quarta-feira, 30 de outubro de 2013

Nem ouro nem prata




Diante da ambição que é o fenômeno Serra Pelada, a gente que aprecia o cinema de Heitor Dhalia entra no cinema com uma expectativa no olhar e uma dúvida na cabeça: que filme veremos? Alguma coisa com a pronúncia visual que é tão própria do cineasta - ia dizer "cineasta pernambucano", mas a folha corrida que ele vem construindo não permite este tipo de classificação que a outros, sem demérito, constitui uma legitimidade - ou algo que, sendo mais ambicioso, poda aqui e ali sua verve tão particular?

Na primeira cena, "Serra Pelada", o filme, deixa o público cativo de Dhalia animado com a chance de a primeira opção vencer. O super-close de Juliano Cazarré sendo inquirido por um policial dá o tom de dramaticidade quase gráfica que é tão particular do cineasta de "O Cheiro do Ralo". Mas o filme prossegue e, depois de uma muito bem montada sequencia de abertura em que o próprio nome da produção serve de veículo para situar quem nasceu depois de 1990, vai-se o Heitor Dhalia do enxuto, milimétrico e sensível "À Deriva". Fica, na tela, um bom filme, sim - aquele tipo de filme que tem tudo pra cair nas graças do público brasileiro, ao remeter a um certo cinema brasileiro dos anos 70, quando o tema de preferência era o drama policial, o tratamento passava necessariamente por um molho de sensualidade morena e a linguagem atingia em cheio tanto a garotada zona sul quanto o ancião de subúrbio; e do interior do país quando lá chegavam as últimas e desgastadas cópias. Com os bônus que bons filmes têm obrigação de oferecer: neste caso, é bonito ver uma atriz televisiva como Sophie Charlotte se esforçando para ir além do padrão que o video oferece ao país, assim como é impressionante constatar como, em pouquíssimas cenas, o gênio habitual Wagner Moura é capaz de arrebatar a mais burocrática plateia.

No final das contas, "Serra Pelada" é como uma mistura, batida na medida para conscientizar e entreter, de duas referências recentes do cinema brasileiro - ambas, não por acaso, também fortemente calcadas naquilo que enchia salas nos anos 70: pense em "Cidade de Deus" misturado com o primeiro "Tropa de Elite". De ambos, "Serra Pelada" utiliza a abordagem semidocumental e uma coloração tecno-realista que o selo da produtora de Fernando Meirelles jamais deixa de exercitar. Imagine então aqueles dois filmes - embora o segundo não pertença à O2 - embebidos numa calda mínima de introspecção desenhada em imagens, que tem sido o forte de Heitor Dhalia, e você chegará bem perto. Fica claro que é muito elemento para um filme só: perde o Dhalia que fareja a intimidade (como vimos em "À Deriva"), que namora a excentricidade (como mostra "O Cheiro do Ralo") ou que investe no que as sombras têm de poesia (conforme o nem sempre lembrado "Nina"). 

Claro que o diretor tem todo o direito de frequentar outras praias com suas câmeras e sua forma de contar históricas e extrair emoção da arte cinematográfica. "Serra Pelada" segue tal caminho, jogando um especialista do minimalismo nos barrancos de um grande painel social de um dramático momento brasileiro. Mas quando o filme termina, fica a impressão de que ele é bom mesmo é na arte de lapidar pepitas raras, daquelas que passariam imperceptíveis nas mãos de garimpeiros de imagens menos atentos como esses que hoje, ontem, sempre, enchem os cinemas do país. Ou, o que é bem pior, fazem os tão mal afamados filmes nacionais.

domingo, 13 de outubro de 2013

Canção do absoluto



Na poça de chuva da noite anterior,
Cecília bate o pé em brincadeira ritmada:

-Tudo, nada, tudo, nada
 Tudo, nada, tudo, nada

Cecília, onde você aprendeu isso?
Na casa de Solange 
(nossa empregada)

2008*


A passagem de ano
foi tenebrosamente rara.
Choveram pedras goianas,
seixos de estrada velha
sobre os telhados na aguada.
Relâmpagos perfilizaram as serras
como refletores pré-programados
para um temporal espetáculo.
Por fim, qual champanhe final,
faltou luz - e a verdadeira
eletricidade se fez em
blecaute natural.
Receita para começar 
o ano
no mais fértil nada.

*Fazenda Manduzazan, Cidade de Goiás, feriadão de fim de ano. Se fosse na passagem de 2009 para 2010 seria absolutamente premonitório do ano difícil que tivemos. Mas 2009 foi beleza, a calmaria antes da tempestade que, felizmente, também ficou para trás.

