domingo, 31 de março de 2013

CINE JOÃO BATISTA

Pra quem ficou na curiosidade depois de percorrer o post anterior, aqui vai uma mesa posta com filmes documentais feitos por João Batista de Andrade nos tempos da TV Cultura e do Globo Repórter pioneiro da Globo. Era um país emudecido abrindo brechas para se conhecer e se reconhecer na tela da sala de estar. Questões sociais que hoje, com tudo aberto, tudo declarado, tudo possível e tudo permitido, as leis de mercado nem sempre permitem que sejam expostas com o vigor daquela triste época. Coisas do tempo e das sociedades. Com vocês, João Batista: vejam comigo que eu também só conhecia esses títulos pelos nomes (a partir da leitura do livro-depoimento do cineasta, "Alguma solidão e muitas histórias", organizado por Maria do Rosário Caetano); é uma estreia atrasada mas viva. Vejam e passem para a frente: 

1.Wilsinho Galileia (sobre a construção narrativa de um bandido oficial)



2.Céu aberto: (a partir da agonia de um país acompanhando os boletins médicos sobre Tancredo Neves)


3.Migrantes: o título é auto-explicativo no Brasil dos anos 70


4. Greve! (primeira parte do doc sobre as greves no ABC paulista, primeiro movimento social de contestação a balançar as bases da dituradura no final na década de 70)

 

PECADOS DA SEMANA

  

Meu Domingo de Ramos foi uma bicicleta, pra me harmonizar cristianamente com os novos hábitos de consumo-esporte-deslocamento dos que estão muito além de Deus. Adquirida em supermercado a preço de ocasião que é pra não incorrer no pecado do farisaísmo professante.

Meu jejum de esmoler literário buscou o pão essencial da palavra no anti-santo Itamar Assunção, o músico-poeta que ganhou liturgia nova via o catecismo blues da não freira Zelia Duncan, no CD "Tudo Esclarecido". Do qual recomendo pelo menos a audição - de joelhos, por favor - de "Noite Torta". Coisa para contrastar com estes dias de paixão.

Meu lava-pés foi testar minhas crendices sociais assistindo ao mais recente filme de Cláudio Assis, uma absoluta antimissa marginal filmada em branco e preto com maestria comovente pelo Papa Walter Carvalho, interpretada e protagonizada pela figura natimorta de um poeta de rua do tipo que tanto denuncia os que estão à sua volta quanto lambe a suculenta pena que alimenta em relação à sua própria pessoa. Um Cristo de outra extração, feito pelo ator Irandir em transe glauberiano - uma estranheza que agora as leis de incentivo permitem sem que o realizador precise doar a sua vida pelo irmão, digo, pela arte. Se o público não vem atrás como apóstolo excitado deste evangelho ao avesso o problema é dele, dizem. 





Minha sexta-feira santa foi festiva se comparada àquela dos meus tempos de outrora. Nada de desligar a televisão, nada de música fúnebre no rádio, nada de casas não varridas, comidas não tocadas, banhos não tomados, nada de nada de nada de nada de antigamente - que, por sinal, parece que foi ontem. Agora tudo pode: graças a Deus, somos os novos deuses da liberdade individual. Claro que um bispo aqui outro acolá, às vezes onde menos se espera, onde menos cabe a presença de tais bispos, atrapalha um pouquinho: mas o que seria da vida sem um obstáculo pra gente remover? Então: minha sexta-feira não foi santa, foi comum. Melhor (digo, pior): foi bem pecadora. Repleta de sons, imagens, letras, notas (musicais), percepções, contemplações. Como a gente nunca se contenta, faltou nostalgia:  deu vontade ver a Paixão de Cristo na televisão em branco e preto. Mas nenhum canal exibiu.  Meu pecado supremo: ouvir Madeleine Perroux como quem prova uma hóstia ensanguentada no dia do sacrifício de Adonai. Madeleine é irresistível e Deus há de me perdoar. (Divida este pecado auditivo comigo dando um play num dos videos que acompanham esse não evangelho).





Meu sermão da montanha, o  pungente depoimento do quase padre de tão sofrido João Batista de Andrade, o cineasta que o Brasil parece ter esquecido lá nos anos 80. Sou seguidor de João desde que um dia, em 1984, entrei no Cine Veneza, em Recife, e esqueci quem era, quando era, onde era, o que era, ingressando sem lenço nem documento na história e nas histórias de "A Próxima Vítima", filme em que João Batista usa uma série de assassinatos de prostitutas no bairro do Braz, em São Paulo, para falar do que, diria ele, são questões sociais eternamente tratadas como se fossem problemas policiais. O filme mistura demandas sociais com telejornalismo viciado, uma pegada noir nunca oportunista com um ritmo de thriller que jamais perde a brasilidade. Vi e revi - e nunca mais vi outra vez porque é um desses títulos que não apareceu em DVD (desesperançado demais, só tem chance se virar cult). No filme, João insere todo o seu ideário falido, seu sofrimento professo diante dos obstáculos que a vida colocou na vida dele e do país dele - por acaso, o nosso; não olhe para o lado, leitor. O baque de 64 (golpe), a trava de 68(AI-5), o trauma de 75 (Vlado). E no livro, tudo isso está muito bem narrado, organizado, dissecado, estudado e só não posso dizer que está digerido, porque João Batista de Andrade (que também realizou o já clássico "O homem que vivou suco" e faria aqui em Brasília "O cego que gritava luz") tem o bom gosto de se declarar permanentemente em crise, sem nunca superar certas coisas. Um delas daria um filme que jamais foi feito - bem que ele tentou: "Vlado", a história do homem e do seu tempo. 




