quarta-feira, 12 de fevereiro de 2014

Sorvete de agonia





Na praia do noticiário, o sabor do verão de um ano tão esperado

2004, o ano dos anos, da Copa das Copas, prometia muito pra começar tão mesquinho. Falta tudo neste mais que abreviado final de verão. Falta  água, e sem ela mais um par de andorinhas ao menos, sabe-se, verão algum se faz. Faltam médicos, como em qualquer estação de qualquer outro bem menos esperado ano. Situação que piora com o anúncio da criação, burocracia empresarial à parte, da mui prestimosa agência turística DEM Viagens, companhia que, embora tenha acabado de ser aberta por Ronald Caiado, ex-médico, ex-parlamentar e agora travel agence com muito orgulho, não para de embarcar centenas de médicos cubanos dissidentes das ditaduras dos grotões brazucas rumo aos bem mais agradáveis labores de Miami.

Também, com o pacote oferecido, não hay cubano que resista: a oferta cobre inscrição no Mais Médicos (com total serviço de despachante), traslado entre o posto de trabalho abandonado e o gabinete partidário mais conveniente, serviço de assessoria de imprensa, horário reservado no Jornal Nacional, assistência jurídica mais ou menos – a embaixada americana pode, no entender na DEM Viagens, ofuscar o espetáculo com suas facilidades jurídicas quando se trata de quem vira as costas aos irmãos Castro – e ainda, de quebra, meio como um plus, um emprego temporário aqui mesmo no Brasil só enquanto os detalhes administrativos são resolvidos. Coisa rápida. Dá pra dizer não, coração? 

Em compensação, o verão não está para peixe pros black blocs – o que, pra início de conversa, é muito natural se a gente lembrar que, de saída, aquelas roupas pretas e capotes não menos sombrios não combinam nem um pouco com o rigor do calor tropical. Cool é ser terror man contra o sistema em terras climaticamente ao menos temperadas, mas a rapaziada de burca voluntária sempre pode estourar umas bombas em favor da nossa mudança rumo ao hemisfério norte. Pode ser que, na tentativa, um cinegrafista incansável seja atingido por um rojão desorientado, mas o que seria isso diante da hecatombe política representada pela nossa transferência imediata, na base da birra infantil geológica, para a parte superior do globo terrestre?

Falando nisso, os Black blocs tanto fizeram que arranjaram um adversário superior ao tíbio governo em vigor ou a qualquer outro partido ou linha política possível: mexer com cinegrafistas e fotógrafos pode ser muito mais arriscado do que cutucar, por exemplo, a atávica vocação violenta da polícia nativa. As lentes da parte ora ferida de morte são muito mais audaciosas do que os vãos mas agora redivivos coquetéis molotov de antanho, dependendo apenas  da intensidade do embate. E, com a morte do cinegrafista Santiago, parece que quando ambos os grupos se encontram – o que, por dever de ofício dos cinegrafistas e fotógrafos; e por anseio de publicidade dos black blocs, é algo tão freqüente quanto natural – o clima pesa como um equipamento de transmissão ao vivo do tempo da tevê a válvula.

Tudo isso debaixo de um calor de 40 graus em certas praças cariocas, com uma sensação térmica de arroto solar, e imagine-se o que o futuro dirá desse verão de tão aguardado ano. Com o acréscimo da falta de chuvas que assombra dez entre dez reservatórios de água não do Nordeste acostumado a tais ausências, mas do interior paulista onde a palavra racionamento deixa de ser um vocábulo apropriado ao sotaque nordestino para ganhar a saxonicamente enrolada prosódia local. E nem dá pra fugir de tudo isso comprando um pacote da DEM Viagens, cujas promoções se limitam ao porte da nacionalidade cubana. Só chamando os black blocs para implodir o rio Amazonas, criando um afluente incidental que despeje, qual a interminável transposição do São Francisco, uns novos riachos entre Sorocaba e Presidente Prudente. Mas, ao contrário das empreiteiras, os black blocs nunca agem sob estímulo financeiro: o jeito é convencê-los de que uma multidão de índios ameaça fritar e comer Edward Snowden misturado com farinha feita de papéis altamente sigilosos às margens da ilha de Marajó. O efeito das bombas certamente se fará sentir na irrigação dos últimos vales de São Borja – e, sendo assim, todos darão adeus ao racionamento. Todos, menos os nordestinos, claro.