segunda-feira, 29 de setembro de 2014

Coppola, o retorno

 
É muito apropriado que Tetro (DVD Versátil, 2009) seja a narração de um resgate, já que o próprio filme representa isso mesmo para quem o assiste: a volta de Francis Ford Coppola ao cinema, não por acaso com um drama em branco e preto que trata de um relacionamento entre irmãos. Qualquer lembrança de Rumble Fish (título original tão melhor que o quase slogan de rebeldia O selvagem da motocicleta) não terá sido ocasional, fica claro de cara. Tem o branco e preto, tem o tema do desencontro entre irmãos onde o mais novo se projeta nos mistérios do mais velho e tem, ainda, alusões visuais que também ligam os pontos, como a primeira imagem, um superclose do protagonista se deixando iluminar ao brilho de uma lâmpada incandescente onde um inseto agoniza fascinado por tanta luz. A cara do cinema de F.F. Coppola.

É a mesma luz que o cineasta projetou no Rumble Fish sobre o rosto de um novato e atônito Nicholas Cage - a não ser que eu tenha apenas imaginado uma cena que de fato não existe no filme, como já me aconteceu com outra de Deus e o diabo na terra do sol (alguém trocando a cruz por um facão nas mãos de Geraldo Del Rey, minifilme que me ficou na memória mas, descobri depois, é uma alegoria que o filme não traz, ao menos não literalmente assim).

Enfim, na subjetividade de imagens superpostas, sugeridas ou confundidas que o melhor cinema provoca e estimula, Tetro é este retorno, feliz retorno. Coppola, aqui neste registro de drama familiar plasmado por um certo tom de romance de formação, não é naturalmente - nem poderia, a esta altura dos fatos do mundo do cinema e do entretenimento - o gladiador em câmeras dos épicos do fracasso da fase Apocalypse Now




Também não poderia ser mais o muralista ambicioso - e felizmente delirante como o cinema nunca mais tem sido - de O fundo do coração. Temos, no retorno, um Coppola de meios tons onde não obstante a marca do autor consciente persiste, por exemplo, nas vinhetas que expressam o inconsciente dos personagens, construídas em quadros que, por deliciosamente artificiais (inclusive com uso correto dos recursos da informática), lembram claramente os mares de papel com que ele ilustrou esse segundo filme aqui citado. 



O interessante é ver como, mesmo trabalhando em escala menor do que aquele que o fez um grande cineasta - embora, lembre-se, o grandioso naqueles filmes tantas vezes servisse para destacar o dilema íntimo, a delicadeza contida nos painéis - Coppola retorna com um filme multimídia. Nunca deixa de ser ele mesmo, com baixo ou nenhum orçamento: Tetro mixa, com estilo do vinicultor apurado que o cineasta também é, cinema, música e dança - e com enxertos de teatro. Parece que a última vez que se viu isso dessa forma mínima e ao mesmo tempo tão envolvente foi naqueles velhos filmes oitocentista de Carlos Saura - e esqueça a fase dos musicais arrasa-quarteirão do cinema convencional americano que este é outro capítulo. 

Enfim, com Tetro, volta Coppola, e com Coppola, volta certo  cinema dos anos 80 que tanta falta faz hoje em dia, sem desprezar o que foi feito de lá pra cá. Mas, super-heróis subtraídos (e gosto de alguns, sempre faço questão de lembrar), onde você poderia ver um autêntico drama familiar rodado numa Buenos Aires com a tepidez de La Boca e adjacências, com atores como Vincent Gallo (que você viu onde mesmo? No a esta altura já clássico A casa dos espíritos, como o odioso filho bastardo que adere à ditadura).




Ou  Carmem Maura, a serelepe protagonista de Mulheres à beira de um ataque de nervos aqui quase irreconhecível - mas em desempenho absolutamente digno, atuando quase que sem que os pés toquem no chão - como a crítica literária singularmente conhecida como "Alone". Sem falar em Maribel Verdú, que lembrará vagamente um distante Sedução (Belle Epoque, 1992, dir. Fernando Trueba), caso você tenha passado ao largo de algo mais cru, como E sua mãe também, este mais recente. 

Definitivamente, não se faz mais este tipo de filme. Nem com esse elenco, tampouco com essa envergadura de vanguarda do passado, esse passado tão desprezado pela pressa das impacientes narrativas atuais.  

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