sábado, 16 de maio de 2015

Memórias do alvorecer






Quando a nostalgia se torna muito mais que um vício e um posfácio vale tanto quanto toda a tradução de um clássico beat


Há frases que esmagam com carinho o coração do Leitor Bagunçado. Há trechos de textos que massageiam com dedos divinos as cordas de sua emoção. É o que ocorre, e acaba de ocorrer, quando ele depara com as rápidas memórias de Eduardo Bueno - o Peninha daquela série sobre a história do Brasil infelizmente interrompida - ao final do relançamento, pela L§PM, do On the road de Jack Kerouac. 


Relembro que a edição resulta da tradução feita por Bueno e lançada originalmente em 1984, quando pela primeira vez o clássico beat foi vertido pra o português brasileiro (o máximo que havia antes era uma edição lusitana de título risonho - Pela estrada afora - como conta o próprio Peninha). 

E chego ao ponto acrescentando que, além da tradução, o relançamento, já nem tão relançamento assim (que o Leitor Bagunçado segue fiel ao seu atraso regulamentar) traz prefácio e posfácio escrito pelo mesmíssimo Eduardo Bueno. Aí é que estão as tais cordas da tal emoção dedilhada de que se falou lá no início deste tortuoso texto: Bueno, a propósito de falar sobre as circunstâncias de sua tradução, traz de volta registros de um tempo que tanta falta faz aos tempos atuais. 

Não é nem nostalgia, embora esse seja um dos meus mais deploráveis vícios: é cotejamento puro e simples de uma época com outra, dado o volume que tomou a carga conjunta de maldade, ignorância e arrogância que pisa sobre os nosso dias, como se vivêssemos qual formigas sob as botas de um ogro de manifestação reaça. Mas nunca chego ao ponto principal: ei-lo, a seguir, nas palavras contidas no dito posfácio, embora com ligeira edição para o melhor entendimento do que é dito aqui com infeliz inexatidão.

"E tudo parecia maravilhoso (Bueno se refere ao lançamento de On the road, às séries da editora Brasiliense, como Cantadas Literárias e Circo de Letras, ao surto de edições no Brasil dos papas da literatura beat chegando a Bukoswki e John Fante). Era a época da abertura, das Diretas Já, do rock paulista, da geração saúde, do Circo Voador, do Carbono 14, do primeiro Rock in Rio, do Pra começo de conversa e de outros babados mais. Era o alvorecer dos anos 80, e havia muitas promessas no ar, com aquela gente voltando para a caserna de onde não deveria ter saído."





Outro trecho, complementar:

"Como eram bons os tempos do Plano Cruzado - aquele que mostrou que os brasileiros gostam de ler, sim; que só não compram livros quando custam meio salário mínimo, ou seja, quase sempre - e como ninguém que entenda alguma coisa de literatura dá bola para o que os críticos dizem, os beats continuaram sendo publicados e vendendo muito bem, obrigado. Mas aí acabou o Cruzado, Caio Graco (dono da editora Brasiliense) morreu, eu saí da L§PM, Lima e Ivan(L e PM, respectivamente) continuaram sua carreira editorial com outros títulos e outras trilhas, e a tardia onda beat no Brasil esmoreceu, como tudo um dia esmorece."

Depois disso, só desejando, neste outro tempo deste outro Brasil, tão absurdamente diverso daquele: "esmorece, mediocridade; e rápido, antes que tudo esteja perdido."