quinta-feira, 11 de dezembro de 2014

Woody vê o mundo



"Crimes e Pecados é um daqueles filmes que as pessoas veem a primeira vez e, como acontece com os contos de Tchekov, não captam logo tudo o que têm a oferecer. Eu sempre achei que é um filme que mostra como Woody Allen vê o mundo - um lugar onde pessoas como seus vizinhos realmente se envolvem com assassinatos e acabam se safando, e onde bobalhões terminam com belas namoradas."

David Gilmour, em O clube do filme, Intríseca.

Normas arcaicas



"Presenciei aquele universo. Meu avô era parecido. Não tinha o boi, o banguê, o cavalo. Era mais pobre. Agora, a moral dele era aquela. Aquilo é um patrimônio maléfico universal. A intolerância. A inibição do outro. O não reconhecimento da individualidade. Tenho capacidade de expressar isso em palavras. Seu Breves não tinha. Ao mesmo tempo era valor estratificado, era maneira de existir. Se não existissem esses valores no sertão, as pessoas sairiam se matando. Era uma forma deles de se organizar. Normas arcaicas, de colonizadores que vieram com o patrocínio da religião e da missão de quem chegou em um mundo maravilhoso como este. Consequentemente veio o empobrecimento."

José Dumont, em Do cordel às telas, depoimento a Klecius Henrique, Ed. Imprensa Oficial-SP

Palavras universais e sem sentido


"A sátira é uma espécie ameaçada no cinema norte-americano e, quando ocorre, é vaga e vulgar como nos filmes de Mel Brooks. Muito além do jardim, dirigido por Hal Ashby, é uma ave rara e sutil, que encontra seu tom e o mantém. Possui o atrativo de um jogo intelectual engenhoso, onde o herói sobrevive a uma série de desafios sem entende-los, usando palavras ao mesmo tempo universais e sem sentido."

Roger Ebert, em Grande Filmes, Ediouro.

domingo, 16 de novembro de 2014

Borges + Lhosa = Bolaño


Roberto Bolaño não me põe mais medo. A intimidação cult  que é a mera visão de um exemplar do seu mais que venerado 2666, o livro - e não o código secreto de alguma seita literária como alguém pode supor diante deste tijolo em forma de romance ou vice-versa - perdeu o sentido. E nem precisei sequer abrir a folha de rosto do dito e prolixo romance. Pra quem  não lembra, 2666, com suas temeráveis 1.008 páginas, foi elevado ao altar da grande literatura tão logo se deu a morte de seu autor, o referido Bolaño. As velas do morto ainda nem haviam esfriado de todo quando foi decretado que quem jamais o lera meio que também poderia se considerar um leitor, digamos, defunto. 

Foi um daqueles casos de ascensão fulminante ao panteão das entidades das letras - mais ou menos a mesma que se dá quando o Nobel de  literatura vai para um (até minutos antes) obscuro escritor belga, ou africano ou afro-americano cujo conhecimento público se limitava quando muito a um gueto universitário ou algo assim. O problema era encarar as horas de leituras exibidas pelo 2666 - que a muito custo a gente duvida que não se trate de um título autoexplicativo sobre o número de páginas em que se estende. O fato é que muita gente boa que se aventurou - incluindo os envergonhados pioneiros que muito rapidamente tinham que devorar o catatau e se mostrar atualizados com a nova seita - deu uma aliviada geral ao contar, diante de pasmos leitores escaldados, que, sim, é um grande livro.

Por favor me situe entre os escaldados e os preguiçosos. Não é que eu torça a cara para livro grosso. Moby Dick e Grande Sertão até hoje me absolvem nesse quesito, lembrando que a grossura é o que menos importante no velho Guimarães e que a baleia de Melville pode muito bem ser entendida com uma versão ampliada de O velho e o mar de Hemingway. No fundo o que incomodava mesmo era essa pressão para que de um dia para o outro a gente se tornasse especialista num autor que, absurdo dos absurdos, fora ignorado em vida para ser celebrado mal deixou esse mundo. E logo de cara com todo mundo jogando nas fuças da gente esse 2666 que parece mais  um tomo de enciclopédia perfeito para escorar portas que rangem. 

Mas está na hora de revelar como enfim me livrei desse medão sem sequer ter lido ao menos as orelhas de 2666. Simples: na base do acaso. Ganhei de Titina e Cezar, amantes declarados de tudo quanto venha da Latinoamerica, um outro livro do cara, As agruras do verdadeiro tira. Claro que, para manter a aura cult do Bolaño, tinha que ser um livro inacabado - na verdade os originais de um outro que poderia se tornar mais um infindável romance que a morte não permitiu ao escritor concluir. Descobri, lendo esse romance postumamente organizado por outrem, que Bolaño, não temam, é apenas, simplificando grosseiramente, um cruzamento de Jorge Luiz Borges com Mario Vargas Llosa. 

Mais precisamente o Borges de Ficções - um livro tão precioso na minha memória de leitor que, por mais que tenha vontade, evito encarar um releitura, como que pra não quebrar aquele encanto - com o Conversa na Catedral de Lhosa (que somente este ano, há poucos meses, encarei a frio). Foi notar esse cruzamento na história do professor universitário que vaga entre América Latina e Europa perseguido pelos próprios fantasmas relacionados ora à militância esquerdista ora a uma homossexualidade tardia que acordei para tais conexões. De Lhosa, ele pegou a história picotada como que em quadrados que se encaixam um capítulo aqui com outro bem mais adiante. De Borges, enxertos como aquelas maravilhosas listas de livros inexistentes e ainda aquela maneira de narrar usando formatos diversos, como capítulos surpreendentes mínimos ou resumos de obras literárias que também só existem no próprio livro. Tudo muito aberto, esparso, ventilado como se fosse um grande escrito cujas folhas saíram voando por aí e um leitor - você, que por ventura esteja com o livro nas mãos - organizou para compreender minimamente o mundo daquele professor e seu entorno. 

