terça-feira, 26 de novembro de 2013

Ê, Goyaz!



O cenário em volta é de filme de época, meio novela das seis meio conto de Tolstoi. Um ar metade Escrava Isaura, metade Crime e Castigo. Bruma, luar e silêncio. Continentais pedras no chão e uma torre gótica no alto. Luz amarela, que vem de postes fantasiados de lampião. É possível ouvir o canto mais pra melódico do que para rítmico dos saltos das sandálias das moças tocando o chão no que descem a ladeira. Onze da noite, os vultos – não fantasmagóricos, mas animados – começam a surgir e se solidificar em pequenos grupos na dança dessa descida. O destino é a Igreja do Rosário, que apesar do nome tipicamente colonial-brasileiro tem a aparência de uma Notre Dame tropicalizada tanto quanto possível no coração do Goyaz. E aqui se clarifica o completo da locação: estamos na Cidade de Goiás, ou Goiás Velho como eles não gostam de ser chamados – apesar do apelo poético deste outro nome; mas vai ver os habitantes já vivem saturados de poesia apenas pelo fato de residir nesta cidade mágica. Aqui, o acontecimento da noite é uma serenata.

Goyaz, a cidade, por estes dias e estas noites ganhou uma camada humana a mais entre seus becos e casario que parece desenhado a lápis de tão bonito – e no entanto se trata de um lugar habitado como qualquer outro, o que prova que a poesia não é nenhum delírio; embora felizmente o seja mas essa é outra questão. Os habitantes a mais de que se fala são os coralistas, palavra que nem sei se existe mas que aqui casa muito bem com a mais célebre figura da cidade, a poeta Cora Coralina – aquela que ensinou a sábia arte de viver enquanto entre nós esteve, ao misturar panelões de doces com o exercício da poesia, depois de retornar ao casarão onde nasceu uma vez tendo feito  crescer os filhos de outra etapa da vida que soube tão graciosamente encerrar para recomeçar à sua maneira. Os coralistas, pois então, casam com Cora e dão um retoque no fim de semana de uma Goyaz que realiza assim como um informal encontro de grupos corais.

Você está descendo malemolente a ladeira da Igreja do Rosário e é meio que elevado do chão pelo misterioso canto que vem não se sabe bem de onde. São os coralistas na igreja, cantando um repertório de clássica MPB radiofônica.  No dia seguinte, tarde-noite de sábado, eles estarão na praça, espantando com suas vozes o insuportável – e absolutamente alienígena – barulho repetitivo e poluído que vem de alto falantes cuspidores de funks feios, sujos, grosseiros e impacientes. Sim, Goyaz, apesar de a visão de 360 graus em torno sugerir tanta história e tamanha carga de sensibilidade urbana, também tem seus defeitos. Nada que um coral não possa interromper uma vez ou outra. 

Antes de retornar à serenata improvisada que saiu qual cortejo levando música às janelas da cidade, é preciso lembrar que Goyaz é aquele tipo de lugar onde tudo parece muito parado, nenhuma surpresa à vista além da placidez decorrente da contemplação de suas casas, museus e monumentos, inclusive os naturais, como a cadeia de montanhas da Serra Dourada que tudo cerca como se desejasse conter entre muros verdes essa poesia emanada no local.  Mas não é bem isso, como provam seus restaurantes mineiramente escondidos no meio do casario, sem maiores placas, apelos e gritos gráficos. É preciso andar em Goyaz, calmamente como um de seus doces velhinhos caipiras, para farejar seus perfumes bem guardados.

E é aí que a surpresa pode tocar no ombro: aguardando um pouco o apetite chegar para um jantar, sentamos num banquinho em frente ao terminal turístico quando um cartaz colado na fachada do cine-teatro ali em frente nos chama a atenção. Pessoas começam a chegar, recebem um folheto da recepcionista postada no local e entram para assistir a alguma coisa. A curiosidade nos moveu do banco e fomos lá: era uma apresentação de um grupo de dança de Goiânia, show gratuito, teatro lotado, um pequeno acontecimento artístico feito sem alarde, uma hora de sensibilidade pura que não precisa constar dos roteiros turísticos. Algo que é feito primeiramente para o morador da cidade de Goiás. Nós, visitantes, temos mais é que pedir licença se quisermos assistir também.

Um espetáculo sobre a trajetória do rock and roll em Goiânia – Yes, man – com uma dança contemporânea coalhada de efeitos cênicos e turbinada por sombras típicas da estética dos anos 80. Belo show, ainda mais porque em determinado número o som falhou – e a companhia de dança continuou como se nada tivesse acontecido. Profissionalismo anhanguera. Persistência bandeirante, índios escravizados à parte. Torrente de aplausos no final. Ainda com o som pifado, um número solo de uma bailarina que logo perde a condição solitária, uma vez que o público não demora a cantar para fazê-la continuar dançando a letra mais que conhecida da balada “Pais e Filhos”, clássico da Legião Urbana. Somente no próximo número o som retorna, encerrando uma noite de alguma transcendência, que é como se pode qualificar essas coisas que não estão previstas mas, uma vez acontecendo, derrubam muralhas da parte cronicamente apática do nosso ser.

Faltava conferir a serenata, esta sim prevista, de hora marcada, mas de detalhes incertos, como que para manter o espírito vivo da poesia que sai melhor quando se improvisa, livre de normas rituais. Aquelas sombras da noite que se solidificavam em grupos foram aumentando, enchendo o pátio da fachada da Igreja do Rosário. Uns violões, do tipo que não dava para saber mesmo quantos eram e onde estavam: bastava que fosse como eram, uma espécie de rede de notas sobre as quais aquelas dezenas de pessoas vindas de várias direções poderiam pular qual criança, usando a voz, a noite, a potência do luar e o cenário em volta como propulsores de uma emoção musical capaz de anular a gravidade da rotina.

