segunda-feira, 21 de novembro de 2016

Já deu um aperto na sua pós-verdade hoje?


Apertem os cintos: estamos entrando na era da pós-verdade

Por Carlos Castilho, do Observatório da Imprensa, em 28/09/2016 na edição 921

Pós verdade parece mais uma expressão de impacto para chamar a atenção de um público saturado de informações e inclinado para a alienação noticiosa. Mas o fato é que estamos diante de um fenômeno que já começou a mudar nossos comportamentos e valores em relação aos conceitos tradicionais de verdade, mentira, honestidade e desonestidade , credibilidade e dúvida.
As evidências desta nova era estão nas manchetes de jornais, em declarações como as do candidato republicano Donald Trump ou nas dos procuradores e acusados na Lava Jato. Se antes havia verdade e mentira, agora temos verdade, meias verdades, mentira e afirmações que podem ser verdadeiras, conforme afirma o escritor norte-americano Ralph Keyes, o autor do livro The Post Truth Era: Dishonesty and Deception in Contemporary Life (St. Martin’s Press, 2004. ISBN 978-0-312-30648-9).
Quando Trump afirmou num discurso que o presidente Barack Obama foi um dos fundadores do Estado Islâmico, até os ultraconservadores norte-americanos acharam que ela estava exagerando. Mas o candidato republicano não se abalou, nem mesmo na televisão, quando explicou que Obama permitiu o surgimento do grupo radical islâmico porque este cresceu no vácuo politico deixado no Iraque pelo que Trump classificou de fracassos da diplomacia do presidente norte-americano. A polêmica criada em torno da afirmação gerou a percepção de que ela poderia ser verdadeira. Foi o suficiente para que Trump saísse ileso da discussão.
Os conservadores transformaram a insegurança pública num dos seus carros chefes na campanha pela implantação da doutrina do medo social, como forma de domesticar a população. Mas eles negam a evidência estatística de que na maioria dos grandes centros urbanos do planeta a incidência de crimes diminuiu em relação ao número de habitantes. A explicação para a discrepância entre a sensação de insegurança e as estatísticas criminais é complexa e exige uma boa dose de esforço e isenção. É mais fácil partir para aquilo que uma parte do publico quer ouvir.
A “cognição preguiçosa”
É um caso típico de aplicação da teoria da “cognição preguiçosa”, criada pelo psicólogo e prêmio Nobel Daniel Kahneman, para quem as pessoas tendem a ignorar fatos, dados e eventos que obriguem o cérebro a um esforço adicional.
Aqui no Brasil, a pós verdade é nítida no caso das investigações da Lava Jato. Separar o joio do trigo no emaranhado de versões e contra versões produzidas pelas delações premiadas é bem complicado. Há poucas dúvidas sobre a existência de esquemas de propinas, caixa dois eleitoral, superfaturamento, formação de cartéis e enriquecimento de suspeitos, mas provar cada um deles com base em evidências é uma operação complexa e demorada. Em alguns casos até inviável dada a sofisticação dos esquemas adotados pelos suspeitos de corrupção.
Mas como existe o interesse político envolvendo a questão e como existe a “cognição preguiçosa”, as convicções passam a ocupar o espaço das evidências e provas. A dicotomia jurídica clássica entre o legal e o ilegal passa a ser substituída por justificativas tipo “domínio do fato”, ou seja, convicções construídas a partir da repetição massiva de percepções individuais ou corporativas, pelos meios de comunicação.
Segundo a revista The Economist, o mundo contemporâneo está substituindo os fatos por indícios, percepções por convicções, distorções  por vieses. Estamos saindo da dicotomia tradicional entre certo ou errado, bom ou mau, justo ou injusto, fatos ou versões, verdade ou mentira para ingressarmos numa era de avaliações fluidas, terminologias vagas ou juízos baseados mais em sensações do que em evidências. A verossimilhança ganhou mais peso que a comprovação.
A pós verdade, um termo já incorporado ao vocabulário da mídia mundial, é parte de um processo inédito provocado essencialmente pela avalancha de informações gerada pelas  novas tecnologias de informação e comunicação (TICs). Com tanta informação ao nosso redor é inevitável que surjam dezenas e até centenas de versões sobre um mesmo fato. A consequência também inevitável foi a relativização dos conceitos e sentenças.
