quinta-feira, 23 de junho de 2016

O prisioneiro de Saul


Tem uns caras que um dia, determinado dia, na sua vida de leitor, você vai ter que enfrentar. Não tem data, nenhuma previsão, segurança alguma, nada. Mas ele / ou ela / estará lá, esperando, calmamente como um serial killer astucioso que sabe como ninguém cozinhar e degustar miolos de leitores incautos. 

Por estes dias, nas rondas que me arrisco a fazer entre as ruas de prateleiras da biblioteca pública que frequento, fui capturado por um tipo desses. Era um canto de estante, uma esquina mal iluminada onde poderia estar escondido um Goethe, um Becket, um Thomas Mann, este último pronto pra me ferir mortalmente com um golpe de "José e Seus Irmãos" direto no cocoruto. Escapei desses todos.

Escapei por pouco, apenas para me ver refém do não menos tenebroso Saul Bellow - um senhor de cara de cavalo, cabelos ralos e brancos, postura de vampiro curvado e, o que é pior, cérebro completamente imune a qualquer tipo de conciliação com a vida e com o mundo. Esse tal Saul é tipo um Paulo de Tarso às avessas, um Saulo bíblico que, depois de um tombo causado por um livro que se suicidasse de uma prateleira de biblioteca, renegasse novamente tudo o que passou a ser, voltando a viver como um perseguidor de crentes.  

O Sr. Bellow, consagrado até dizer chega graças a livros como "O Legado de Humboudt" e "Herzog", mora naquela rua onde a América examina seu pecadões e pecadinhos com um rigor de quem tem um império a construir e não pode perder tempo. 
O livro que ele usou pra me manter preso na sua rede é - como não poderia deixar de ser, em casos assim? - um baita monólogo disfarçado, que só mesmo pra lhe enganar começa a narrar na terceira pessoa para logo logo desandar num fluxo de pensamento capaz de deixar o Dostoiéviski de "Memórias do Subsolo" sem fôlego - ou, no mínimo, com soluço. 

Não me identifico com "Crime e Castigo" - falta empatia, e não é propriamente com a referida infração e posterior punição, mas com a atmosfera completa do livro - mas sou fã das Memórias subterrâneas do moço de Moscow (ou seria São Petesburgo, pré ou pós-Leningrado?) . Talvez por isso esses monólogos, ainda que (mal) disfarçados, têm o poder de me pegar. É dura a travessia, há horas em que você quer sacudir livro, pensador e (ralos) personagens janela abaixo, mas a civilização sempre dá um jeito de lhe conter os impulsos. 


O livro - só agora me dou conta de que ainda não dei o título - é "O Planeta do Sr. Sammler", um desabafo tipo Riobaldo em Nova York, assombrado não com os mistérios do sertão humano e sobre-humano, mas com as armadilhas urbanas e ao mesmo tempo quase selvagens da grande maçã. Isso nos anos 70: lembre de toda a cinematografia local do período, com vapor escapando de becos escuros, tiras corruptos e pós-hippies a um passo do apocalipse e você vai entender melhor.  

Judeu polonês, sobrevivente da matança nazista, saudoso de uma Londres intelectualizada, o Sr. Semmler do título navega pela Nova York dos anos setenta como alguém que, tendo sobrevivido, não consegue pisar no chão dos mortais propriamente ditos. Oscila, vaga, permanece em suspensão sobre esse mundo que enxerga como tão terminal quando os nefastos episódios históricos de que tomou parte antes de ali chegar. 

A julgar por este livro, a impiedade de Saul Bellow não deve ser menor nos outros - exatamente os que o consagraram. Veremos, porque volta e meia eu não resisto e dou umas incertas nas mesmas ruas de prateleiras onde já me deixei uma vez capturar. Ao amigo, à amiga, sugiro que pense duas vezes. Mas se começar a ouvir os lamentos do Sr. Sammler, vá até o fim. Persista, insista, não se entregue, estrebuche mas chegue ao final. 

