domingo, 29 de setembro de 2013

Todo poder ao bandejão


Caiu no ruge-ruge do Facebook por estes dias a imagem de um bandejão de restaurante universitário, aquela placa metálica com divisões onde se coloca as porções de alimentos de um almoço ou jantar. A imagem mexeu com minhas memórias e ao fim de uma rápida investigação sobre o significado daquele apetrecho para as minhas décadas de vida terminei encarando o clássico bandejão quase como um troféu. O signo de uma luta travada com alegria, disposição, sacrifício e recompensas não apenas por mim, mas para muitos e muitos amigos com quem dividi a convivência tanto num internato onde cursei o segundo grau quanto - e principalmente, pela extensão do tempo e valor da experiência - as alamedas do Campus da UFRN, em Natal. 

A imagem do bandejão me jogou de chofre numa época muito diversa da atual - e aqui me refiro aos pontos em que essa diversidade resulta em prejuízo para os dias atuais. Diversa do ponto de vista pessoal, como é natural que seja, pois que os anos passam, a gente sai de uma condição para outra, escala empregos, aprimora afazeres, compõe currículos, vê nascer filhos, vê crescer tais filhos em velocidade de cruzeiro, muda de cidade (no meu caso), recomeça, cansa, reclama e segue em frente. O rio nunca é o mesmo, todo mundo sabe quando está diante de mais uma travessia. E é assim que o bandejão e tudo o que ele representa vai ficando para trás. 

A realidade social e coletiva da cidade e do país também contribuem para este movimento - este esquecimento. Qualquer um que viveu os picos da juventude nos meus temos de UFRN, década de 80, sabe dessas diferenças e, aqui e ali, lembrando delas, queria trazer alguma coisa de volta. Não digo aquela juventude numérica, que a resistência física mesmo impede, mas os sinais do momento que tanta falta fazem hoje. É aqui que o bandejão reina soberano no seu posto de troféu do tempo: visto hoje num post de facebook seu metal rude brilha como ouro ao nos lembrar do quanto menos individualistas éramos, da nossa sobrevivência em bandos arrancada aos centavos, do congraçamento que provávamos em detrimento da comida que, feita em enormes quantidades, naturalmente não podia proporcionar o paladar refinado dos cardápios caros - ou caseiros. Não importava: à frente do bandejão, a gente se alimentava também de outras matérias que andam muito em falta neste mundo mercantilizado de Pequim a Jucurutu, terra do amigo Vilmar, a quem nunca mais vi, ou Marcelino Vieira, cidade de Antônio Edson, companheiro da Residência Universitária que dormia sobre livros de medicina e a quem também nunca mais vi. 

Quem compartilhou no facebook a imagem sintomática do bandejão foi a amiga Guia Bezerra, conterrânea com quem passei a conviver apenas depois de passar a morar na residência dos universitários que não tinham teto em Natal e que foi, tão simbólica quanto aquele prato de metal, uma espécie de liderança informal no grupo todo. Ninguém melhor para nos trazer de volta a imagem do bandejão, com a legenda marota: "quem usou não esquece". O pior, Guia, é que muita gente que usou esquece sim. Eu mesmo não lembrava. Mas, ainda que não lembrando, sei que guardo dentro de mim o que posso chamar de "espírito do bandejão" - um certo senso de solidariedade misturado com humildade que me lembra o tempo todo, mesmo que nem sempre eu perceba claramente, a importância de caminhar junto com meus semelhantes na busca de vitórias que somente a carência anterior a ela é capaz de nos fazer perseguir. Mas é verdade, muita gente nem isso guardou: mudou de vida, como é natural, mas mudou também de pensamento, mal embalados pelos novos e falsos consensos que surgem em torno de competitividade, distinção e aparência. Para esses, é preciso exibir o bandejão o tempo todo, dar verdadeiras bandejadas em suas cabeças, na tentativa de acordar o melhor que tinham em si e de que também se esqueceram, junto com o instrumento onde anos atrás sequer tinham o direito de escolher o feijão a ser despejado no compartimento apropriado - era um funcionário do restaurante coletivo quem fazia isso, automaticamente e impessoalmente como tantas vezes é necessário, sem prejuízo para os traços individuais que todos e cada um também trazem em si. Por tudo isso, viva o bandejão!

