sexta-feira, 17 de janeiro de 2014

Dira from cinema





Enquanto estava todo mundo de olho na sereia, a quarentona chegou e nhac! Quando "Amores roubados" entrou no ar, foi Dira Paes - e não Ísis Valverde - quem entrou em órbita. Ascendente. O que é uma tremenda injustiça: não com a Valverde, mas com a Paes mesmo. O espanto e o encantamento da marmanjada com Dira Paes nos primeiros dias de exibição da série são tão naturais quanto sintomáticos: o brasileiro médio ou não vê mais filmes  - brasileiros, pelo menos - ou tem uma memória desse tamanhinho. Porque faz tempo que a Dira fogosa e exuberante  - espetacular, numa palavra - que estamos vendo na televisão faz moradia no cinema. 

Mas quem danado vai admitir que saiu de casa para assistir a "Ó, Paí, Ó", filme de Monique Gardenberg com total tempero baiano onde Dira faz e acontece como uma brasileira que se jacta de viver entre Salvador e Europa? Ali ela está jorgiamadiana como soa nos melhores momentos, uma nova Gabriela contemporânea, entre blocos afro e mocós do Pelourinho. Em "Celeste e Estrela", Dira é a personagem-título de um dos melhores - porque simples, cotidiano e pouco afetado - filmes feitos sobre a vida em Brasília. Aqui ela é uma maluquete que deseja ser atriz, cineasta, roteirista, ecologista e mais uma lista infindável de ocupações quanto mais cool melhor. Pior para o Estrela do título, um rapaz gordinho que ela docemente faz de refém de sua sedutora, embora fútil, pessoa. Na sessão das Diras mais tentadoras tem a bem resolvida personagem de "À beira do caminho", um cheiro vívido de mulher sempre presente na vida de um caminhoneiro destroçado pelo destino.



Existe também a Dira bem comportada, mas nos padrões Dira Paes, que se entenda bem. É assim numa pontinha que ela transforma em saborosa participação em "Meu tio matou um cara", de Jorge Furtado. E aquela mãe de família absolutamente goianizada de "Dois filhos de Francisco", de Breno Silveira? Agora, se o caso é radicalizar, então é preciso recorrer a outro cineasta que sempre conta nos seus filmes com uma Dira barra-pesada, de deixar essa dos "Amores roubados"  comendo poeira no estradão. É Cláudio Assis e quem, ao contrário dos jornalistas neófitos que redigem (!) os portais de notícias da internet, costuma ver filmes em escala vai saber os títulos de cor: "Amarelo manga", onde, salvo engano, ela faz uma evangélica às voltas com o diabo no corpo (e se não for isso, não será nada de menor voltagem, podem estar certos); e "Baixio das bestas", que não dá nem pra recomendar: ultrarrealista no retrato sombrio que faz do mesmo sertão de "Amores roubados", o filme maltrata demais a nossa nova garota brasileira - que, está provado, não precisa ser sempre de Ipanema, podendo muito bem ser amazônica, mineira ou nordestina. Dira, por sinal, veio do Pará. E desde sempre está muito além da Solineuza, personagem televisivo que é o máximo que a memória coletiva em tempos de rede social é capaz de alcançar  


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Acaba hoje, em (mais) tragédia ou (menos) compaixão a série "Amores roubados", que o roteirista George Moura adaptou da lenda urbana de Recife registrada originalmente por Carneiro Vilela e agora recriada esplendidamente em tratamento pop-grego-nordestino pelo estilo a esta altura já característico de José Luiz Villamarim. Quem viu fica com a impressão de que programas de TV como esses - e o "Canto da Sereia" do ano passado - trazem para a televisão brasileira atual respingos de marcos teatrais do Brasil do passado recente, como a "Gota d´água" que Chico e Ruy Guerra transpuseram das profundezas trágicas da Grécia clássica para a violência crônica já vigente nos morros cariocas dos anos 70. É uma enchente de dramaturgia cortante num veículo que, em programação aberta, naturalmente tende mais ao descartável indolor. 

