI reuniu em Brasília no festival "Bonecos do Mundo": nos reduzir a um pedacinho de papel ou a um dedinho da mão para que a gente, devidamente redimensionados em nossas pretensões de super-homens e mulheres, baixemos a bola e abramos espaço à força da imaginação transformadora. 

Aí então, quando a gente levanta do chão frio do pátio do museu e limpa os fundos das calças dando palmadas nas bundas doídas, estaremos espanando um pouco dos excessos que a vida longe dos bonecos e próxima da rotina fazem crescer. Com isso, redimensionamos a nós mesmo, ficando de um tamanho mais próximo das crianças que levamos conosco, tanto no festival de teatro de bonecos quanto na vida de todos os dias.

A banca e a vida


- Estamos aqui para falar de um assunto que ainda é muito confuso, impreciso, imprevisível. Um instrumento que ainda está em processo de formação, que passa pelos campos da comunicação, da informática, da engenharia, da sociologia, do comportamento, da indústria de entretenimento e também de produtos eletrônicos. Enfim, um tema envolto numa nuvem de indefinições que não facilita em nada nosso entendimento sobre ele.

Com essa torre verbal e oscilante de interrogações iniciei, trêmulo e ansioso, o final de uma etapa de estudos que me ocupou por horas e horas durante o último ano e meio. O que está escrito no parágrafo acima é a forma como abri,  sem garantia alguma de que chegaria a um final coerente, a defesa de um trabalho de pós-graduação lato sensu - ou seja, sem os rigores de um mestrado acadêmico - na Universidade Católica de Brasília. Meu tema, que estudei aplicadamente junto com uma turma de jornalistas da TV Câmara, TV Senado, TV Globo e assessorias de imprensa foi a TV digital - este que é considerado pelos já tarimbados especialistas no assunto não como um aprimoramento do aparelho de televisão como o conhecemos (isso seria o que faz a smart tv que o comércio já coloca à venda), mas como, de fato, um novo meio de comunicação, com todo o peso que essa reclassificação comporta.

Mas a ideia aqui não é falar sobre a TV digital. Ela foi apenas meu objeto de análise. Estudei formas de transição que um programa da TV Câmara poderia adotar para passar da linguagem analógica para a digital, e mais não adianto pra não fugir dos objetivos aqui. O propósito, na verdade, está mais ligado à realização de um curso dessa natureza em si do que ao assunto sobre o qual ele se deteve. Sim, senhor, consegui chegar ao final daquele parágrafo inicial diante da minha felizmente diminuta plateia composta pela orientadora, pelo coordenador do curso e pela minha convidada para a banca - a colega e esta sim especialista Dulce Queiroz, que cravou sobre o meu trabalho os dentes da análise precisa e extraiu dela avanços e percalços ao final dos quais obtive minha igualmente feliz aprovação. 

Rejane, escolada no seu mestrado em Comunicação pela UnB, me disse que só o fato de ter feito este curso vai resultar numa diferença de pensamento, quando eu me encontrar diante de um matagal de ideias conflitantes, ou de um desafio intelectual desta natureza. Segundo ela, me verei, inexplicavelmente, dotado de um manancial de instrumentos também intelectuais capazes de ajeitar daqui, arrumar dali, agrupar lá longe, selecionar em paralelo - enfim, o curso me deu as tais réguas e compassos que a investigação intelectual utiliza diante de interrogações tão ou mais desafiadoras quanto a que envolve a implantação da TV digital no país. 

Entrei no curso sem saber praticamente nada sobre TV digital - igual a grande parte da população brasileira, embora eu já viesse do mundo da comunicação, o que é um agravante e tanto. Pior é ter que reconhecer que grande parte dos colegas se encontra no mesmo ponto em que eu antes de começar o curso. Jornalistas somos cada vez menos estudiosos, cada vez mais escravos da pior noção do ofício - especialmente quanto se trata de televisão - que é a farsa de que não precisamos ser especialistas em nada, a não ser em generalidades. É como se, tornando-nos especialistas, traíssemos nossa vocação primeira de saber um pouco de tudo. Nada mais falso. 