Mas o que parecia ser um fenômeno positivo, ao eliminar os absurdos da dicotomia clássica num mundo cada vez mais complexo e diverso, acabou gerando uma face obscura na mesma moeda. Os especialistas em informação enviesada ou distorcida (spin doctors no jargão norte-americano), aproveitaram-se das incertezas e inseguranças provocadas pela quebra dos paradigmas dicotômicos para criar a pós verdade, ou seja, uma pseudo-verdade apoiada em indícios e convicções já que os fatos tornaram-se demasiado complexos.
A herança de Goebbels
Diante das dificuldades crescentes para materializar a verdade por conta da avalanche informativa, especialmente na politica e na econômica, criaram-se as pós verdades, ou factoides (no jargão brasileiro), onde a repetição e a insistência passam a ocupar o espaço das evidências.
Na era da pós verdade, as versões ganharam mais importância do que os fatos, o que não é bom e nem mau. É simplesmente uma realidade. O que chamamos de fatos, na verdade são representações de um fato, dado ou evento desenvolvidas pela mente de cada indivíduo.
Assim, teoricamente, podemos ter um número de representações de um mesmo fato igual ao número de seres humanos no planeta Terra. E como as TICs permitem a disseminação massiva destas representações ou percepções, fica fácil intuir a complexidade da avaliação de fatos, dados ou eventos.  “Uma mentira repetida mil vezes vira verdade”,  a controvertida máxima cunhada pelo chefe da propaganda nazista, Joseph Goebbels, tornou-se preocupantemente atual.
Os meios de comunicação, principalmente a imprensa, ganharam um papel protagônico no fenômeno da pós-verdade porque a circulação de mensagens passou a ser o principal mecanismo de produção de novos conhecimentos numa economia digital movida a inovação permanente. A relevância conquistada pelos meios de comunicação os transformou em agentes fundamentais no processo que prioriza uma forma de descrever a realidade. Quando a imprensa norte-americana endossou a tese da existência de armas de destruição maciça no Iraque de Saddam Hussein, ela  deixou de lado a verificação dos fatos e foi decisiva na transformação de uma possibilidade em certeza acima de suspeitas.
Teoricamente a pós verdade pode ser usada tanto pela esquerda como pela direita no terreno politico, mas como a imprensa joga um papel fundamental no processo, os rumos obviamente serão determinados pela ação de jornais, revistas, meios audiovisuais e pelas redes sociais. A imprensa portanto, não é uma observadora mas uma protagonista do processo de transformação de mentiras ou meias verdades em fatos socialmente aceitos.
A pós verdade e o jornalismo
A pós verdade é apenas um dos itens da era digital que estão abalando nossas crenças e valores. Nós jornalistas e toda a sociedade estamos vivendo um momento de insegurança e incertezas porque estamos passando de um contexto social para outro.  Esta insegurança não é um fenômeno inédito na humanidade porque já aconteceu antes quando grandes inovações tecnológicas alteraram radicalmente o contexto social da época. Basta ver o que ocorreu após a invenção da pólvora, dos tipos móveis por Gutemberg, da máquina a vapor e dos processos de produção industrial.
Um dos grandes, talvez o maior de todos, dilemas enfrentados pela sociedade atual, é a necessidade de conviver com a complexidade do mundo contemporâneo. Tomemos o caso da polêmica científica sobre o meio ambiente. É um tema complexo onde o bombardeio informativo confunde as pessoas comuns com afirmações contraditórias entre cientistas e pesquisadores. Do ponto de vista dos cientistas é natural que existam posicionamentos distintos mas para o público, acostumado pela imprensa a esperar verdades absolutas, as contradições e divergências geram incertezas, que acabam conduzindo ao descrédito generalizado.
A pós verdade coloca para nós jornalistas o desafio da repensar a credibilidade e os parâmetros profissionais para avaliar dados, fatos e eventos. Não é uma casualidade o fato da credibilidade da imprensa, em países como os Estados Unidos, estar hoje num dos pontos mais baixos de sua história. O leitor está cada vez mais confuso e desconfiado em relação à imprensa. É uma resistência intuitiva ao fenômeno da complexidade informativa gerada pela internet.
A pós verdade é talvez o maior desafio para o jornalismo contemporâneo porque ela afeta a relação de credibilidade entre nós e o público. A nossa atividade está baseada na confiança das pessoas de que o que publicamos é verdadeiro. Quando uma nova conjuntura informativa interfere nesta confiabilidade, temos serias razões para nos preocupar, e muito, sobre o futuro da profissão.

