domingo, 16 de novembro de 2014

Borges + Lhosa = Bolaño


Roberto Bolaño não me põe mais medo. A intimidação cult  que é a mera visão de um exemplar do seu mais que venerado 2666, o livro - e não o código secreto de alguma seita literária como alguém pode supor diante deste tijolo em forma de romance ou vice-versa - perdeu o sentido. E nem precisei sequer abrir a folha de rosto do dito e prolixo romance. Pra quem  não lembra, 2666, com suas temeráveis 1.008 páginas, foi elevado ao altar da grande literatura tão logo se deu a morte de seu autor, o referido Bolaño. As velas do morto ainda nem haviam esfriado de todo quando foi decretado que quem jamais o lera meio que também poderia se considerar um leitor, digamos, defunto. 

Foi um daqueles casos de ascensão fulminante ao panteão das entidades das letras - mais ou menos a mesma que se dá quando o Nobel de  literatura vai para um (até minutos antes) obscuro escritor belga, ou africano ou afro-americano cujo conhecimento público se limitava quando muito a um gueto universitário ou algo assim. O problema era encarar as horas de leituras exibidas pelo 2666 - que a muito custo a gente duvida que não se trate de um título autoexplicativo sobre o número de páginas em que se estende. O fato é que muita gente boa que se aventurou - incluindo os envergonhados pioneiros que muito rapidamente tinham que devorar o catatau e se mostrar atualizados com a nova seita - deu uma aliviada geral ao contar, diante de pasmos leitores escaldados, que, sim, é um grande livro.

Por favor me situe entre os escaldados e os preguiçosos. Não é que eu torça a cara para livro grosso. Moby Dick e Grande Sertão até hoje me absolvem nesse quesito, lembrando que a grossura é o que menos importante no velho Guimarães e que a baleia de Melville pode muito bem ser entendida com uma versão ampliada de O velho e o mar de Hemingway. No fundo o que incomodava mesmo era essa pressão para que de um dia para o outro a gente se tornasse especialista num autor que, absurdo dos absurdos, fora ignorado em vida para ser celebrado mal deixou esse mundo. E logo de cara com todo mundo jogando nas fuças da gente esse 2666 que parece mais  um tomo de enciclopédia perfeito para escorar portas que rangem. 

Mas está na hora de revelar como enfim me livrei desse medão sem sequer ter lido ao menos as orelhas de 2666. Simples: na base do acaso. Ganhei de Titina e Cezar, amantes declarados de tudo quanto venha da Latinoamerica, um outro livro do cara, As agruras do verdadeiro tira. Claro que, para manter a aura cult do Bolaño, tinha que ser um livro inacabado - na verdade os originais de um outro que poderia se tornar mais um infindável romance que a morte não permitiu ao escritor concluir. Descobri, lendo esse romance postumamente organizado por outrem, que Bolaño, não temam, é apenas, simplificando grosseiramente, um cruzamento de Jorge Luiz Borges com Mario Vargas Llosa. 

Mais precisamente o Borges de Ficções - um livro tão precioso na minha memória de leitor que, por mais que tenha vontade, evito encarar um releitura, como que pra não quebrar aquele encanto - com o Conversa na Catedral de Lhosa (que somente este ano, há poucos meses, encarei a frio). Foi notar esse cruzamento na história do professor universitário que vaga entre América Latina e Europa perseguido pelos próprios fantasmas relacionados ora à militância esquerdista ora a uma homossexualidade tardia que acordei para tais conexões. De Lhosa, ele pegou a história picotada como que em quadrados que se encaixam um capítulo aqui com outro bem mais adiante. De Borges, enxertos como aquelas maravilhosas listas de livros inexistentes e ainda aquela maneira de narrar usando formatos diversos, como capítulos surpreendentes mínimos ou resumos de obras literárias que também só existem no próprio livro. Tudo muito aberto, esparso, ventilado como se fosse um grande escrito cujas folhas saíram voando por aí e um leitor - você, que por ventura esteja com o livro nas mãos - organizou para compreender minimamente o mundo daquele professor e seu entorno. 

O prazer da leitura, que os primeiros desbravadoras pós-morte de Bolaño viram no 2666, está neste esgrimir de estratégias narrativas, neste organizar de estilos que embora aparentemente diversos guardam uma harmonia sugestiva como se vê no mais convencional romance linear. É verdade que você, leitor,  nem sempre estará à altura de decifrar, com seu repertório igualmente convencional, todas as referências que Bolaño espalha pelo livro - aliás, é bem possível que permaneça imune ao efeito da grande maioria delas. Mas, como numa letra de música de Luis Melodia, vai captar nem que seja pelo cheiro aquela matéria indistinta a que na falta de expressão melhor chamamos de "o espírito da coisa" - ou a coisa do espírito se melhor lhe aprouver. O fato é que, precedido pelo bem mais exato Ficções e pelo igualmente ambicioso Conversa na Catedral, a escrita de Bolaño não precisa mais intimidar ninguém.