A certa altura, qual procissão religiosa de que Goyaz é também notória – o cortejo dos encapuzados na Semana Santa é o marco número um do município – começamos a caminhada, calma, lenta, musicada por velhas canções de um Brasil quase tão antigo quando as paredes em volta. Sempre que se encontra uma janela aberta com um morador à espreita, dá-se o presente de incalculável valor que é parar e cantar só para ele – ou eles, caso frequente em que uma família aguardava o momento de ser  homenageada com tal exercício de doação.  Palmas, agradecimentos, e novamente o grupo se desloca, devagar, como que saboreando o gostinho de pisar em cada pedra, gravar em cada porta a nota de uma voz, o carimbo sertanejo de um canto.  Ê, Goyaz!

quinta-feira, 14 de novembro de 2013

Águas profundas


Em cinema, literatura, às vezes até na música - quando se trata de um tipo de canção de natureza mais narrativa - existe uma pré-condição, um condicionamento prévio sem o qual nada se sustenta. É bem conhecido e chama-se "suspensão da descrença". Graça a esse instrumento narrativo - espécie de pacto não formalizado entre o autor e seu público, seja qual for o meio empregado - acreditamos, ou fingimos acreditar sem prejuízo para os fatos narrados, nos maiores absurdos. O Superman com oito anos suspendendo um carro apenas com uma mão. Cientistas com jeitão de super-heróis construindo uma geringonça gigante capaz de evitar que um meteoro ainda mais hiperbólico destrua a Terra. Dona Flor tendo que dar conta do maridão certinho que acabou de chegar da farmácia e ao mesmo tempo do fantasma do finado marido anterior que se foi desta para melhor mas não esqueceu do prazer de certos momentos. João Grilo e Chicó enganando uma cidade inteira com as lorotas mais improváveis apenas para conseguir matar a fome de cada dia.

Como diz o nome daquele festival de filmes, é tudo verdade. A gente acredita em tudo: basta que o capítulo inicial do livro, ou as primeiras sequencias do filmes ativem aquela maquininha de condicionamento mental que a gente carrega na mente como se fora um projetor paralelo no escurinho das possibilidades - a tal "suspensão da descrença". Foi isso o que não aconteceu comigo durante a primeira meia hora deste celebrado "Capitão Phillips": o mecanismo da suspensão da descrença, habitualmente tão capaz de nos fazer passar por cima de impossibilidades reais para embarcar na oportunidade de acompanhar uma boa história travou legal, como diria um garoto, bem no início do filme, exatamente naquele ponto onde ele tinha, precisava funcionar.

Passei o resto do filme incomodado com um elemento narrativo que me pareceu improvável: como é que os americanos, esse povo tão fascinado pelo uso de armas de fogo, não carrega nem uma dessas espingardas de bala de borracha que a PM brazuca usa e abusa nos tais protestos de rua, ao realizar a travessia marítima por uma região tão perigosa? Eu, na minha sacrossanta ignorância - a quem não canso de prestar minhas homenagens, pois dela advém, além de certa humildade muito providencial, também o entusiasmo quando sou apresentado a alguma novidade - não sabia que a marinha mercante não usa armas de fogo. Tudo bem: não precisa ser um navio militarizado pela ótica do mundo pós-Bush-Iraque, mas nem uma armazinha assim pra efeito de qualquer coisa acontecer? Nem alguma coisinha simples, tipo o bacamarte do Urtigão? Tenho que pedir ao amigo Carlos de Souza pra perguntar ao pai dele, que passou a vida navegando na marinha mercante, se é assim mesmo.

Porque aqui não se trata apenas de um caso em que a suspensão da descrença não funcionou - para mim, só posso falar por mim, porque o que mais vejo, leio e ouço é o pessoal empolgado com o filme. Aqui o que temos é um troço mais maluco ainda: um caso de suspensão da descrença que não funciona num filme... inspirado em fatos reais, de amplo conhecimento público, com os protagonistas de fato dando milhares de entrevistas no embalo do lançamento do filme. Então, em princípio, eu não teria mesmo do que duvidar - o pessoal todo daquele barcão, tripulado por vinte homens bem alimentados ou parrudos de chope, que seja, não conseguiu mesmo dar conta de quatro magricelas famélicos e expoliados da mais clássica África envolva em guerras, tráfico e banditismo. E armas, nem pensar... Sabe qual é o problema? A danada da suspensão da descrença não quer saber se o filme vem de fatos reais ou não: ela precisa existir na condição de gatilho narrativo sem o qual a história não consegue ser disparada. A questão é menos o fundo verídico do fato do que a superfície narrativa sobre o qual ele é distribuído em forma de cenas, diálogos e situações. 

 
Talvez tenha faltado uma cena - uma daquelas cenas que os roteiristas detestam ter que escrever - com uma explicação minimamente didática sobre o fato de a marinha mercante não querer papo com armas, nem preventivamente. Tudo bem que a possibilidade de um tripulante dar cabo de um pirata usando uma arma ancestral - os próprios braços - ainda assim ficaria no ar, mas já seria um alento. A oposição entre o navio gigantesco e a canoa raquítica pode e é sim pungente do ponto de vista da mensagem visual, mas a construção do caso - precisamente a arquitetura da suspensão da descrença - precisa passar por águas bem mais profundas do que a rasa navegação entre as bacias das metáforas.