domingo, 6 de novembro de 2016

Atualizando (ou "o espírito do tempo")



Tem aquela palavra em alemão difícil de pronunciar e fácil de entender, perfeita para explicar justamente o que parece não caber numa palavra. Zeitgeist, o tal espírito do tempo. Que tem sido péssimo, que aponta para piorar mais ainda, que não nos deixa dormir bem a não ser que todas as janelas informativas sejam cuidadosamente fechadas pelo menos três horas antes de qualquer pessoa sensata, sensível e minimamente inteligente ir para a cama. Lapsos se abrem, é natural. Blogs são abandonados à própria sorte. Um rascunho de post à deriva na lama da desinformação tubinada que, apesar de tudo, em certas horas ainda reflete a luz de uma lua torta. 

Muito pra dizer, mas pra quê? Por mais que se dê voltas, sempre se corre o risco de cair, desavisadamente, num buraco oculto no asfalto, a melhor embora mais acidental tradução para o tal espírito do tempo (o atual, por favor). Faltou falar de Aquarius, tão mal compreendido, erroneamente - e o pior, propositadamente - lido, tomado por partes que sozinhas nem fazem sentido enquanto o todo, esse monstro que vem a ser outra cara do espírito do tempo, não perdoa em sua implacabilidade. 



O filme não é sobre política pequena, nem pode ser reduzido a um thriller social, um drama banal: é tudo isso superlativamente superposto em camadas que vão sendo cimentadas umas sobre as outras, resultando no mais acabado espírito do tempo made in Brazil dos nossos dias. Glauber Rocha que morra de inveja, mas o pernambucano lhe ocupou o lugar. 

Tanto a dizer, palavras perdidas no abandono da autoeditoração que tanto permite quando desautoriza. Faltou falar de A Repartição do Tempo, um bólido cinematográfico que vem aí para nos desfatigar as retinas drummonianas nesses meses recentes, ao reerguer em forma de comédia amalucada, ligeiramente puxada ao ritmo de um distante Guy Ritchie, a nossa já tradicional dramaturgia do serviço público. Vide a era do Palhares de Nelsão, em crônicas, romances seriados ou quadros do Fantástico. 


Nada do involuntário tédio em sépia dos aspones e seriados apocalípticos globais, onde ceticismo rima com tédio. Necas, que aqui o aproach é mais do tipo agulha na epiderme: provocações algo nonsense num filme onde o grafismo narrativo é aplicado a certa preguiça crônica do funcionalismo brasileiro. É claro que aquela repartição é um microcosmos de algo mais, colega. E o colega, que vem a ser isso mesmo (o diretor Santiago Dellape, com quem dividimos mesas funcionais na tevê da Câmara dos Deputados), está  vestido de autoridade para tripudiar não só do funcionalismo como de todas as outras piadas já feitas sobre isso. 