Mas "Amores roubados" atualiza outros elementos. Temos aqui - embora o capítulo final possa nos contrariar - dois coronéis globalizados que, traídos pelas respectivas esposas, sinal dos tempos, não resolvem o problema descarregando as espingardas nas madames. A honra ainda é lavada com sangue, mas o sangue do pé de lã. Porque os neocoronéis das vinículas do sertão continuam brutos - embora muito mais bem vestidos - mas ainda amam. Ou, melhor dizendo, agora amam. A sensibilidade, o afeto, o apego à maneira deles se impõe como um elemento civilizador, agrega-se ao jantar bem posto, ao vinho bem escolhido, ao corte de cabelo estudado. Ou talvez não seja nada disso - apenas não fica bem para um pós-coronel que exporta de Juazeiro para as europas sair matando a mulher só porque ela deu uma pulada de muro tão comum de Berlim a Tóquio. A série, de qualquer maneira, registra uma mudança - e comprova que não está retratando o sertão modernizado apenas por incluir modelos de carros tão caros em cenas rodadas nas estradas mais arcaicas do interior do Nordeste. Reações, sentimentos e posturas também mudam, nos dizem os autores. 

Se o telespectador reparar bem, o verdadeiro vilão da série está bem disfarçado na sua condição de sedutor contumaz: é o próprio Leandro Dantas, exterminador sentimental que faz miséria nos corpos e corações femininos que encontra pela frente, pela simples satisfação de exercitar, para além do prazer das camas, o jogo da conquista. Ele mesmo define isso muito claramente numa cena, quando explica ao escada Fortunato que esse é o jogo: seduzir ou ser seduzido. Villamarim usou na série o xote "Romance da lua, lua", antigo e já clássico sucesso da vertente nordestina da MPB dos anos 80 cantado por Amelinha. Poderia, com o bom gosto que tem para sonorizar sua dramaturgia, ter usado um outro clássico, de Zé Ramalho, "Kamikaze", que bem define em ritmo, palavras e sugestões o Leandro Dantas de Kauã Raymond: "Um cavalheiro, nunca um cowboy / um verdadeiro kamikaze / um avião destruidor de lares / um passeio pelos ares / um megaton de poucas esperanças / bombas e lembranças / e quando eu de lá voltar / não sei se poderei ficar / ali onde deixei você / deixando tudo pra viver".





Entre nós, potiguares, há um motivo à parte para acompanhar a série e ele se chama César Ferrário, que a exemplo de Titina Medeiros em 2012 nos inflou mais uma vez o orgulho ao se apresentar como Bigode de Arame. Um capanga tão globalizado quanto seus chefes, que por fora se enfeita com capacetes militares e óculos sessentistas, numa composição neotropicalista que, embora vista sua figura com as batas rotas que a contracultura deixou nos brechós, por dentro é o mais legítimo guardião da trágica tradição: para Bigode, a solução é sempre matar. À sua maneira, César fez um Antônio das Mortes transposto para certa bossalidade dos dias atuais: um matador (de cangaceiros sexuais?) que tropeça na própria sombra, atrapalhado como um Didi Mocó sem noção da própria defasagem histórica, um espelho quebrado, colorido e reluzente do que um dia foram as sombras da violência atávica dos grandes sertões: o assassino de aluguel. E no meio de tudo isso ainda tivemos Dira Paes, mas ela merece um papo à parte. 