Durante um ano e meio, submeti minha ignorância aos vários pontos de vista que podem alavancar ou travar de vez a implantação da TV digital de verdade no país. Terminei o curso sabendo imensamente mais - e igualmente mais cético quanto àquela implantação. Cimentei com cuidado de ourives minhas dúvidas diante da melhoria no padrão da comunicação de massa no país. Mas também revi conceitos catastrofistas que guardava na mente apenas por força da acomodação intelectual mais confortável. 

Fiz a travessia do rio metafórico de João Guimarães anos depois de deixar a escola - embora nunca tenha deixado de ser, no dia a dia, um estudante de fato. E me desesperei controladamente no instante imediatamente anterior à apresentação verbal do trabalho, sua defesa frente à banca, munido como guia apenas de um power point dilmoniano que me valeu de salva-vidas conceitual ao longo do longo percurso entre a frase que abre este texto e as derradeiras conclusões entregues à banca. 

Parece que não me perdi muito - sinal de que as garantias, embora não existam, podem trabalhar a nosso favor apenas se a gente absolutamente não contar com elas. Na banca como na vida, vale mais o preparo - duro, árduo, cansativo mas revigorante. Vale mais a experiência do que o sucesso, o processo do que o resultado - é se concentrando em um ou em outro que você diz a que veio, quem é, onde deseja chegar. Agora vou dar um tempo e ler qualquer coisa, ver qualquer filme. Ano que vem preciso urgentemente arranjar outro impasse pra me exercitar.

segunda-feira, 5 de agosto de 2013

Entre a dança e a fúria


"Em primeiro lugar, minha literatura é uma missão: defender o povo e a cultura brasileiros. Em segundo, uma vocação. Não acredito em literatura sem vocação. Em terceiro, é uma festa. Passei por momentos muito duros na vida, mas os enfrentei pela minha arte, que é a minha dança. Eu sei que posso ficar cego, porque sou diabético - mas eu danço. Quando eu digo dançar, quero dizer que participo da festa da literatura. A morte é certa. Todos nós morremos - e eu danço mesmo assim. A tarefa de viver é dura, mas fascinante. Agradeço a Deus o fato de viver. É com estas três palavras que eu danço: missão, vocação e festa."

Soa como um epitáfio - belo, feliz e estimulante epitáfio para nós que estamos na travessia da vida - este  trecho da entrevista que o escritor Ariano Suassuna deu ao jornal O Globo, publicada na edição desse domingo. É algo que ressoa fundo aos olhos de quem, ao ler as palavras do homem, reconhece nelas o poder revelador de sua literatura. Contém a um só tempo uma profissão de fé na literatura que cabe tanto ao escritor quanto ao seu leitor e uma entre as inúmeras - e sempre nunca suficientes - definições do que vem a ser a vida.

Shakespeare tem aquela tão célebre quanto sombria, que cai bem aos olhos de quem enxerga a vida por baixo de uma camada de poeira triste: alguma coisa com um monte de som e de fúria que não faz sentido algum. Aqui do meu observatório situado em algum pico de uma das montanhas seridoenses, no silêncio de lugares dos quais o mundo não toma muito conhecimento, a preferência mira muito mais nos sítios onde reside a percepção de um bem mais próximo Ariano Suassuna. O paraibano de Soledade - portanto, seridoense paraibano como a gente desses picos - que a vida tornou pernambuco e a literatura transformou em universal tem mais olhos para a beleza oculta no homem e na natureza do que o bardo ocidental de todo o sempre. As escolhas estão aí, à disposição de nossas decisões perceptivas. Podemos até errar, mas nunca dizer que não tivemos as palavras iluminadas para nos guiar no caminho dos mistérios do encanto ou da decepção.