Se bem que a redação da TV Câmara, onde labutamos com fervor, orgulho e maestria em turnos ininterruptos de oito horas e meia diárias, nada tem a ver nem com o restante do funcionalismo legislativo e menos do que se imagina com uma redação jornalística convencional. Salto para a mais clássica de todas, in Brasil: a do JB cantada em prosa, versos e memórias dos anos 60 até seu lastimável fim. E na Piauí em bancas, Joaquim Ferreira dos Santos maltrata, meticulosamente, cada microfibra da nossa saudade ao lembrar o santificado espaço de uma pretérita Avenida Brasil. 






Não, nada disso - não é preciso ter trabalhado no JB de então como fez o saudoso Luciano Herbert desde Natal (dividindo o batente com a Tribuna do Norte e o Banco do Brasil) pra entender, sentir, sofrer esse missing you. Basta ter sido um leitor do JB nos anos 80, um estudante de jornalismo em igual período, um brasileiro que, por mais que tentem, não consegue, como uma certa Clara pernambucana, aderir aos tempos atuais. E aí está ele, novamente, em grande estilo, technicollor, para todo o Brasil ou com z ou com s: o espírito do tempo. 



Leia a memória de Ferreira na Pauí e experimente lembrar de quem você era, o que fazia, os amigos que tinha, o miserê que gratificava, o companheirismo que compensava, o divertir-se que criava. Está tudo lá, porque a redação do JB era, como Aquarius e as piadas cínicas pero divertidas e inquietas da Repartição do Tempo, um cartaz e tanto de uma época que tem muito o que dizer aos carreiristas prematuros do mês passado, incapazes de guardar o que quer que seja no bolso dos afetos do ano corrente. 

*A propósito, lembro aos distraídos: Aquarius já está disponível no cardápio do Telecine da plataforma NOW, da monopolista Net global.  

*A propósito (2): Luciano, rapaz, você não está perdendo nada. 

terça-feira, 23 de agosto de 2016

Me debato no debate




Pra curar a ressaca dos shows olímpicos, nada como o debate eleitoral pela prefeitura de São Paulo

Eu não tenho nada a ver com isso. Não moro em São Paulo. Só estive nessa cidade pouquíssimas vezes, e sempre de passagem. Perdi 80 por cento do meu interesse, digamos, “eleitoral” pela política – embora, numa visão menos apressada, seja quase impossível não se posicionar politicamente diante de um país tão errático, admito. Enfim, não havia motivo algum pra acompanhar o debate entre os candidatos a prefeito da maior cidade do país e da América do Sul na noite dessa segunda-feira.

Mas o chrome cast estava ali à mão, eu tinha lido sobre o debate nos jornais do dia (o que sempre é uma isca, a leitura dos jornais, pra uma série de outras coisas), tinha curiosidade por ver como se posicionaria a Marta ex-PT. E também queria conferir como o modo-de-estar-no-mundo estilo almofadinha de Dorinho Júnior funcionaria, ou não, no embate de uma campanha eleitoral. Enfim, assisti ao debate.

Primeiro, fiquei quase deprimido. Não com os candidatos. Nem mesmo com o Major Olímpio – que me alegrou imensamente por proporcionar a visão do quanto o cafajestismo político da era do impeachment de Dilma soa mal num programa de tevê desse tipo (sim, porque antes de mais nada, eleição à parte, debate eleitoral é puro programa de tevê; precisa sobretudo entreter, caso contrário não cabe no modelo que caracteriza historicamente a televisão brasileira, e é incrível que muita gente que trabalha em tevê ignore isso).

Piedade

Retomando, por que eu fiquei deprimidão? Na medida em que os problemas da cidade de São Paulo iam sendo desfiados qual uma renda amaldiçoada que fosse estendida sobre a metrópole e seus incautos habitantes, eu passei a sentir uma imensa empatia com essas agoniadas pessoas. Meu Deus, tende piedade: como é ruim morar em São Paulo, especialmente se você é pobre – estatisticamente pobre, que fique claro.

