quinta-feira, 28 de julho de 2016

Houston e o cinema dos limites





Quem der um tempo nos seriados de TV e voltar ao velho e bom cinema de antanho poderá ter grandes surpresas


Downton Abbey é um novelão irresistível, onde os britânicos, só de mal, reafirmam a cada curta cena que são os melhores atores do mundo. Basta um daqueles criados mover ligeiramente a sobrancelha para superar a carga dramática de praticamente todos os filmes em cartaz nos cinemas. Bloodline é um espanto, uma tragédia familiar construída com precisão e paciência. E quem não entrega o ouro que nem tem diante do escorregão vertiginoso daquele professor de química desesperado com a vida e cada vez mais entusiasmado com os poderes da ilegalidade em Braking Bad? Nem precisaria incluir na lista um outro professor que, no lugar das drogas, molha em sexo o desencanto com o mundo na pouco comentada Californication, que soa como uma canção pop mais apimentada. 

São ótimas as séries de televisão que deram uma banana para o cinemão convencional americano, mostrando o quanto os super-heróis e assemelhados - por mais divertidos que também saibam ser em muitos momentos - chafurdam na banalidade das cenas explosivas quando deveriam preencher as telas com a fúria e força que o verdadeiro cinema pode ter. 

E toda essa preleção é para falar de um diretor e dois filmes, ambos à antiga, que por acaso voltei a ver nesses dias de lazer antes da volta ao trabalho. Por melhor que seja, não tem seriado de tevê que se compare aos painéis filmados pelo velho John Houston, o cineata que parece melhor retratar, estudar, lamentar e ao mesmo tempo fazer transcender as agonias de um ser humano em crise. Pelos dois filmes que revi - agora muito mais atentamente do que antes, lá pelos anos 80 - Houston não tem concorrente quando se trata de grudar uma câmera numa figura em desencanto ou já em pleno processo de autodestruição, alcançando, a partir de um drama pessoal, visões dispersas dos males que a humanidade cultiva com a melhor das intenções. 




Os filmes foram À Sombra do Vulcão, onde acompanhamos as últimas horas de vida de um Albert Finnney às voltas com um alcoolismo terminal exercido em meio a uma festa do dia dos mortos no México, e Os Desasjustados, outra crônica do desespero mas aqui praticada em grupo, por um elenco também ele de outra maneira terminal - foram os últimos filmes de Clarck Gable e Marilyn Monroe, ali acompanhados por Montgomery Clift.

O cinema dos limites

Em À Sombra do Vulcão*, um cadáver de carne, osso e contrastantes roupas pretas flana em meio a um cemitério colorizado pelas festividades do dia dos mortos: é o diplomata bebum Albert Finney, a mais perfeita tradução de algo que o filme já procura explorar desde as cenas de abertura, com os esqueletos da festa mexicana pulando sobre a tela escura como bonecos sinistros. São mais que isso, soando, especialmente quando vestidos como noivos, como ilustrações da roupa patética que tantas relações amorosas desviadas do curso podem envergar. Os bonecos dão mais pena do que medo, é claro - e este obviamente não é um filme de terror, embora os sinais da morte estejam em muitas cenas, como a velha índia jogando dominó com galinhas no bar decadente onde Finney toma todas e mais um pouco.






Ao contrário do que acontece nos novos seriados (e grande parte do atrativo deles vem disso) não são necessárias muitas explicações para a narrativa da crise do personagem. Basta uma frase no roteiro e pronto: "Um dia acordei e ela tinha ido embora", e o drama está dado - claro, se for pronunciado pelos atores certos, capazes de expressar essa forma especial de solenidade falida como Finney faz. Para além da dor de cotovelo que nem o retorno inesperado de Jaqueline Bisset - pudera! - é capaz de curar, o tema do filme é a dúvida sobre a possibilidade de redenção que todos nós, alcóolatras e diplomatas desiludos ou nem tanto, temos ou não enquanto caminhamos pelos nossos dias dos mortos particulares. 