O prazer da leitura, que os primeiros desbravadoras pós-morte de Bolaño viram no 2666, está neste esgrimir de estratégias narrativas, neste organizar de estilos que embora aparentemente diversos guardam uma harmonia sugestiva como se vê no mais convencional romance linear. É verdade que você, leitor,  nem sempre estará à altura de decifrar, com seu repertório igualmente convencional, todas as referências que Bolaño espalha pelo livro - aliás, é bem possível que permaneça imune ao efeito da grande maioria delas. Mas, como numa letra de música de Luis Melodia, vai captar nem que seja pelo cheiro aquela matéria indistinta a que na falta de expressão melhor chamamos de "o espírito da coisa" - ou a coisa do espírito se melhor lhe aprouver. O fato é que, precedido pelo bem mais exato Ficções e pelo igualmente ambicioso Conversa na Catedral, a escrita de Bolaño não precisa mais intimidar ninguém.

segunda-feira, 29 de setembro de 2014

Coppola, o retorno

 
É muito apropriado que Tetro (DVD Versátil, 2009) seja a narração de um resgate, já que o próprio filme representa isso mesmo para quem o assiste: a volta de Francis Ford Coppola ao cinema, não por acaso com um drama em branco e preto que trata de um relacionamento entre irmãos. Qualquer lembrança de Rumble Fish (título original tão melhor que o quase slogan de rebeldia O selvagem da motocicleta) não terá sido ocasional, fica claro de cara. Tem o branco e preto, tem o tema do desencontro entre irmãos onde o mais novo se projeta nos mistérios do mais velho e tem, ainda, alusões visuais que também ligam os pontos, como a primeira imagem, um superclose do protagonista se deixando iluminar ao brilho de uma lâmpada incandescente onde um inseto agoniza fascinado por tanta luz. A cara do cinema de F.F. Coppola.

É a mesma luz que o cineasta projetou no Rumble Fish sobre o rosto de um novato e atônito Nicholas Cage - a não ser que eu tenha apenas imaginado uma cena que de fato não existe no filme, como já me aconteceu com outra de Deus e o diabo na terra do sol (alguém trocando a cruz por um facão nas mãos de Geraldo Del Rey, minifilme que me ficou na memória mas, descobri depois, é uma alegoria que o filme não traz, ao menos não literalmente assim).

Enfim, na subjetividade de imagens superpostas, sugeridas ou confundidas que o melhor cinema provoca e estimula, Tetro é este retorno, feliz retorno. Coppola, aqui neste registro de drama familiar plasmado por um certo tom de romance de formação, não é naturalmente - nem poderia, a esta altura dos fatos do mundo do cinema e do entretenimento - o gladiador em câmeras dos épicos do fracasso da fase Apocalypse Now




Também não poderia ser mais o muralista ambicioso - e felizmente delirante como o cinema nunca mais tem sido - de O fundo do coração. Temos, no retorno, um Coppola de meios tons onde não obstante a marca do autor consciente persiste, por exemplo, nas vinhetas que expressam o inconsciente dos personagens, construídas em quadros que, por deliciosamente artificiais (inclusive com uso correto dos recursos da informática), lembram claramente os mares de papel com que ele ilustrou esse segundo filme aqui citado. 



O interessante é ver como, mesmo trabalhando em escala menor do que aquele que o fez um grande cineasta - embora, lembre-se, o grandioso naqueles filmes tantas vezes servisse para destacar o dilema íntimo, a delicadeza contida nos painéis - Coppola retorna com um filme multimídia. Nunca deixa de ser ele mesmo, com baixo ou nenhum orçamento: Tetro mixa, com estilo do vinicultor apurado que o cineasta também é, cinema, música e dança - e com enxertos de teatro. Parece que a última vez que se viu isso dessa forma mínima e ao mesmo tempo tão envolvente foi naqueles velhos filmes oitocentista de Carlos Saura - e esqueça a fase dos musicais arrasa-quarteirão do cinema convencional americano que este é outro capítulo. 

Enfim, com Tetro, volta Coppola, e com Coppola, volta certo  cinema dos anos 80 que tanta falta faz hoje em dia, sem desprezar o que foi feito de lá pra cá. Mas, super-heróis subtraídos (e gosto de alguns, sempre faço questão de lembrar), onde você poderia ver um autêntico drama familiar rodado numa Buenos Aires com a tepidez de La Boca e adjacências, com atores como Vincent Gallo (que você viu onde mesmo? No a esta altura já clássico A casa dos espíritos, como o odioso filho bastardo que adere à ditadura).




Ou  Carmem Maura, a serelepe protagonista de Mulheres à beira de um ataque de nervos aqui quase irreconhecível - mas em desempenho absolutamente digno, atuando quase que sem que os pés toquem no chão - como a crítica literária singularmente conhecida como "Alone". Sem falar em Maribel Verdú, que lembrará vagamente um distante Sedução (Belle Epoque, 1992, dir. Fernando Trueba), caso você tenha passado ao largo de algo mais cru, como E sua mãe também, este mais recente. 

Definitivamente, não se faz mais este tipo de filme. Nem com esse elenco, tampouco com essa envergadura de vanguarda do passado, esse passado tão desprezado pela pressa das impacientes narrativas atuais.  

sábado, 27 de setembro de 2014

J.D.



Conhecido vulgarmente por ter se tornado o mais arredio dos escritores, eternamente metaforizado como uma Greta Garbo da literatura, o que também é outra vulgaridade - mas, enfim, esta parece ser a forma que o ser humano tem de encaixar em algo classificável e digerível tudo aquilo ou aquele que se torna além da compreensão imediata-, ele foi o pai de grandes figuras. Duas bastam para dar o tom geral dessa sublime e agoniada paternidade literária: Holden Caulfield e Seymour Glass. 