Quanta mazela, lerdeza, obstáculos, provações urbanas. Eu no lugar de um candidato qualquer daqueles aproveitaria pra engatar um choro teledramático captador de milhões de votos, porque motivos não faltavam. Não existe vida minimamente regular, tranquila, reta, banal em SP, Criolo Doido? Junte trânsito, bicicleta, CEU, ciclovia, saúde pública ruim, escola com ou sem aprovação automática, faixa exclusiva, faixa de atropelamento, reserva de ar ou poluição para todos, parece que nada tem jeito, tudo está perdido. Não é possível, isso tudo só pode ser praga de Jânio Quadros, embora digam que antes dele a coisa já não era das melhores. Porque não foge todo mundo pra... Pirajú, por exemplo? Tem uma represa massa, neblina e sombra nas noites de julho, uma beleza. E fica perto. Deixa pra lá.

Quem ganhou o debate? O Diabo, em pessoa. Uma espécie de diabo urbano que se infiltra das cracolândias aos pancadões, pegando só de maldade os moradores dos jardins e morumbis azumbizados pelo cerco inevitável. É impraticável manter o bom nível de um debate em meio a tanto caos, mas como no Brasil tudo é possível – e em São Paulo mais ainda – o fato é que ao final todos sobreviveram. Até o Major Olímpio, com sua bela contribuição já citada aqui, mostrando o quanto o primarismo político pode soar grotesco.

Marta me surpreendeu pela naturalidade bem articulada – o avesso do avesso do avesso de Dilma – que usou até pra transformar confissão de erro em autoelogio possível. Dorinho Júnior foi aquele tatibitate de condomínio enfeitado com plantas de plástico – surpresa alguma, o que no caso dele não deixa de ser esclarecedor para o eleitor em geral. Gostei de Haddad, que manteve uma tranquilidade meio cabeça erguida mesmo servindo de pau de sebo pra tanto marmanjo (Marta incluída, porque política não tem sexo, né, pessoal?).

Faltou alguém...? Ah, Russomano, claro, que pra mim... ele estava mesmo lá? Não notei muito a presença do campeão das pesquisas. Mas como é que o mais atacado, lá embaixo nas pesquisas – Haddad – até que se sobressai enquanto o favorito parece ter no máximo mandado um clone inexpressivo pra representá-lo? Elementar, meu caro Caetano: estamos em Sampa; aquele lugar politicamente de pernas para o ar onde tudo pode acontecer e cuja prefeitura qualquer um pode ganhar. Independente da lógica, da história, dos argumentos, das posições políticas e, por que não, dos debates.

*E a irracionalidade política chegou a tal ponto que nem me dei conta da ausência de Erundina. Amigos no Facebook me chamam atenção para isso. Se eu não notei, magine o grosso do eleitorado. Triste baía aterrada de Piratininga.

quinta-feira, 28 de julho de 2016

Houston e o cinema dos limites





Quem der um tempo nos seriados de TV e voltar ao velho e bom cinema de antanho poderá ter grandes surpresas


Downton Abbey é um novelão irresistível, onde os britânicos, só de mal, reafirmam a cada curta cena que são os melhores atores do mundo. Basta um daqueles criados mover ligeiramente a sobrancelha para superar a carga dramática de praticamente todos os filmes em cartaz nos cinemas. Bloodline é um espanto, uma tragédia familiar construída com precisão e paciência. E quem não entrega o ouro que nem tem diante do escorregão vertiginoso daquele professor de química desesperado com a vida e cada vez mais entusiasmado com os poderes da ilegalidade em Braking Bad? Nem precisaria incluir na lista um outro professor que, no lugar das drogas, molha em sexo o desencanto com o mundo na pouco comentada Californication, que soa como uma canção pop mais apimentada. 

