quinta-feira, 14 de agosto de 2014

Luto, futebol e coragem


2014, que esperávamos fosse apenas o ano da Copa no Brasil, virou o ano da morte no país. De um momento para o outro, de meados do primeiro semestre até este impressionante início de segundo, parece que nos tornamos um território da mortandade. Abrigo das despedidas, hospedaria do fim. 

Neste pobre e espaçado blogue mesmo, dá pra notar: veja abaixo as três últimas postagens e constate. Uma sobre Rubem Alves, outra sobre Ariano Suassuna e agora esta, que você lê agora.

Não seria um eleitor de Eduardo Campos na disputa presidencial. Quem me conhece daqui e de outros espaços sabe que voto, mais do que em Dilma, no PT, por acreditar - insatisfações laterais à parte - no projeto do partido para melhorar as condições de vida no país. Mas obviamente a notícia da manhã de quarta-feira é pra mim tanto quanto pra tanta gente uma informação chocante o bastante para ficar como que parada no ar, um dado zanzando suspenso sobre nossas cabeças tão mais perplexas quando mais o tempo passa.

A morte súbita e pavorosa de Eduardo Campos, que acompanhamos neste ao mesmo tempo maldito e revelador tempo real em que se transformou nossa relação com notícias trágicas, tem a rarefação das realidades que a gente tem imensa dificuldade de consolidar totalmente no imaginário despedaçado. 

Leva tempo para que a percepção se reagrupe novamente e se consiga compor um quadro mental mínimo que forneça moldura ao acontecimento de maneira a torná-lo, se não aceitável, ao menos definido. Coerente, jamais. Compreensível, nunca - seria algo superior à nossa humilde condição.

Aqui não se trata de política, naturalmente. O que foi dito nos parágrafos acima se aplicaria perfeitamente a Dilma, Aécio, àquele pastor candidato ou qualquer outro que tivesse perdido a vida em situação similar. Claro que cada um é cada um e as individualidades descrevem arcos diferentes quando se analisa o desenho da vida, seja na política, nas artes, nas outras áreas de atuação humana. 

Claro que se tratando de Eduardo Campos há neste desenho um traço ascendente que o coloca, na circunstância de sua morte, em uma situação tal que o choque coletivo é absolutamente maior. E nisso, sem querer bancar o Nelson Rodrigues, também não há como não ver neste triste acontecimento um halo do dramaturgo brasileiro, esse homem que estudou a morte como ninguém usando o texto teatral como objeto de investigação. O que se quer dizer aqui é que a morte de Eduardo Campos, para além de tudo o que foi dito, não deixa de conter - e não me entendam  mal, vejam bem o que digo - algo de bonito, na medida em que  ele deixa a vida no instante em que mais a perseguia, a realizava.

Esta morte estúpida pegou Eduardo Campos vestido com as roupas da coragem, do entusiasmo, do ímpeto rumo a uma nova jornada tão mais elevada quanto mais envolvia não só à sua pessoa, mas a todo um conjunto de pessoas e uma segmento de um país que saiu à luta sem garantia alguma de que essa empreitada teria sucesso. Isso é muito bonito. Muito mais bonito do que quanto a morte colhe tantos de nós mal parados em vidas estagnadas, sem crenças políticas ou de qualquer outra natureza. Eduardo Campos era o que a gente pode definir como uma força viva, independente do que se possa dizer sobre seu ideário e sua prática política. 

Hoje, como que para reunir num mesmo feixe essas tantas conexões entre o assalto da morte que nos ataca e a coragem da vida que caracteriza um de seus escolhidos, ouvi por acaso Raimundo Fagner cantando a canção que está no video acima do YouTube: Quem me levará sou eu, por ironia composta por outra dessas folhas colhidas pela morte em passeio nos jardins brasileiros, nosso também inesquecível Dominguinhos (a terceira das perdas pernambucanas da temporada). 

A canção diz muito sobre o caminhar de uma pessoa e me leva a especular sobre a passagem de Eduardo, Dominguinhos, Suassuna deste para outro plano, acredite ou não o amigo nessa segunda esfera de uma suposta existência. Sou dos que acreditam que "Amigos a gente encontra, o mundo não é só aqui".

Dos que estão certos que de que "as coisas que eu tenho aqui, na certa terei por lá". O legado - essa palavra que tanto tem frequentado o nosso vocabulário neste ano de futebol e luto - tem a ver com as coisas que gente como Eduardo teve ou fez questão de cultivar: essa coragem de se mover, essa beleza de ser surpreendido pela morte quando mais dialogava com a vida.