domingo, 27 de abril de 2014

O Barulho voltou!

Tantos anos depois, o barulho dos Clowns continua tinindo de bom. Está de volta - e vejam só, começando a temporada por Brasília, aqui no Teatro da Caixa do Setor Bancário - o a esta altura clássico "Muito Barulho por Quase Nada", a recriação da comédia de Shakespeare com elementos ainda mais mundanos do que aqueles que o bardo não tinha pudor algum de manusear. "Muito Barulho" foi durante certo tempo quase um cartão de visitas do grupo potiguar de teatro que infla nosso ego miserável e mesquinho toda vez que Marcos França, sua voz e estampa primeira, encerra cada apresentação proclamando, na razão inversa de nossa vergonha estadual de sermos quem de fato e apesar do que quer que seja, somos e seremos: "somos os Clowns de Shakespeare, de Natal, Rio Grande do Norte".

Como é bom ouvir novamente essa declaração de princípios que vem ao final de cada noite. Melhor ainda quando ela vem fechar uma das sessões da nova temporada de "Muito Barulho", durante a qual se constata, entre gargalhadas vocais e tantas outras mentais - essas quantas vezes tão mais poderosas do que aquelas - o quanto os nossos palhaços pop-profundos e filhos proclamados de Poti estão cada vez mais afinados. É claro que quem viu a primeira montagem de "Muito Barulho", em tempos heroicos da Casa da Ribeira lá na cidade-sede das nossas lamúrias conjugadas com o bairrismo envergonhado que a proclamação de Marcos França tritura no ar, vai lembrar dos ecos de João Júnior abrindo a cena com aquela cacofonia de tentar pronunciar o nome do autor e do grupo, tirando desde o início qualquer casca de falsa solenidade apenas por tratar-se do cara que, dizem, e não são poucos, e menos ainda desimportantes, construiu por sobre seus ombros a dramaturgia desde velho e alquebrado Ocidente paracristão. Mas, com o perdão das frases mal contidas e dos juízos aos borbotões, impõem-se no centro da sala como diria aquele outro responsável por invenções outras e de nós mais próximas, a constatação vibrante entre risos quase ininterruptos do quanto a turma dos nossos Clowns pegou, anos depois, tal texto à unha.

Dito diretamente, baby: eles estão mais afinados do que nunca - e só dá pena que o pessoal de Natal, seu público primeiro e fiel, formado tantas vezes por eles mesmos,  não esteja aqui em BSB Citi - que é como gosto de chamar essa cidade que quanto mais se quer cosmopolita se flagra rural, e isso é sempre muito bom - pra conferir e se estupefar com tal constatação junto comigo. Eles estão cortantes, afiados, velozes, instantâneos nas ações, reações, citações, diluições e consequências sobre consequências de cada frase, gesto, cena. O camarada Shakespeare tem, claro,  carradas de méritos ao fornecer ao grupo a palavra, mas não subestime nos Clowns de Poti a posse absoluta do controle do gesto. Porque sobressai aos olhos que em tantos momentos da nova montagem - decerto que na inicial também assim o fosse, mas é que a memória, essa danada, turva os contornos - o silêncio súbito, o engano gestual sozinho, a performance muda em solo seja igual ao verbo do clássico autor em efeito, ao sublinhar defeitos e feitos.

O elenco, por força do tempo, mudou, mas os substitutos de César e Titina estão ali à altura, com Margareth e Leonardo cerzindo na medida as costuras desse enredo de comédia de mal entendidos. Por mais que o gaguejar de João Júnior tenha se tornado um momento ímpar no teatro potiguar - tanto quanto João Marcelino abrindo "Quem Matou Paulinho?" cantando Summertime - é notável a qualidade da atualização do nosso Joel "Hamlet", com sua satírica presença. Marcos e Renata Kaiser, Benedito e Beatriz, naturalmente, dominam a maior parte do espetáculo - e a gente fica intrigado em não lembrar em como a interação deles eram tão excelente já na primeira montagem.

O tempo de convivência, os outros espetáculos, a travessia do "Ricardo III", a resistência dura e crua do "Hamlet", tudo isso deve ter contribuído para que hoje, numa nova montagem com esse gosto de clássico do clássico, todos eles mais Paulinha e Dudu estejam tão exatos na performance que não seria nada surpreendente que, numa noite dessas - e eles ainda têm um final de semana, o próximo,  apresentação aqui em Brasília; enquanto no meio da semana rodam meio mundo de Mato Grosso a sabe-se mais onde - o elenco deste novo e mesmo e muito melhor "Muito Barulho" perca por completo o fator da gravidade e saia voando em cena aberta, tal a fluidez da peça, a celeridade feliz da encenação, o verniz suado deste grupo que nos honra a auto-reputação. Eles são os Clowns de Shakespeare, de Natal, Rio Grande do Norte. E nós que lhe somos conterrâneos curvadinhos de vergonha - justificada ou não - estaremos sempre gratos por isso.