Música ao longe


Brejeiro é o adjetivo que remete ao habitante das regiões chamadas de brejos, latitudes aquosas em meio a geografias habitualmente secas. A Paraíba tem um famoso brejo com o qual me familiarizei desde criança, não por conhecê-lo mas pelas quase diárias referências que meu pai, vendedor de mangaio por profissão, fazia a tal lugar. O brejo paraibano é uma região úmida e fria instalada nos costados altos de um estado que, de fato e simbolicamente, para todos evoca a imagem de um Nordeste árido. Mas o adjetivo brejeiro - que meu pai usava e abusava quando queria descrever certo tipo de pessoa pelo comportamento particular que apresentava, alguma coisa entre o sinuoso e o desconfiado (mas isso eu vim a entender melhor bem mais tarde, como explico ao final*) - ganhou outra conotação. Especialmente quanto aplicado à condição feminina, essa tal brejeirice tem a ver com um muito especial tipo de beleza regionalizada, quase uma etnia estética à parte, apegada às morenices de algumas regiões brasileiras, palavra que emula cheiros doces, peles retocadas pelo sol, e uma sensualidade imanente que surge pespegada a essa brasileira mesmo quando ela se ocupa das mais comezinhas tarefas do dia-a-dia. Pense na matas da Costa do Cacau baiana ou numa pequena enseada em Touros, no litoral potiguar, e você começará as ser tomado por essa atmosfera.

A brejeira é como a cabocla do romance que virou novela mais de uma vez. É como a Gabriela cravo e canela da mãe Bahia. É prima da guria dos gaúchos, numa linhagem que vai se ramificando pelo vasto país. Mas essa evocação sobre brejos primordiais como os romances de Jorge Amado está aqui a propósito não exatamente de uma especulação sobre a beleza física das brasileiras mais enraizadas e sim por causa de um outro elemento fortemente fincado nos solos que divididos da Amazônia aos pampas: a música. Dois discos lançados ainda recentemente trazem a música daquele que é pra mim o mais brejeiro dos artesãos instrumentais do Brasil. E aqui o adjetivo brejeiro precisa estar bem situado para não incorrer em significados menos exatos: é algo acima do tão esforçado e sempre tão menosprezado "cantor da terra" mas um tom abaixo de certa musicalidade hermética que se fecha na técnica e se reprime de emoções. Sem mais partituras vãs, aqui se fala de Dori Caymmi, arranjador de sucesso e cantor de extensão própria e timbre telúrico - e sim, eu sei, a conversa parece se referir mais ao outro Caymmi, seu pai. Todo poder a Dorival pai, mas é que o som de Dori filho me fala mais diretamente às células auditivas, talvez pelo fato de estar mais próximo da minha geração. Ou, dito de outro jeito: me fala de forma diferente e independente do classicismo paterno. Não gosto dessas coletâneas que juntam num mesmo disco os "sucessos" de um determinado artista, mas aqui e ali, por uma questão meramente prática, adquiro uma. E o assunto aqui é precisamente este "Dori Caymmi - O Cantador", que tem o benefício de trazer em 14 faixas "o melhor" do músico, alguma coisa difícil de conseguir de outra maneira, visto que a discografia deste filho de Dorival não é nada fácil de encontrar nas lojas, ainda mais agora nesta era de muitos downloads e poucos produtos físicos à venda. Em Natal, na mais recente temporada de férias, achei num sebo do Beco da Lama um LP de Dorival, original, que comprei com a avidez de quem adquire um stradivarius com número de série. Na casa de Titina e César, botei o bicho pra tocar e quase caio da banqueta em que estava sentado quando ouvi os primeiros versos de "Desafio" ("Éramos eu e um cavalo / No seu galope macio / Pulando cerca de arame, pisando morro de pedra, andando em leito de rio"). Na viagem para Brasília, de carro, não sei como, o disco sumiu. Pra minha sorte, foi lançada essa coletânea que contém, além da canção que até hoje me lembra a adaptação para a televisão do meu romance preferido de Jorge Amado ("Terras do sem fim"), outra brejeirices clássicas e de composição absolutamente perfeita, como "Na ribeira desse rio" e a não menos impressionante "Desenredo", com aquela sua perolada tristeza lusitana a reunir todas as dores do mundo no silêncio das Geraes ("Ê, Minas, ê, Minas / É hora de partir, eu vou / Vou me embora pra bem longe"). 


