sexta-feira, 17 de abril de 2015

O Sal, a Terra e o drama


Muito mais do que um documentário convencional, "O Sal da Terra" divide com o público o encanto e o desespero por trás das fotografias de Sebastião Salgado 

Quem for ao cinema para ver "O Sal da Terra" esperando uma mera cinebiografia do fotógrafo Sebastião Salgado vai tomar um susto. Um susto cinematográfico, caso os olhos estejam kubriquianamente bem abertos e a sensibilidade em ponto máximo. Ao contrário de "Revelando Sebastião Salgado", esta sim uma cinebiografia convencional no nível médio dos canais de tevê por assinatura (por acaso em exibição no Canal Brasil; e disponível na íntegra no YT - veja aqui), o filme de Wim Wenders (em parceria com o filho do fotógrafo; mas a mão do alemão por trás de tudo é dominante e evidente demais para que se dê crédito equilibrado à parceria) é o estudo de um artista sobre outro artista. Um encontro de sensibilidades sociais e estéticas, como raramente se pode testemunhar, uma vez que se sabe: talentos superiores geralmente tendem a rejeitar seus semelhantes, antes investindo na competição do que na cooperação.

Mas estamos falando do mundo de Sebastião Salgado, onde a foto-celebridade do atentado a Ronald Reagan é apenas um ponto na trajetória - um êxtase da fama que o fotógrafo tem a grandeza de não hipervalorizar. Talvez por isso o episódio - menor na trajetória do mineiro que se notabilizou ao descobrir a fotografia enquanto trabalhava como uma espécie de economista social na Europa - esteja ausente do filme de Wenders, causando estranhamento em que esperava um trabalho linear, jornalístico - e com tudo o que o critério jornalístico tantas vezes tem de redutor e empobrecedor. 

Portanto não espere de "O Sal da Terra" um trabalho tecnicamente considerado "documentário", porque vai muito além disso. Há ali uma dramaturgia em que a trajetória de Salgado é apenas espelho para o confronto entre um homem e o mundo atual. Poderia ser a descrição de como um antropolólogo se viu perdido e inseguro após estudar com profundidade as formas de vida das várias humanidades espalhadas por sobre o planeta. Poderia ser o mesmo fenômeno tendo como protagonista um economista, um cineasta, um artista plástico (algo que, só pra comparar, ocorreu também com rara felicidade em "Lixo Extraordinário"que o artista plástico Vik Muniz fez a partir dos catadores do Jardim Gramacho). O resultado dessa excursão aos limites da vida humana e do mergulho que um fotógrafo faz neles tem a dramaticidade conjunta de um "...E o vento levou" mais "Luzes da cidade" mais "Era uma vez na América" mais "O sol que nos protege" mais "Pixote" e muito outros títulos. Assistir a "O Sal da Terra" é como ver todos esses títulos juntos, porque a cordilheira de emoções que o filme lhe convida a percorrer é dessa enverdura pra cima. Reforçando: algo difícil de se esperar e de se ver num documentário - daí porque se trata de muito mais que isso.

Dos dramas dos deserdados africanos à miséria do interior nordestino no início da década de 80, passando pelo esplendor de ambições enlameadas que foi Serra Pelada e culminando com a crise do artista depois de documentar tantas imperfeições humanas, tudo em "O Sal da Terra" exige entrega, sensibilidade, espírito desarmado e aquela espécie de subjetividade que o pobre jornalismo - essa academia mal construída de generalidades apresssadas - não tem condições de conter, quanto mais de compreender. Não se trata mais de um filme, mas de um daqueles eventos que só ocorrem de tempos em tempos. É é pra ser visto, na sua calma contemplativa e no seu impacto de empatias, em tela grande, no cinema propriamente dito.