Todo mundo que aspira a se visto como cool, descolado e imune ao sistema gosta de mostrar que se referencia em Caulfield. No meu caso, embora também aprecie bastante que me considerem avançado, outsider e meio blasè diante das coisas do mundo, mundo, vasto mundo, preciso admitir que quase nenhum vínculo guardei com o anti-herói do romance de formação mais bacana já escrito, O apanhador no campo de centeio. Li duas vezes e pouco guardei. Em compensação, estabeleci uma ligação imediata com o segundo daqueles filhos, o mais querido dos suicidas - e devo dizer que não simpatizo muito com essa classe, preferindo os que não se dobram sobretudo ao desejo inconsciente de autodestruição - que é o maioral da família Glass: Seymour.

Se o amigo nunca chegou perto dos demais livros de J. D. Salinger - o tal pai aqui em questão - vai logo pensar que estou falando outra língua para além do português ou do inglês. E estou mesmo: parlo em salinguês, um idioma próprio cuja gramática só se encontra mesmo nos tais livros de contos onde os personagens são os integrantes da tal família Glass. Seymour é apenas o melhor entre eles - suicídio simbólico à parte (sim, porque "Ver mais vidro" - e quanto a essa citação você vai ter que ler os livros para decifrar, se achar que é preciso, ou então perguntar aos amigos Carlos de Souza e Jô Medeiros - de fato comete os dois tipo de auto-extermínio, o simbólico e o de fato que, sendo de fato, não o é de todo, pois que se trata de literatura, e fim de parênteses). 

Foi assistindo ao documentário Memórias de Salinger, um filme de Shane Salerno (Paris Filmes, 2013), que me dei conta de que J.D. foi um dos autores de quem mais me aproximei de ler a obra completa. Fui um garoto que amava a prosa barroco-popular de Jorge Amado, devorei vários Vargas Llhosa que agora ando retomando, tive minha fase Elias Canetti - que hoje acho de uma densidade quase impenetrável, quando atualmente prefiro certa leveza não obstante marcante - e passei por obrigatórios García Marquez e Manuel Scorza, sem deixar de virar fã de Umberto Eco. Mas, sem me dar conta, parece que foi do americano J.D., que não leio há século, quem mais me aproximei também em termos quantitativos. Descobri, enfim, vendo o filme - um primor de reconstituição de uma vida feita longe das câmeras e do público - que li quase tudo o que o cara esquisitão escreveu.

Por influência dos supracitados Carlos e Jô, desfaleci diante de Franny & Zooey, submergi com 9 Histórias acorrentado às mãos, e voltei à tona lendo Pra cima com a viga, moçada (ou Levantem bem alto a cumeira, conforme a tradução escolhida ou encontrada). O caráter algo zen, sensivelmente poético e absolutamente fora do senso comum que os membros da família Glass infundem nas nossas mentes de leitores enquanto apreciamos todos esse livros estrelados por eles têm a natureza das intocáveis substâncias de alta extração e extrema duração. 

Os Glass, Seymour à frente, são uma família completamente estranha aos dias atuais, um núcleo intelectualmente supradotado que nos faz ver de outra forma até as paredes do cômodo que por acaso sirva de cenário para tal leitura. E foi um deleite saber como tudo isso começou a partir do conto do "peixe-banana" e seu diálogo com a infância perdida em pessoa - embora seja também doloroso saber o custo que a construção dessa família da ficção teve para a família real do escritor enquanto tal processo se dava. Mas parece que a genialidade nunca foi cercada de conforto psicológico - e cada grande autor se vira como pode, e suas famílias suportam aquilo sabe-se lá como, quando suportam. 

Claro que se você tem apenas a curiosidade primordial de "ver" J.D. em imagens raras sairá satisfeito da sessão em DVD de Memórias de Salinger - afinal, mesmo quando recoloca o autor na moldura certa que ele nem sempre teve, um filme é um filme e não deixa de reforçar a mitificação que ele próprio parece se propor a relativizar. Só não deixe de procurar os livros - O apanhador, por  mais célebre e comentado, é facílimo de encontrar tanto em novas edições quanto em sebos; agora quanto aos da família Glass, prepare-se para uma aventura; o que não deixará de dar um gostinho a mais quando você finalmente deparar com um empoeirado exemplar de um deles. E certas leituras empoeiradas, hoje em dia, são um luxo que a banalidade nos concede. Não desperdice. 




quinta-feira, 14 de agosto de 2014

Luto, futebol e coragem


2014, que esperávamos fosse apenas o ano da Copa no Brasil, virou o ano da morte no país. De um momento para o outro, de meados do primeiro semestre até este impressionante início de segundo, parece que nos tornamos um território da mortandade. Abrigo das despedidas, hospedaria do fim. 

Neste pobre e espaçado blogue mesmo, dá pra notar: veja abaixo as três últimas postagens e constate. Uma sobre Rubem Alves, outra sobre Ariano Suassuna e agora esta, que você lê agora.

Não seria um eleitor de Eduardo Campos na disputa presidencial. Quem me conhece daqui e de outros espaços sabe que voto, mais do que em Dilma, no PT, por acreditar - insatisfações laterais à parte - no projeto do partido para melhorar as condições de vida no país. Mas obviamente a notícia da manhã de quarta-feira é pra mim tanto quanto pra tanta gente uma informação chocante o bastante para ficar como que parada no ar, um dado zanzando suspenso sobre nossas cabeças tão mais perplexas quando mais o tempo passa.

A morte súbita e pavorosa de Eduardo Campos, que acompanhamos neste ao mesmo tempo maldito e revelador tempo real em que se transformou nossa relação com notícias trágicas, tem a rarefação das realidades que a gente tem imensa dificuldade de consolidar totalmente no imaginário despedaçado. 