Bioderrapadas

Acabei de ler o artigo semanal de Caetano Veloso no Globo e não entendi nada: quer dizer que biografia não autorizada de Sarney pode - mas de Gloria Perez não? Um é ser humano e pode sair machucado e o outro não? Isso parece fala do velho George Bush: quem não for meu amigo é o diabo e pode ser destruído sem mais nem menos. Não tenho tido muita paciência para essa discussão sobre biografias-liberdades-privacidades-direitos (porque quando a história explode demais na rede social causa uma sensação de mídia saturada que mela tudo), mas esse reducionismo não me parece digno do artista Caetano. Talvez tenha a ver com o empreendedor Caetano, que também existe - e tem todo o direito de existir, que fique claro - mas sem que uma coisa comprometa de tal maneira a outra. Ficou confuso? Vai lá no Globo virtual e lê o artigo: garanto que não vai ficar mais claro do que isso. Gostaria de saber a opinião sobre tudo isso de um cara como Tom Zé, o último tropicalista não pragmático, se é que ainda o é.

sexta-feira, 4 de outubro de 2013

Fala sério, Marina Silva

Acabo de conferir aqui num portal da rede (com r minúsculo) que é aquilo mesmo de que desconfiava no post anterior: Marina Silva deu uma entrevista hoje para dizer que dirá em outra entrevista amanhã se vai ou não disputar a Presidência da República. Jornalistas têm cometido muitas gafes, pra não dizer idiotices puras e simples, nos últimos meses, e estrelado involuntariamente o ranking do "pior das redes sociais", quase sempre merecidamente. Mas hoje, li agora há pouco num portal, depois de Marina dizer que que só vai decidir amanhã, uma jornalista não identificada soltou um sonoro "fala sério". Pois eu acho que essa jornalista externou, de supetão, quase sem querer de tão natural, o que vai pela mente de grande parte dos brasileiros diante do comunicado de Marina.

A imprensa brasileira, que de uns tempos pra cá pegou a feia mania de dizer que fala em nome do país (me exclua fora dessa, por favor) com suas manchetes tipo sermão de padre formado nos seminários do Instituto Millênio, bem que poderia dar destaque à expressão da jornalista. Não só dar destaque: aderir, tomar como sua esse sintomático "fala sério", estampá-lo em manchete e enfiar goela abaixo dos leitores e assinantes (por uma dessas cancelei dias atrás minha assinatura do Correio Braziliense, mas esse é outro papo). "Fala sério" é o mínimo que se pode dizer diante deste cozinha-galo de Marina, que, eu acho, está começando a brincar com aqueles quase 20% de votos que obteve há pouco menos de quatro anos.

Mas, por outro lado, estamos no terreno da política, onde até o mais sonhático dos militantes não tem como abrir mão de táticas: só posso acreditar que amanhã, sabadão, Marina Silva vai descer do salto com que seu círculo de assessores a calçou e anunciar, na antepenúltima hora, em lance sensacional e emocionante, já por si mesmo carregado de um arrebatamento que se traduz em votos e novas adesões que, sim, vai sair candidata pelo PPS, PTB, Solidariedade, Contrariedade, Pros ou Contras, não importa. O suspense, a demora, o bico-doce de quem se faz de difícil teria sido apenas para confeitar na medida certa o bolo do tão esperado anúncio - que, claro, já faria o efeito de angariar simpatias e votos. Meios alternativos de fazer o mesmo que a "velha" política que a candidata soberbamente diz que veio para eliminar. Tudo legítimo, se não contrariasse a construção do próprio discurso que ela mais e mais vezes faz questão de declamar. Se não for assim, a insondabilidade do pensamento e da estratégia política da candidata a coloca a distância suficiente de ser compreendida por qualquer eleitor, seja ou não seu simpatizante. E como se pode aderir a quem não se compreende?

Acho que a Justiça Eleitoral está errada em negar o registro do partido de Marina (enquanto as fraudes dos outros vão ficando pelo caminho); não voto em Marina, pelo menos a princípio; mas considero que o movimento à que ela se põe à frente existe de fato, socialmente falando, e por isso deve ter sua expressão partidária reconhecida (assinaturas à parte, o que é quase outra história e também diz muito sobre a candidata e seu séquito prematuro). Mas lamento que a ex-senadora do PT tenha enveredado por um caminho tão sinuosamente individualista em termos políticos que beira a autoproclamação absoluta, sem o lastro de um movimento organizado como ocorreu com o partido pela qual ela se notabilizou. Alfredo Sirkis que o diga (leiam os portais). Agora triste, decepcionante mesmo, foi ver uma figura como Domingos Dutra levado a trocar o PT pelo partido de Paulinho da Força em meio às aluviões desta confusão toda. Também vi hoje que o pedetista histórico Miro Teixeira - com quem não simpatizo nem antipatizo - resolveu entrar para o Pros (ele que é sempre tão contra), também ele à deriva depois da decisão da justiça eleitoral sobre a Rede - agora, sim, com maiúscula mas sem registro. 


Acho que Marina tem grande responsabilidade neste vespeiro de abelhas tontas a que assistimos. E prorrogar até o último minuto o seu anúncio não ajuda em nada a melhorar o estado das coisas. Não há nada de errado em que o que é alternativo seja também algo razoável - é da vida, essa evidência que dividimos todos e da qual a boa política é também uma extensão. Dito isso, ou tudo isso, só me resta repetir esse chavão batido que hoje uma jornalista anônima transformou de chofre numa reação tão autêntica quanto original diante da massadas de Marina Silva: fala sério, candidata!