João foi amigo de Vladimir Herzog (outro Cristo, sacrificado na ceia dos nossos generais e civis de linha dura, como se vê na foto que abre o post) e integrou a equipe do telejornal revolucionário que o jornalista colocou  no ar pela TV Cultura de São Paulo. Alguém poderia retomar o projeto e filmar "Vlado": até mesmo alguém com um olhar tipo ano 2000, como Fernando Meirelles, que vem de outra tradição no cinema brasileiro. Outro dos novos realizadores poderia seguir a onda e tirar do papel o projeto "Os Demônios", outro filme que João Batista não conseguiu fazer, sobre um tema que palpita na ordem do dia: as limitações da lei de anistia expostas no roteiro feito com Lauro Cesar Muniz a partir da volta de um exilado ao país na brisa política de 1979. Filmes que não foram feitos, no livro de João Batista editado pela Imprensa Oficial de São Paulo e organizado por Maria do Rosário Caetano, ganham força muito maior do que tantos que já entraram e já saíram de cartaz sem deixar rastros. É preciso dar atenção a eles, esses outros sacrificados da semana das oferendas mais sofridas. 



Domingo de Páscoa, cá estou eu, esperando o suor da caminhada se evaporar do corpo pecador enquanto atualizo a sopa amarga que o jejum frequentemente me serve. Todos continuam sendo muito bem-vindos a tal banquete, meus irmãos em lástimas, glórias e registros docemente macerados.

quarta-feira, 20 de março de 2013

FEITO BONECAS RUSSAS


Livros que cabem dentro de livros, narrativas disfarçadas dentro de outras narrativas, metalinguagens enganosas como um filme de Alfred Hitchcock, surpresas formais à sua espera no último capítulo. Esses são um grande ponto em comum entre "Serena", de Ian McEwan, e "Relato de um certo Oriente", de Milton Hatoum, os dois livros que caíram como capas mágicas de letras, possibilidades, diálogos e ideias sobre a cabeça do Leitor Bagunçado aqui. Em ambos, tanto no caso do inglês quando no do amazônico brazuca, atravessamos com prazer umas tantas páginas para descobrir, no desfecho, que estamos lendo livros dentro de livros, narrativas disfarçadas dentro de outras narrativas, metalinguagens enganosas como, bem, vocês sabem.

No caso de McEwan, chega a parecer uma repetição: também no seu mais que conhecido "Reparação", singramos mares de culpa mal digerida e ressentimentos guardados nos bolsos dos personagens para apenas e somente ao final descobrir que o livro é, em si mesmo, um gigantesco e emocionado pedido de desculpas: a própria materialização deste reparo emocional que dá título ao romance. No filme feito a partir do livro essa resolução surge ainda mais afirmativa, forte, acachapante. Neste "Serena", cujo lançamento mundial se deu numa das festas literárias de Paraty, o batuta McEwan nos enrola da primeira até praticamente a última página - e o sabor dessa mistificação é a pimenta do livro, muito além da idéia de que se trata de uma brincadeira com o gênero do romance de espionagem, que é a forma como o título foi vendido no mercado editorial. Ao final da leitura, a gente percebe que esse papo de exercício de narrativa de guerra fria, essa emulação gaiata de John Le Carrè era mais uma piada de Ian McEwan pra despistar o leitor. Exatamente como Hitchcock fazia no lançamento dos seus filmes - ou ao menos do seu filme mais impactante (embora, certamente, não o melhor), o "Psicose" que está de volta à mesa dos assuntos (mas este é outro assunto, para um próximo livro das aventuras do Leitor Bagunçado).

O nosso Hatoum, naturalmente, ventila outras atmosferas nas suas histórias filtradas pelas memórias familiares de um clã libanês recontextualizando a vida na Amazônia brasileira. Sai Londres, entra Belém do Pará. "Relato de um certo Oriente" é um saboroso texto quase impressionista, que se lê como se estivesse fechando os olhos para entrar num sonho sonhado por outro alguém, uma dissertação onírica disfarçada de saga familiar. Não tem como não lembrar da Macondo de García Marquez lendo Milton Hatoum, mas não é bem disso que se trata. Onde o Nobel latino saturava páginas e páginas com pequenas e gigantescas lendas de aldeia, empanturrando nossos olhos de caminhos de contos, Hatoum investe muito mais no cheiro literário exalado pelos seus personagens. Dá-se muito pouco no seu "Relato", mas sente-se muito a cada vez que se vira uma página. Se o leitor de repente se ver envolvido por uma bruma de calor, umidade e cheiro de roupas velhas não será por acaso: é obra da escrita do autor.

A surpresa, que liga Hatoum a McEwan é o capítulo final. Uma surpresa previsível, se é que se pode dizer assim, já que a cada etapa do livro uma voz assume a narrativa, que vai passando como bastão de corrida em câmera lenta. Vamos montando o álbum de imagens desta família a partir dos indícios subjetivos que os vários narradores despejam nas páginas. Lá para a metade do livro começa a ficar clara uma estranheza: se temos vozes diferentes, como enquadrar o padrão do discurso, uniforme demais para abarcar a variedade de visões que a história oferece? Hatoum resolve bem, mas essa desconfiança mina um pouco da perplexidade que poderia despertar. Nada a lamentar muito:  aqui se trata de uma escultura sentimental construída com tal intimidade que as sombras da família que são o objeto do "Relato" encobrem qualquer artifício de abordagem literária.

Só não deixa de ser curiosa a equivalência metalinguística de dois livros tão distantes no tempo e no lugar e tão próximos na qualidade e no enlevo proporcionado.