Finney está lá, como um espelho de refrações exageradas para a gente se olhar. Não à toa, lembra um Hamlet vencido, do tipo que nem chegou a sofrer com a dúvida. Abdicou do dilema ao primeiro encontro com ele - sucumbiu, copo na mão, monólogo na boca, e são vários ao longo do filme. No material extra, o roteirista comenta que Houston não aprecia bizarrices e foge de exageros - refere-se às sequencias finais situadas num bordel ultrarrealista - mas, não se enganem: faz algo muito parecido - gosta de filmar os limites. Á Sombra do Vulcão, um filme cult desde os anos 80, é mais que um programa cool. É um filme-limite, como nenhum novo seriado é capaz de ser, sob pena de matar seus ganchos e dispersar seu público. Este problema o cinema clássico (acho que a esta altura podemos considerar a palavra) não tem. 

Sem subir nem aterrissar

A matéria que constitui Os Desajustados** não é muito diferente. A distinção é que aqui temos um grupo de quatro personagens que compartilham esses sentimentos de fim de linha. "Talvez a única coisa que exista seja a próxima que vai acontecer", reza Marlyn Monroe, dando o mote da falta de perspectiva que move - ou não move - o quarteto, em que sua beleza e sensualidade, ainda que não no auge da carreira, serve para rejuntar os vazios que ligam o grupo integrado por Gable, Clift e Eli Wallach. Membros de uma camaradagem sustentada pela solidão em comum, um certo desprendimento exigido como taxa para que se mantenham vivos, o desespero resultante de praxe e, óbvio, o desejo que MM desperta. "Não consigo aterrissar nem subir a Deus", diz outro personagem, ex-piloto de avião de bombardeio da II Guerra reduzido a motorista de guincho, numa série de ilustrações verbais que se devem a outro monstro sagrado - o roteirista, que aqui é ninguém menos do que o dramaturgo Arthur Miller. 




Por isso mesmo o filme também sofre de uma certa teatralização que sempre atrapalha um pouco - não há traço disso em À Sombra do Vulcão, só pra explicar o efeito. Mas Houston está lá pra garantir que o cinema seja antes de tudo cinema. E o faz na sequência final, que mostra uma épica e ao mesmo tempo desesperançada caçada a um bando de mustangs. Não poderia haver metáfora visual mais perfeita para aqueles desasjustados do titulo do que os seis cavalos selvagens que os homens, usando claramente a força e a resistência física como distração para falências mais subjetivas, põem-se a capturar. A caçada dá uma nova plasticidade ao filme, ampliando cinematograficamente a falta de horizontes internos daqueles quatro personagens. É curioso que, num filme de um diretor conhecido por também ele cultuar tais rituais de macheza (vide Coração de Caçador, que Clint Eastwood fez somente sobre isso) haja uma reação ao abuso ecológico que a caçada aos mustangs representa. Melhor para o filme e para MM, que tem ali a chance de exercitar seu melhor momento, no derradeiro filme. Houston filmou sua revolta de longe, não se sabe se para enquadrar melhor a pequenez do ser humano no quadro geral da geografia em volta ou para disfarçar alguma imperfeição na interpretação.

Não importa, ali Os Desajustados já cumpriu seu papel, inscrevendo na obra completa de John Houston um outro estudo sobre os limites da experiência humana - e as consequências que nos esperam quando, qual cavalos selvagens, trotamos para além deles. Alguma civilização, para o bem ou para o mal, cedo ou tarde vai nos deter - e dor que esmaga tanto os quatro desajustados quando o diplomata bêbado estará garantida. Ao contrário do mustang que Gable, exaurido pela dor física e pessoal, resolve afinal deixar seguir livremente pela amplidão branca do deserto de Nevada. 

*À Sombra do Vulcão está à venda em DVD na Livraria Cultura (R$ 19,90 na loja do Iguatemi em Brasília).
**Os Desajustados está à venda, pra quem mora em Natal, na loja de vídeos especiais do camelódromo da Ulisses Caldas.