Leva tempo para que a percepção se reagrupe novamente e se consiga compor um quadro mental mínimo que forneça moldura ao acontecimento de maneira a torná-lo, se não aceitável, ao menos definido. Coerente, jamais. Compreensível, nunca - seria algo superior à nossa humilde condição.

Aqui não se trata de política, naturalmente. O que foi dito nos parágrafos acima se aplicaria perfeitamente a Dilma, Aécio, àquele pastor candidato ou qualquer outro que tivesse perdido a vida em situação similar. Claro que cada um é cada um e as individualidades descrevem arcos diferentes quando se analisa o desenho da vida, seja na política, nas artes, nas outras áreas de atuação humana. 

Claro que se tratando de Eduardo Campos há neste desenho um traço ascendente que o coloca, na circunstância de sua morte, em uma situação tal que o choque coletivo é absolutamente maior. E nisso, sem querer bancar o Nelson Rodrigues, também não há como não ver neste triste acontecimento um halo do dramaturgo brasileiro, esse homem que estudou a morte como ninguém usando o texto teatral como objeto de investigação. O que se quer dizer aqui é que a morte de Eduardo Campos, para além de tudo o que foi dito, não deixa de conter - e não me entendam  mal, vejam bem o que digo - algo de bonito, na medida em que  ele deixa a vida no instante em que mais a perseguia, a realizava.

Esta morte estúpida pegou Eduardo Campos vestido com as roupas da coragem, do entusiasmo, do ímpeto rumo a uma nova jornada tão mais elevada quanto mais envolvia não só à sua pessoa, mas a todo um conjunto de pessoas e uma segmento de um país que saiu à luta sem garantia alguma de que essa empreitada teria sucesso. Isso é muito bonito. Muito mais bonito do que quanto a morte colhe tantos de nós mal parados em vidas estagnadas, sem crenças políticas ou de qualquer outra natureza. Eduardo Campos era o que a gente pode definir como uma força viva, independente do que se possa dizer sobre seu ideário e sua prática política. 

Hoje, como que para reunir num mesmo feixe essas tantas conexões entre o assalto da morte que nos ataca e a coragem da vida que caracteriza um de seus escolhidos, ouvi por acaso Raimundo Fagner cantando a canção que está no video acima do YouTube: Quem me levará sou eu, por ironia composta por outra dessas folhas colhidas pela morte em passeio nos jardins brasileiros, nosso também inesquecível Dominguinhos (a terceira das perdas pernambucanas da temporada). 

A canção diz muito sobre o caminhar de uma pessoa e me leva a especular sobre a passagem de Eduardo, Dominguinhos, Suassuna deste para outro plano, acredite ou não o amigo nessa segunda esfera de uma suposta existência. Sou dos que acreditam que "Amigos a gente encontra, o mundo não é só aqui".

Dos que estão certos que de que "as coisas que eu tenho aqui, na certa terei por lá". O legado - essa palavra que tanto tem frequentado o nosso vocabulário neste ano de futebol e luto - tem a ver com as coisas que gente como Eduardo teve ou fez questão de cultivar: essa coragem de se mover, essa beleza de ser surpreendido pela morte quando mais dialogava com a vida.

quarta-feira, 23 de julho de 2014

Para sempre Suassuna

 
A série de mortes de escritores que nos assalta  acaba de me pregar uma peça: mal escrevi no post anterior sobre um certo caráter performático que não me agradava em Rubem Alves e a internet dá a notícia do passamento de Ariano Suassuna.

Ora, poderia existir escritor mais performático do que o velho pernambucano de roupas de mescla,  jeito de Urtigão e aquele carisma de avô entocado em sítios distantes?

E no entanto, se em Rubem Alves isso me incomodou, em Suassuna toda performance é uma festa só de identidade nordestina. Deve ser castigo do céu.

Mordi a língua, como diria minha mãe. Porque não dá pra tomar Suassuna apenas com base nos textos que a gente leu - e nem foram muitos, mas foram tudo.

Apenas dois: 1) o texto teatral que de tão perfeito parece ter sido ditado por alguma entidade ancestral que é O auto da compadecida e; 2)  aquele tijolo sagrado da alma de um país suspenso formado pelos estados de Pernambuco, Paraíba e Rio Grande do Norte que é A pedra do reino. E no entanto, por mais poderosa que seja essa obra, o criador conseguiu ir muito mais além do que escreveu.

Ele mesmo, sua figura, sua verve nas aulas que dava à guisa de espetáculos, as frases que acrescentou ao dicionário de citações nacionais (mesmo as reacionárias, porque mesmo seu reacionarismo antidigital tinha a graça à parte de não deixar a gente submergir de todo nas novas e avassaladoras convenções) resultavam num todo mais completo.

E o seu caráter performático - lembrai-vos do sono no chão dos aeroportos, que tem de natural o que também abarca de supraconvencional - é como um cordão a costurar tudo isso. Tanto quanto havia em Rubem Alves, ok.

Mas Suassuna estava mais próximo, era um galego nordestino, um gaiato de interior, um ignorante de cidade pequena. "Ignorante" aqui não no sentido de não saber das coisas e das letras, mas na palavra que se usa para apontar o tipo entre arrogante e piadista que é tão comum entre os velhos de PE, PB e RN.

Suassuna, enfim, é um mundo - vivo ou morto.

Natural que a gente o quisesse sempre vivo, qual um Matusalém do semi-árido.

Tratemos, portanto, de mantê-lo vivo; como tivemos a inteligência de fazer ao transpor suas criaturas para a tevê, o cinema, o teatro.

Vamos manter Ariano vivo nas conversas, nos causos de João Grilo, nas mentidas de Chicó.