São ótimas as séries de televisão que deram uma banana para o cinemão convencional americano, mostrando o quanto os super-heróis e assemelhados - por mais divertidos que também saibam ser em muitos momentos - chafurdam na banalidade das cenas explosivas quando deveriam preencher as telas com a fúria e força que o verdadeiro cinema pode ter. 

E toda essa preleção é para falar de um diretor e dois filmes, ambos à antiga, que por acaso voltei a ver nesses dias de lazer antes da volta ao trabalho. Por melhor que seja, não tem seriado de tevê que se compare aos painéis filmados pelo velho John Houston, o cineata que parece melhor retratar, estudar, lamentar e ao mesmo tempo fazer transcender as agonias de um ser humano em crise. Pelos dois filmes que revi - agora muito mais atentamente do que antes, lá pelos anos 80 - Houston não tem concorrente quando se trata de grudar uma câmera numa figura em desencanto ou já em pleno processo de autodestruição, alcançando, a partir de um drama pessoal, visões dispersas dos males que a humanidade cultiva com a melhor das intenções. 




Os filmes foram À Sombra do Vulcão, onde acompanhamos as últimas horas de vida de um Albert Finnney às voltas com um alcoolismo terminal exercido em meio a uma festa do dia dos mortos no México, e Os Desasjustados, outra crônica do desespero mas aqui praticada em grupo, por um elenco também ele de outra maneira terminal - foram os últimos filmes de Clarck Gable e Marilyn Monroe, ali acompanhados por Montgomery Clift.

O cinema dos limites

Em À Sombra do Vulcão*, um cadáver de carne, osso e contrastantes roupas pretas flana em meio a um cemitério colorizado pelas festividades do dia dos mortos: é o diplomata bebum Albert Finney, a mais perfeita tradução de algo que o filme já procura explorar desde as cenas de abertura, com os esqueletos da festa mexicana pulando sobre a tela escura como bonecos sinistros. São mais que isso, soando, especialmente quando vestidos como noivos, como ilustrações da roupa patética que tantas relações amorosas desviadas do curso podem envergar. Os bonecos dão mais pena do que medo, é claro - e este obviamente não é um filme de terror, embora os sinais da morte estejam em muitas cenas, como a velha índia jogando dominó com galinhas no bar decadente onde Finney toma todas e mais um pouco.






Ao contrário do que acontece nos novos seriados (e grande parte do atrativo deles vem disso) não são necessárias muitas explicações para a narrativa da crise do personagem. Basta uma frase no roteiro e pronto: "Um dia acordei e ela tinha ido embora", e o drama está dado - claro, se for pronunciado pelos atores certos, capazes de expressar essa forma especial de solenidade falida como Finney faz. Para além da dor de cotovelo que nem o retorno inesperado de Jaqueline Bisset - pudera! - é capaz de curar, o tema do filme é a dúvida sobre a possibilidade de redenção que todos nós, alcóolatras e diplomatas desiludos ou nem tanto, temos ou não enquanto caminhamos pelos nossos dias dos mortos particulares. 

Finney está lá, como um espelho de refrações exageradas para a gente se olhar. Não à toa, lembra um Hamlet vencido, do tipo que nem chegou a sofrer com a dúvida. Abdicou do dilema ao primeiro encontro com ele - sucumbiu, copo na mão, monólogo na boca, e são vários ao longo do filme. No material extra, o roteirista comenta que Houston não aprecia bizarrices e foge de exageros - refere-se às sequencias finais situadas num bordel ultrarrealista - mas, não se enganem: faz algo muito parecido - gosta de filmar os limites. Á Sombra do Vulcão, um filme cult desde os anos 80, é mais que um programa cool. É um filme-limite, como nenhum novo seriado é capaz de ser, sob pena de matar seus ganchos e dispersar seu público. Este problema o cinema clássico (acho que a esta altura podemos considerar a palavra) não tem. 