É como se eu tivesse recuperado o disco original perdido na viagem - mas na verdade eu bem que gostaria de esbarrar nele qualquer dia entre os cacarecos de casa. Só que minha sorte não havia acabado, ou, posso dizer, nossa sorte, caso o leitor se interesse por esse cancioneiro tão sensível e sofisticado em sua aparente simplicidade e saia também em busca de tais discos. Digo tais discos porque o segundo lance de sorte foi o lançamento deste outro "Caymmi", disco que Dori fez com os irmãos Nana e Danilo para lembrar o pai, dando prioridade a canções menos conhecidas. O danado mesmo é chamar de "menos conhecida" qualquer canção de Dorival, dono de tal brejeirice nas veias que qualquer coisa que compunha já saía do violão com cara não diria nem de clássico, mas de algo muito mais ligado à terra que nos habita tanto quanto a habitamos: fosse ela qual fosse, já era uma música com cara de "domínio público" - aqueles coisas tão retocadas em sua exatidão simplificada que à primeira audição soa como cantigas que, transmitidas de geração a geração, têm autoria tão remota quando difícil de descobrir. É uma música de vem dos céus e parece cruzar o corpo, as mãos e o violão de Dorival como um raio benfazejo, diluindo-se numa músicalidade chuvosa que nos molha a todos, brasileiros cientes das nossas mais atávicas origens (basta ouvir a buliçosa "Balaio grande", no pot-pourri de abertura). Não é mesmo por acaso que seu filho Dori, cujos discos infelizmente não se encontram assim-assim nas prateleiras das lojas de CDs que restaram, é pra mim esse mais brejeiro dos músicos da Terra de Santa Cruz.  

*Há estudos antropológicos que explicam a desconfiança mútua entre "brejeiros" e "sertanejos" no cenário paraibano - e este é também um tema predominante no clássico romance "A bagaceira", de José Américo de Almeida". 

quarta-feira, 4 de setembro de 2013

Nas redes da burocracia



A burocracia da Justiça Eleitoral tem sido o maior cabo eleitoral de Marina Silva. Se depender de seus carimbos viciados na velha política, cedo ou tarde todos vamos cair de simpatias pela candidata ex-petista, verde-alternativa e evagélico-sem-ranço. Explico: tenho mais de uma ressalva à maneira como Marina se comporta politicamente desde que deixou o PT à sombra de um explícito ressentimento causado pela opção do partido em priorizar um projeto de distribuição de renda associado ao crescimento econômico do país. Considero a crítica pura de Marina relevante - e estou ciente de que tais ressalvas não partem apenas dela, mas também de figuras como Leonardo Boff, dono das melhores referências quando se trata de analisar a realidade do país e de toda gente. Discordo dos métodos; da defecção e da denúncia que a mim soa fácil; do oposicionismo conveniente. Considero que, dentro do PT - e relevado o inconformismo pessoal decorrente de uma já distante disputa entre ministros de Lula, com ela de um lado e Dilma Houssef de outro - Marina teria mais a acrescentar, legitimidade maior para travar a luta interna tão necessária a que um partido outrora pequeno se mantenha fiel à sua essência uma vez alcançado o poder. 

Esse preâmbulo todo é necessário para situar o real adversário da hora, seja de Marina, do PT, da continuidade desse projeto de país (contestações e avaliações à parte), até mesmo dos outros concorrentes como Aécio e Eduardo Campos: quem está do outro lado do balcão, porque se trata de um balcão tanto literal quanto metafórico, é a Justiça Eleitoral. Numa sentença: os obstáculos burocráticos que a Justiça Eleitoral tem criado para a criação do partido de Marina são ilegítimos diante da demanda social que existe, de fato, para a criação da legenda. Você pode, assim como eu, discordar dos gestos de Marina, torcer a cara para a candidatura dela, achar como muitos que o aspecto de chororô da candidata não é muito alvissareiro, que evidentemente o conteúdo "sonhático" de suas postulações encontra forte obstáculo na real política do país etc etc etc; mas você precisa concordar comigo - que não pretendo votar em Marina para presidente; mas tampouco me encontro em grau de empolgação diante de Dilma - quanto ao fato de que a Justiça Eleitoral está sendo mais rigorosa com ela do que a nova política no horizonte do país admite. Ou tanto quanto compraz, em derradeira instância, àquela mesma real política em processo de vencimento. 

Para algum lugar há de escorrer a energia cidadã que busca se expressar por meio do partido de Marina Silva. Não adianta o instrumento burocrático de uma conferência de assinaturas se interpor. Não lembro de ter visto - prazos e demais figuras à parte - tal rigor quando Kassab foi criar um PSD que, diante de qualquer olhar desprevenido, não encontra um mínimo de demanda social quando comparado à Rede da ex-senadora do Acre. Kassab e PSD fizeram tudo conforme manda o manual, mas que o deus da boa política nos livre de um partido que normativamente está em dia com a papelada mas socialmente se encontra distante da mais elementar noção de cidadania e representatividade.