Não vamos nunca deixar de falar de Suassuna, nem que seja para reclamar de sua aversão aos computadores.

Vamos manter Suassuna em evidência, sempre na moda.

Vamos erguer ao nosso santo literário particular os altares da permanência. Nem que seja blasfemando contra ele.

Nem que seja pichando nos muros de Recife a Natal um "Suassuna forever", slogan que ele jamais admitiria.

Só não vamos esquecê-lo, sob pena de esquecermos de nós mesmos.

Um epitáfio para Rubem Alves





Com algum atraso, aí vai a sugestão para os admiradores de Rubem Alves: o documentário feito com o capricho de sempre pela colega Dulce Queiroz para a TV Câmara e que você pode baixar pro seu computador.

Li apenas um livro de Rubem Alves (Ostra feliz não faz pérola) e não posso dizer que seja um fã incondicional. Apreciei boa parte do livro, sobretudo sua forma, em blocos de pequenos textos que abarcam, via fragmento, a totalidade da vida. Mas me incomodou um pouco certa postura antirreligiosa que faz com que a rejeição ao instituto da crença se sobreponha em muito ao sentimento isolado da fé.

É que acho que na soberba do mundo atual, a religião - seja ela qual for, desde que seja honesta - traz um pouco de humildade muito necessária a todos e a cada um de nós, humanos cada vez mais metidos a se sentirem deuses.

Diante do Rubem Alves de carne, osso e emoções que o doc nos traz, senti alguma coisa de performático no pensador que também não caiu muito bem. Ninguém é perfeito, diria Billie Wilder.

Mas é inegável que o documentário dirigido por Dulce é um epitáfio e tanto para o escritor, pensador e pedagogo dessa antididática que coloca em questão o ensino tradicional e, porque não dizer, o viver tradicional.

Destaque especial para as animações de Tiago Keise, um cara que um dia foi editor de imagens aqui na TV Câmara. Belo disfarce para tamanho talento em manipular a delicadeza dos desenhos.

Assistam, divirtam-se, ilustrem-se, discordem de mim, mas vejam esse belo adeus a Rubem Alves - feito, é preciso dizer, quando ele estava vivo, às voltas com os efeitos do Mal de Parkinson, a mesma doença que vitimou meu pai.

segunda-feira, 21 de julho de 2014

A liberdade do cinema



Viva a Liberdade, o filme, chega a ser brilhante no prodígio da situação que constrói e nos resultados que tira dela. 

Na tela, um líder político correto e ponderado que não empolga é substituído em momento de crise pelo irmão gêmeo tão provocador quanto irresponsável - e divertido, é lógico.

Pena que os resultados, na tela – na vida? – não ultrapassem a barreira da verbalidade.

O filme é por isso mesmo um  manual de novas citações para a velha crise política de meio mundo: “O medo é a música da democracia”, a mais impactante, é apenas um dos acordes dessa trilha sonora.

A tela reluz em momentos assim, quando o tresloucado irmão gêmeo em pane psiquiátrica “do bem” formula com simplicidade nem um pouco política o impronunciável. Direto ao ponto, pois que sem amarra alguma – leia-se, consequências complicadas de serem resolvidas fora de um filme. Para isso serve o cinema, a literatura e outros irmãos da mesma família.

Mas como assistir a isso sem lembrar o comediante que virou azarão na última grande eleição italiana – ou será espanhola, que o borrão dos impasses políticos e econômicos da zona do euro amarrota tudo como se fora um papel amassado?  

Como não lembrar de uma outra figura do mundo real – Dario Fo, que em esquete semelhante escapou da dramaturgia e foi parar nos ringues da política italiana?

Não tem também como não pensar numa outra líder, de um país distante, em momento de ataques de popularidade: e se uma gêmea da Dilma, mais serelepe e sorridente, fosse posta para representá-la em campanha, enquanto a autêntica toma uns sais num spa recomendado por Michel Temer?

Hum, não... pensando bem, se há algo que a Dilma de verdade já contém é essa falta de freios em, aqui e ali (poderia ser mais frequente, não?), disparar aquela frase entre mal educada e certeira, desconcertando a hipocrisia que a cerca.

Lembro apenas de uma: “Sou uma mulher cercada de cavalheiros”, cujas palavras exatas obviamente não são essas que empreguei mas cujo sentido caminha na mesma direção. Para exatidões, basta um clique no Google.

O filme, portanto, no Brasil ou na Itália, não é apenas um filme. Mas tem a seu favor as facilidades da criação.

Pior para os europeus, que nem com uma fictícia figura dessas – o irmão gêmeo idêntico na forma e surreal na performance – podem contar.

Também é uma pena que, brilhantismo verbal à parte, da metade para o final a parábola cinematográfica não se sustente tanto. Repare mesmo como o impacto vai embora justo na cena que deveria ser seu auge: aquele discurso que, se por descuido fosse parar numa fita americana, já estaria sendo chamada de “cena do Oscar” – e com razão.

Mas o que já se viu já valeu, tamanho o poder da provocação política que este Viva a liberdade constrói.

(E atenção para o diálogo que o desembestado falso líder tem com um apressado jornalista. Serve para bem além das folhas e dos telejornais italianos.)

quinta-feira, 3 de julho de 2014

Copa, cozinha e porão



 Um clima que vai de tenso a sombrio antecede o jogo da Seleção Brasileira desta sexta-feira. Na internet – este médico/monstro que parece nunca ser capaz de mostrar os extremos que é capaz de alcançar – um rastilho de pólvora parece chiar cuspindo fragilidades pra todo lado. Cobranças, ressentimentos, contabilidade de erros, levantamento de danos. Tem pra todos, Luiz Felipe, o jogador-capitão – que chorando daquela maneira de fato não sugere a estatura esperada da função –, o neofenômeno Neymar, a psicóloga, o assessor de imprensa, se brincar vai sobrar até pro motorista daquele ônibus lustroso que naturalmente atrai olhares por onde passa.