Sem subir nem aterrissar

A matéria que constitui Os Desajustados** não é muito diferente. A distinção é que aqui temos um grupo de quatro personagens que compartilham esses sentimentos de fim de linha. "Talvez a única coisa que exista seja a próxima que vai acontecer", reza Marlyn Monroe, dando o mote da falta de perspectiva que move - ou não move - o quarteto, em que sua beleza e sensualidade, ainda que não no auge da carreira, serve para rejuntar os vazios que ligam o grupo integrado por Gable, Clift e Eli Wallach. Membros de uma camaradagem sustentada pela solidão em comum, um certo desprendimento exigido como taxa para que se mantenham vivos, o desespero resultante de praxe e, óbvio, o desejo que MM desperta. "Não consigo aterrissar nem subir a Deus", diz outro personagem, ex-piloto de avião de bombardeio da II Guerra reduzido a motorista de guincho, numa série de ilustrações verbais que se devem a outro monstro sagrado - o roteirista, que aqui é ninguém menos do que o dramaturgo Arthur Miller. 




Por isso mesmo o filme também sofre de uma certa teatralização que sempre atrapalha um pouco - não há traço disso em À Sombra do Vulcão, só pra explicar o efeito. Mas Houston está lá pra garantir que o cinema seja antes de tudo cinema. E o faz na sequência final, que mostra uma épica e ao mesmo tempo desesperançada caçada a um bando de mustangs. Não poderia haver metáfora visual mais perfeita para aqueles desasjustados do titulo do que os seis cavalos selvagens que os homens, usando claramente a força e a resistência física como distração para falências mais subjetivas, põem-se a capturar. A caçada dá uma nova plasticidade ao filme, ampliando cinematograficamente a falta de horizontes internos daqueles quatro personagens. É curioso que, num filme de um diretor conhecido por também ele cultuar tais rituais de macheza (vide Coração de Caçador, que Clint Eastwood fez somente sobre isso) haja uma reação ao abuso ecológico que a caçada aos mustangs representa. Melhor para o filme e para MM, que tem ali a chance de exercitar seu melhor momento, no derradeiro filme. Houston filmou sua revolta de longe, não se sabe se para enquadrar melhor a pequenez do ser humano no quadro geral da geografia em volta ou para disfarçar alguma imperfeição na interpretação.

Não importa, ali Os Desajustados já cumpriu seu papel, inscrevendo na obra completa de John Houston um outro estudo sobre os limites da experiência humana - e as consequências que nos esperam quando, qual cavalos selvagens, trotamos para além deles. Alguma civilização, para o bem ou para o mal, cedo ou tarde vai nos deter - e dor que esmaga tanto os quatro desajustados quando o diplomata bêbado estará garantida. Ao contrário do mustang que Gable, exaurido pela dor física e pessoal, resolve afinal deixar seguir livremente pela amplidão branca do deserto de Nevada. 

*À Sombra do Vulcão está à venda em DVD na Livraria Cultura (R$ 19,90 na loja do Iguatemi em Brasília).
**Os Desajustados está à venda, pra quem mora em Natal, na loja de vídeos especiais do camelódromo da Ulisses Caldas.

quinta-feira, 23 de junho de 2016

O prisioneiro de Saul


Tem uns caras que um dia, determinado dia, na sua vida de leitor, você vai ter que enfrentar. Não tem data, nenhuma previsão, segurança alguma, nada. Mas ele / ou ela / estará lá, esperando, calmamente como um serial killer astucioso que sabe como ninguém cozinhar e degustar miolos de leitores incautos. 

Por estes dias, nas rondas que me arrisco a fazer entre as ruas de prateleiras da biblioteca pública que frequento, fui capturado por um tipo desses. Era um canto de estante, uma esquina mal iluminada onde poderia estar escondido um Goethe, um Becket, um Thomas Mann, este último pronto pra me ferir mortalmente com um golpe de "José e Seus Irmãos" direto no cocoruto. Escapei desses todos.