quinta-feira, 9 de janeiro de 2014

Devagar com 2014



Meu 2014 começou em 1958. Não voltei a uma era passada na esperança de fugir de um dos mais aguardados anos dos últimos tempos. Foi 1958 que veio até a minha pessoa, personificado com charme, beleza, dramaticidade, precisão e elegância na figura de um clássico absoluto. Para minha sorte - e de mais alguns felizardos de outras capitais brasileiras onde tal manifestação se repita, e tomara que sejam muitas - uma sala de cinema de Brasília está exibindo uma reprise (inclusive mui curiosa, mas isso explico mais tarde) do inigualável "Vertigo", o nosso "Um corpo que cai", suprassumo do suspense de bom gosto do velhote Alfredão. Já disse em outras redes e repito: não haveria melhor presente de aniversário antecipado que eu pudesse ganhar. Que Copa, que nada! Eleições?, bah! Não gosto de futebol, política às vezes pode dar coceira: o grande barato deste 2014 mal saído das fraldas pode acabar sendo este singelo marco inicial, de uma reprise no cinema, sala escura, tela grande, imersão total, de um Hitchcock da mais excelente extração. 

É claro que, como tanta gente, eu já cansei de ver e rever este filme em VHS, DVD e até nas finadas sessões clássicas das antigas noites de domingo da era da exclusividade da TV aberta. Mas ver "Um corpo que cai" no cinema, convenhamos, não é algo para qualquer dia. O máximo que lembro em termos de comparação ocorreu em 1984, quando quatro filmes do mestre do suspense - título pequeno, porque existe ali um mestra da beleza narrativa e pictórica que vai muito além dos sustos - voltaram a ser exibidos nos cinemas. Foi essa mostra por sinal que estabeleceu entre nosotros certo culto diante de "Janela indiscreta" (e "Psicose", informo só por curiosidade, não fazia parte deste pacote). Não vi nenhum na época e nem consigo recordar por quais motivos. Mais recentemente, acho que por ocasião do aniversário redondo de um desses grandes estúdios americanos, voltaram alguns filmes em reprise - lembro de "Bonnie and Clyde" que, acho, revi sim no prazer do cinema como ele deve ser. 

A reprise em cartaz em Brasília no Itaú CasaPark (sessões às 21h30, numa sala só) tem como curiosidade contrastante as legendas em português de Portugal: é motivo para um travo de riso no meio da dramática - mais do que suspense, vi-me tomado pelo drama ao assistir ao filme na tela grande - história. Você está prestando atenção na forma como Hitch consegue envolver a nós do lado de cá da tela ao mesmo tempo em que enrola seu protagonista (que "cai" também metaforicamente ao engolir uma história montada para sugerir ser o que não é) enquanto se molha numa chuva de próclises, ênclises e até mesóclises graças à tradução portuga. Pior mesmo é quando James Stewart obriga Kim Novak a experimentar um "fato" contra a própria vontade. Não sabe o que é um "fato", gajo? Direto pro google lusitado, então.

Mas isso são distrações: para além da fotografia que parece fazer de cada imagem que se vê na tela uma construção clássica impregnada no painel do nosso imaginário - Kim Novak diante da Golden Gate, o cabelo louro combinando com o vermelho da estrutura da ponte é um desses cartões postais cinematográficos de vida eterna - temos Hitch usando sua arma primordial: o poder da narrativa. Tudo em "Um corpo que cai" remete à vulnerabilidade distraída que o ser humano costuma apresentar diante de uma boa história. É um filme que, suspense à parte, mostra como é possível, usando apenas uma intrigante, sugestiva e marcante narrativa levar um nosso semelhante a fazer as maiores barbaridades - ou a cometer as mais vergonhosas mancadas. É disso que se trata: o poder de uma história, a capacidade de envolvimento de um determinado clima audiovisual, o alcance de uma composição feita com a junção convincente de várias peças soltas quando postas para funcionar em conjunto. 

E tudo isso captado, editado e formatado em 1958, com direito às ruas de São Francisco em textura de postal antigo, com seus carros, prédios, ladeiras em cores aquereladas. Por isso, amigos, recomendo, indico, apelo: deixem 2014 em paz por enquanto e sigam direto para 1958.