Parece que com o fracasso-do-fracasso do esperado “imagina na Copa” e com a política em banho Maria até a segunda quinzena de julho, a algaravia feroz que as redes sociais pescam e embalam pra revenda explodiu de vez na expectativa antecipadamente derrotada pelo jogo desta sexta. Enfim, motivos e fatos à parte, entregamo-nos todos à irracionalidade. E nela chafurdamos, lambuzados de desprezo pelo ídolo que mal acabamos de entronizar. Antes do início dos jogos e durante a primeira fase deles, permaneci alguns dias distante da internet e por instantes o mundo inteiro – incluindo o circo do campeonato de futebol – jamais me pareceu tão normal, tranquilo, dinâmico e ritmado na sua falta de aporrinhações fabricadas, que só podem tornar ainda mais insuportáveis aquelas que existem de fato. Bastou um clique, voltar à rede e descobrir que, enquanto eu vivia em paz, que nada – o mundo estava se acabando, e o Brasil em particular à beira da catástrofe.

Pronto: dois ou três sites foram suficientes para demolir uma pequena, insignificante, silenciosa e agora ridícula desconfiança que assaltava minha calma sem oferecer maiores riscos. Desconfiava singelamente que os garotos inexperientes desta geração verde-amarela profissionalizada à europeia teria nesta Copa o seu momento. Que via neles, independente desse negócio em que de fato o futebol se transformou – e esta é outra discussão – e em meio aos percalços – que, lembremos, são parte indispensável de qualquer percurso – um novo grupo de predestinados, exatamente como foi a Seleção de 94.

Amanhã, sexta-feira, aí pelas sete da noite, a julgar pela fúria opinativa e pela depressão bacaninha que marcam hoje (sempre?) a bagunça da internet, estarei desmentido e desmoralizado. Humilhado como um dia foi o técnico Dunga, figura que me veio à memória muito apropriadamente no meio dessa inútil preleção. Hoje, Luiz Felipe, Parreira & Cia estão provando do mesmo fel que foi derramado garganta abaixo do turrão da outra Copa. É triste notar que esse rancor embolorado de tão extemporâneo sobrevive impresso em bits nas nossas novas telas. E que a derrota anunciada de amanhã só irá reforça-lo. No esporte como na política, tem horas em que a bola e o voto são o que menos importa. Quem vender a melhor opinião – diria pior, pra ser mais fiel ao momento – é, se não o campeão do mundo, o vencedor mal coroado da discussão. E contra isso não há o que se fazer, a não ser votar com ponderação e não perder nos pênaltis.

terça-feira, 1 de julho de 2014

Parada para hidratação



Nem a insignificância das manifestações nem a alegria dos colombianos. Tampouco a placidez com que os turistas estrangeiros encaram aeroportos, transportes, impontualidade e outros fantasmas brasileiros. O que mais me chamou atenção na Copa das Copas foi mesmo a tal “parada para hidratação”. Com direito a tarjinha na tela da tevê como se fora uma nova norma do ludopédio globalizado. Eis uma novidade que ninguém previu, ocupados todos que estavam em rogar pragas contra si mesmo à base do hoje desmoralizado “imagina na Copa”.


A parada para hidratação chegou e parece que pra ficar. Não duvido que se transforme em um dos tão exigidos legados da Copa brazuca. Pense bem: e se esse recurso à boa convivência entre homens – atletas ou não – e condições climáticas fosse institucionalizado no dia-a-dia do país após o encerramento dos jogos? Meio surreal justamente porque novidade e meio interessante exatamente porque surpreendente (como não pensamos nisso antes?), a parada para hidratação bem que poderia ser introduzida no trabalho, nas escolas, no comércio, nos grandes e pequenos eventos da vida de todo dia, inclusive na programação da televisão quando os telejornais, em temporada pré-eleitoral, exagerarem nos ataques de entusiasmo antigoverno. Paradinha pra beber água sempre ajuda a recolocar cada coisa em seu lugar.


Por outro lado, pode dar problema. Imagine uma parada para hidratação bem no meio do debate eleitoral entre Dilma, Aécio, Eduardo e Randolphe  (é PSOL, mas bebe água também). Naquela hora em que a pergunta calculada faz o adversário secar a garganta repentinamente e o eleitor vê evaporar as chances de seu candidato. Ou então no meio daquela inesperada briga familiar do almoço de domingo, quando o congraçamento dá lugar às mesquinharias que toda grande família a merecer esse nome conserva embaixo da mesa. Pausa pra hidratação, cada um vai prum lado, rateio de quartos na casa velha dos avós ou bisavós e, ok, ânimos serenados, família que se hidrata unida permanece unida. Ou ainda – e aí é capaz de nem a hidratação resolver – no meio do capítulo da novela “Em família”, quando Luíza, Laerte e Helena estiverem fazendo as contas dos desajustes neurótico-sentimentais. Mas aí, convenhamos, não tem água que provoque qualquer fervura e faça do programa global uma sopa fumegante a hidratar os índices de audiência. Em certos casos, vê-se, parada para hidratação não tá com essa bola toda. 


*Mas que é uma excelente desculpa, isso é: este blog e suas filiais, por exemplo, andam fazendo umas paradas pra hidratação mais longas do que seria recomendável.  Talvez seja um prenúncio do fim – como o “imagina na Copa”, lembra? – ou por outra apenas isso; uma paradinha pra reabilitar as ideias.

terça-feira, 3 de junho de 2014

O ano da indecisão

Numa galáxia muito, muito distante, milênios e milênios depois, Hermenegildo recordou a grande marca do longínquo ano de 2014. O ano da grande dúvida. Do dilema, da indecisão. O país, uma terra que então se chamava Brasil, só tinha dois assuntos: Copa e protesto. E era um ou outro - não dava para ocupar dois lugares ao mesmo tempo no espaço, numa estranha reconstituição da lei da física aplicada à realidade de uma pátria e de um povo. Hermenegildo, o indeciso, sentiu durante dias e dias no cérebro as pontadas da mais pendular das dúvidas. Ir para a rua protestar, ou se acabar nos estádios a torcer? Júbilo padrão fifa ou revolta tipo black bloc? Copa ou protesto? Protesto ou Copa?