Não que haja alguma surpresa do gênero spoiler que eu não cometerei o supremo crime de revelar - nada disso; o que por si só já representa um tipo de spoiler - mas é que é preciso esgotar o pensamento sobrevivente desse narrador enviesado. Porque este tipo de relato só tem sentido se começar e terminar assim, sem deixar pela metade seu ponto de saturação. Planetas como esses precisam ser habitados por todas as páginas. Quem pular trechos por excessos de enjoo estará cometendo outro crime, bem mais grave embora não muito frequente em ruas sinistras formadas por quarteirões de estantes de bibliotecas públicas.  

segunda-feira, 13 de junho de 2016

Visões do Varilux



Dois filmes que recuperam para o olhar a força do cinema sem apelar para super-herói ou explosões – a não ser aquelas que se dão na alma contemplativa e silenciosa do espectador


Não poderia haver dois filmes tão distintos e opostos – e tão bons, de um tipo de cinema que definitivamente os americanos deixaram para trás. E de um tipo que sequer os seriados de televisão, com toda sua excelência, praticam. Tinha que ser o cinema francês – agora num formato até mais próximo do americano dos anos 80, mas sem perder a subjetividade que lhe é característica, embora também sem fazer dessa qualidade um fetiche para a indefinição. Não sendo mais o “cinema de arte” de antanho, consegue ser o cinema da objetividade bem praticada e colocar-se distante também do espetáculo vazio que o cinema de super-herói inflou até as raias da banalidade. 

Isso tudo é apenas porque eu assisti a apenas dois dos tantos filmes do Festival Varilux de cinema francês. Bastaram dois para escancarar o alcance deste cinema atual e diversificado – e que, a julgar por esses dois exemplares, não abre mão da profundidade. Nem mesmo quando se trata de algo absolutamente leve, como é o caso do primeiro filme que vi, “Um Doce Refúgio” (título brasileiro tipo água-morna para o original “Comme um avion”). É um cinema-crônica que desde os primeiros quinze minutos já lhe remete aos filmes do italiano Nanni Moretti (Caro Diário e afins). Ao final dos créditos, você confirma: o ator, protagonista tão importante que leva o filme todo nas costas sem acusar peso algum, é também o diretor - Bruno Podalydès. Um Woody Allen europeu e, assim como Moretti, sem o ranço nova-iorquino às vezes algo postiço do ex-marido de Mia Farrow.


“Um Doce Refúgio” é aquele filme que, ao parecer supérfluo na abordagem e no tema, na verdade constrói um consistente e articulado discurso sobre a necessidade de se deixar levar pelo acaso em uma era marcada pela exigência neurótica de controle, sucesso e ostentação. Você passa duas horas apreciando as viagens reais e imaginárias de um sujeito que admite se deixar levar pela fantasia a ponto de se jogar em rios pilotando um caiaque comprado aos poucos pela internet. A metáfora visual é absoluta e, além de dispensar explicações, ainda proporciona um fluxo de imagens, um ritmo cinematográfico que não poderia ser mais inerente à velha sétima arte.

Já o outro filme, “Os Cowboys”, é uma jornada rumo ao inferno de um fenômeno mundial que, na época em que a história se inicia, estava apenas começando. O tema é atualíssimo – a adesão de jovens europeus se não bem nascidos, ao menos bem estabelecidos, ao mundo dos extremistas islâmicos. O filme como que coloca uma lente de aumento ainda mais potente sobre esse tema, ao situar a adolescente que foge de casa e some sem deixar vestígios numa família francesa que elege como modelo de vida toda a simbologia do oeste americano (o sumiço se dá durante um festival que emula, na França, uma festa country norte-americana). Dois extremos já estão juntos aí – o isolacionismo conservador algo texano que a família admira por tabela e o extremismo islâmico que captura sua filha e se opõe violentamente àquela mesma América estandartizada.

Mas “Os Cowboys” é um daqueles filmes que pulam por diversas fases, transformando-se praticamente em dois filmes em um – e o espectador vai junto, embarcando numa jornada de busca à garota desaparecida que descortina um mundo arriscado, violento, inseguro e ameaçador não apenas do ponto de vista da segurança pessoal, ou de um povo ou de uma nação. Entramos, numa incursão muito bem realizada pela direção do filme, no terreno movediço das viradas pessoais, atingindo pontos irreversíveis tanto na paisagem estranha dos desertos orientais quando nas vastidões interiores de quem faz esse tipo de travessia sem volta. Quem personifica tudo isso – algo de que nem se desconfia na primeira hora do filme – é o irmão da menina desaparecida, um ator pleno de poderes em expressar um mundo de emoções, carências e potenciais ousadias praticamente sem usar palavras. É um daqueles rostos que o grande cinema, no tempo em que esta arte teve espaço para ser realmente grande, gravava para sempre na tela da memória coletiva.


Mas “Os Cowboys” é apenas um filme francês sem maiores estratégias de marketing e divulgação, sem sombra de super-herói ou campanha viral na internet. Um grande filme, para um tempo que insiste em ser pequeno. Ainda bem que existe o Festival Varilux pra gente poder assistir a filmes como esses.

No Festival Varilux