Escapei por pouco, apenas para me ver refém do não menos tenebroso Saul Bellow - um senhor de cara de cavalo, cabelos ralos e brancos, postura de vampiro curvado e, o que é pior, cérebro completamente imune a qualquer tipo de conciliação com a vida e com o mundo. Esse tal Saul é tipo um Paulo de Tarso às avessas, um Saulo bíblico que, depois de um tombo causado por um livro que se suicidasse de uma prateleira de biblioteca, renegasse novamente tudo o que passou a ser, voltando a viver como um perseguidor de crentes.  

O Sr. Bellow, consagrado até dizer chega graças a livros como "O Legado de Humboudt" e "Herzog", mora naquela rua onde a América examina seu pecadões e pecadinhos com um rigor de quem tem um império a construir e não pode perder tempo. 
O livro que ele usou pra me manter preso na sua rede é - como não poderia deixar de ser, em casos assim? - um baita monólogo disfarçado, que só mesmo pra lhe enganar começa a narrar na terceira pessoa para logo logo desandar num fluxo de pensamento capaz de deixar o Dostoiéviski de "Memórias do Subsolo" sem fôlego - ou, no mínimo, com soluço. 

Não me identifico com "Crime e Castigo" - falta empatia, e não é propriamente com a referida infração e posterior punição, mas com a atmosfera completa do livro - mas sou fã das Memórias subterrâneas do moço de Moscow (ou seria São Petesburgo, pré ou pós-Leningrado?) . Talvez por isso esses monólogos, ainda que (mal) disfarçados, têm o poder de me pegar. É dura a travessia, há horas em que você quer sacudir livro, pensador e (ralos) personagens janela abaixo, mas a civilização sempre dá um jeito de lhe conter os impulsos. 


O livro - só agora me dou conta de que ainda não dei o título - é "O Planeta do Sr. Sammler", um desabafo tipo Riobaldo em Nova York, assombrado não com os mistérios do sertão humano e sobre-humano, mas com as armadilhas urbanas e ao mesmo tempo quase selvagens da grande maçã. Isso nos anos 70: lembre de toda a cinematografia local do período, com vapor escapando de becos escuros, tiras corruptos e pós-hippies a um passo do apocalipse e você vai entender melhor.  

Judeu polonês, sobrevivente da matança nazista, saudoso de uma Londres intelectualizada, o Sr. Semmler do título navega pela Nova York dos anos setenta como alguém que, tendo sobrevivido, não consegue pisar no chão dos mortais propriamente ditos. Oscila, vaga, permanece em suspensão sobre esse mundo que enxerga como tão terminal quando os nefastos episódios históricos de que tomou parte antes de ali chegar. 

A julgar por este livro, a impiedade de Saul Bellow não deve ser menor nos outros - exatamente os que o consagraram. Veremos, porque volta e meia eu não resisto e dou umas incertas nas mesmas ruas de prateleiras onde já me deixei uma vez capturar. Ao amigo, à amiga, sugiro que pense duas vezes. Mas se começar a ouvir os lamentos do Sr. Sammler, vá até o fim. Persista, insista, não se entregue, estrebuche mas chegue ao final. 

Não que haja alguma surpresa do gênero spoiler que eu não cometerei o supremo crime de revelar - nada disso; o que por si só já representa um tipo de spoiler - mas é que é preciso esgotar o pensamento sobrevivente desse narrador enviesado. Porque este tipo de relato só tem sentido se começar e terminar assim, sem deixar pela metade seu ponto de saturação. Planetas como esses precisam ser habitados por todas as páginas. Quem pular trechos por excessos de enjoo estará cometendo outro crime, bem mais grave embora não muito frequente em ruas sinistras formadas por quarteirões de estantes de bibliotecas públicas.