Hermenegildo pensou, pensou, pensou e, gol!, achou uma solução. Brilhante como uma partida decidida no quadragésimo quarto minuto do segundo tempo. Copa e protesto, sim, mas em dias alternados. Como não tinha pensado nisso antes? Copa e protesto, protesto e Copa, um num dia, outro no outro. Dia sim, Copa; dia não, protesto e assim por diante até junho se acabar - e com ele um dos mais dramáticos problemas que um ser humano de origem brasileira em 2014, chamado Hermenegildo, poderia enfrentar. Acabou, tudo resolvido.

E assim se faria: a partir do dia 12 de junho de 2014, Hermenegildo atirar-se-ia, com a força tensa das mesóclises, à sua manifesta persona cívico-cidadã. De corpo e alma, alma e corpo, seria protesto na terça, Copa na quarta, Brasil X Quem quer que fosse na quinta, protesto contra tudo o que estava ali na sexta. Copa, protesto, protesto, Copa - naturalmente que cada um com seu kit específico acomodado em duas mochilas facilmente identificáveis, verde-e-amarelo brazuca uma, preto-e-cinza de cobrir o rosto em outra. Copa hoje, protesto amanhã, verde-e-amarelo depois, preto-e-cinza semana que vem, amor à camisa na segunda, camisa cobrindo o rosto na terça. Só um detalhe botou tudo a perder naquele inesquecível junho de 2014: ok, copa num dia, protesto no outro, mas qual deles escolher para o primeiro dia, o 12 de junho, a abertura do período tão especial?

Hermenegildo pensou, pensou, pensou e não achou solução. Mesmo assim, desde então, sempre que acorda e abre a janela no Planeta XYZ, milênios depois, lembra com saudade daquele país, daquela Copa e daqueles protestos.

domingo, 27 de abril de 2014

O Barulho voltou!

Tantos anos depois, o barulho dos Clowns continua tinindo de bom. Está de volta - e vejam só, começando a temporada por Brasília, aqui no Teatro da Caixa do Setor Bancário - o a esta altura clássico "Muito Barulho por Quase Nada", a recriação da comédia de Shakespeare com elementos ainda mais mundanos do que aqueles que o bardo não tinha pudor algum de manusear. "Muito Barulho" foi durante certo tempo quase um cartão de visitas do grupo potiguar de teatro que infla nosso ego miserável e mesquinho toda vez que Marcos França, sua voz e estampa primeira, encerra cada apresentação proclamando, na razão inversa de nossa vergonha estadual de sermos quem de fato e apesar do que quer que seja, somos e seremos: "somos os Clowns de Shakespeare, de Natal, Rio Grande do Norte".

Como é bom ouvir novamente essa declaração de princípios que vem ao final de cada noite. Melhor ainda quando ela vem fechar uma das sessões da nova temporada de "Muito Barulho", durante a qual se constata, entre gargalhadas vocais e tantas outras mentais - essas quantas vezes tão mais poderosas do que aquelas - o quanto os nossos palhaços pop-profundos e filhos proclamados de Poti estão cada vez mais afinados. É claro que quem viu a primeira montagem de "Muito Barulho", em tempos heroicos da Casa da Ribeira lá na cidade-sede das nossas lamúrias conjugadas com o bairrismo envergonhado que a proclamação de Marcos França tritura no ar, vai lembrar dos ecos de João Júnior abrindo a cena com aquela cacofonia de tentar pronunciar o nome do autor e do grupo, tirando desde o início qualquer casca de falsa solenidade apenas por tratar-se do cara que, dizem, e não são poucos, e menos ainda desimportantes, construiu por sobre seus ombros a dramaturgia desde velho e alquebrado Ocidente paracristão. Mas, com o perdão das frases mal contidas e dos juízos aos borbotões, impõem-se no centro da sala como diria aquele outro responsável por invenções outras e de nós mais próximas, a constatação vibrante entre risos quase ininterruptos do quanto a turma dos nossos Clowns pegou, anos depois, tal texto à unha.

Dito diretamente, baby: eles estão mais afinados do que nunca - e só dá pena que o pessoal de Natal, seu público primeiro e fiel, formado tantas vezes por eles mesmos,  não esteja aqui em BSB Citi - que é como gosto de chamar essa cidade que quanto mais se quer cosmopolita se flagra rural, e isso é sempre muito bom - pra conferir e se estupefar com tal constatação junto comigo. Eles estão cortantes, afiados, velozes, instantâneos nas ações, reações, citações, diluições e consequências sobre consequências de cada frase, gesto, cena. O camarada Shakespeare tem, claro,  carradas de méritos ao fornecer ao grupo a palavra, mas não subestime nos Clowns de Poti a posse absoluta do controle do gesto. Porque sobressai aos olhos que em tantos momentos da nova montagem - decerto que na inicial também assim o fosse, mas é que a memória, essa danada, turva os contornos - o silêncio súbito, o engano gestual sozinho, a performance muda em solo seja igual ao verbo do clássico autor em efeito, ao sublinhar defeitos e feitos.

O elenco, por força do tempo, mudou, mas os substitutos de César e Titina estão ali à altura, com Margareth e Leonardo cerzindo na medida as costuras desse enredo de comédia de mal entendidos. Por mais que o gaguejar de João Júnior tenha se tornado um momento ímpar no teatro potiguar - tanto quanto João Marcelino abrindo "Quem Matou Paulinho?" cantando Summertime - é notável a qualidade da atualização do nosso Joel "Hamlet", com sua satírica presença. Marcos e Renata Kaiser, Benedito e Beatriz, naturalmente, dominam a maior parte do espetáculo - e a gente fica intrigado em não lembrar em como a interação deles eram tão excelente já na primeira montagem.

O tempo de convivência, os outros espetáculos, a travessia do "Ricardo III", a resistência dura e crua do "Hamlet", tudo isso deve ter contribuído para que hoje, numa nova montagem com esse gosto de clássico do clássico, todos eles mais Paulinha e Dudu estejam tão exatos na performance que não seria nada surpreendente que, numa noite dessas - e eles ainda têm um final de semana, o próximo,  apresentação aqui em Brasília; enquanto no meio da semana rodam meio mundo de Mato Grosso a sabe-se mais onde - o elenco deste novo e mesmo e muito melhor "Muito Barulho" perca por completo o fator da gravidade e saia voando em cena aberta, tal a fluidez da peça, a celeridade feliz da encenação, o verniz suado deste grupo que nos honra a auto-reputação. Eles são os Clowns de Shakespeare, de Natal, Rio Grande do Norte. E nós que lhe somos conterrâneos curvadinhos de vergonha - justificada ou não - estaremos sempre gratos por isso.

quarta-feira, 12 de fevereiro de 2014

Sorvete de agonia





Na praia do noticiário, o sabor do verão de um ano tão esperado

2004, o ano dos anos, da Copa das Copas, prometia muito pra começar tão mesquinho. Falta tudo neste mais que abreviado final de verão. Falta  água, e sem ela mais um par de andorinhas ao menos, sabe-se, verão algum se faz. Faltam médicos, como em qualquer estação de qualquer outro bem menos esperado ano. Situação que piora com o anúncio da criação, burocracia empresarial à parte, da mui prestimosa agência turística DEM Viagens, companhia que, embora tenha acabado de ser aberta por Ronald Caiado, ex-médico, ex-parlamentar e agora travel agence com muito orgulho, não para de embarcar centenas de médicos cubanos dissidentes das ditaduras dos grotões brazucas rumo aos bem mais agradáveis labores de Miami.

Também, com o pacote oferecido, não hay cubano que resista: a oferta cobre inscrição no Mais Médicos (com total serviço de despachante), traslado entre o posto de trabalho abandonado e o gabinete partidário mais conveniente, serviço de assessoria de imprensa, horário reservado no Jornal Nacional, assistência jurídica mais ou menos – a embaixada americana pode, no entender na DEM Viagens, ofuscar o espetáculo com suas facilidades jurídicas quando se trata de quem vira as costas aos irmãos Castro – e ainda, de quebra, meio como um plus, um emprego temporário aqui mesmo no Brasil só enquanto os detalhes administrativos são resolvidos. Coisa rápida. Dá pra dizer não, coração? 

Em compensação, o verão não está para peixe pros black blocs – o que, pra início de conversa, é muito natural se a gente lembrar que, de saída, aquelas roupas pretas e capotes não menos sombrios não combinam nem um pouco com o rigor do calor tropical. Cool é ser terror man contra o sistema em terras climaticamente ao menos temperadas, mas a rapaziada de burca voluntária sempre pode estourar umas bombas em favor da nossa mudança rumo ao hemisfério norte. Pode ser que, na tentativa, um cinegrafista incansável seja atingido por um rojão desorientado, mas o que seria isso diante da hecatombe política representada pela nossa transferência imediata, na base da birra infantil geológica, para a parte superior do globo terrestre?

Falando nisso, os Black blocs tanto fizeram que arranjaram um adversário superior ao tíbio governo em vigor ou a qualquer outro partido ou linha política possível: mexer com cinegrafistas e fotógrafos pode ser muito mais arriscado do que cutucar, por exemplo, a atávica vocação violenta da polícia nativa. As lentes da parte ora ferida de morte são muito mais audaciosas do que os vãos mas agora redivivos coquetéis molotov de antanho, dependendo apenas  da intensidade do embate. E, com a morte do cinegrafista Santiago, parece que quando ambos os grupos se encontram – o que, por dever de ofício dos cinegrafistas e fotógrafos; e por anseio de publicidade dos black blocs, é algo tão freqüente quanto natural – o clima pesa como um equipamento de transmissão ao vivo do tempo da tevê a válvula.

Tudo isso debaixo de um calor de 40 graus em certas praças cariocas, com uma sensação térmica de arroto solar, e imagine-se o que o futuro dirá desse verão de tão aguardado ano. Com o acréscimo da falta de chuvas que assombra dez entre dez reservatórios de água não do Nordeste acostumado a tais ausências, mas do interior paulista onde a palavra racionamento deixa de ser um vocábulo apropriado ao sotaque nordestino para ganhar a saxonicamente enrolada prosódia local. E nem dá pra fugir de tudo isso comprando um pacote da DEM Viagens, cujas promoções se limitam ao porte da nacionalidade cubana. Só chamando os black blocs para implodir o rio Amazonas, criando um afluente incidental que despeje, qual a interminável transposição do São Francisco, uns novos riachos entre Sorocaba e Presidente Prudente. Mas, ao contrário das empreiteiras, os black blocs nunca agem sob estímulo financeiro: o jeito é convencê-los de que uma multidão de índios ameaça fritar e comer Edward Snowden misturado com farinha feita de papéis altamente sigilosos às margens da ilha de Marajó. O efeito das bombas certamente se fará sentir na irrigação dos últimos vales de São Borja – e, sendo assim, todos darão adeus ao racionamento. Todos, menos os nordestinos, claro.