segunda-feira, 21 de novembro de 2016

Já deu um aperto na sua pós-verdade hoje?


Apertem os cintos: estamos entrando na era da pós-verdade

Por Carlos Castilho, do Observatório da Imprensa, em 28/09/2016 na edição 921

Pós verdade parece mais uma expressão de impacto para chamar a atenção de um público saturado de informações e inclinado para a alienação noticiosa. Mas o fato é que estamos diante de um fenômeno que já começou a mudar nossos comportamentos e valores em relação aos conceitos tradicionais de verdade, mentira, honestidade e desonestidade , credibilidade e dúvida.
As evidências desta nova era estão nas manchetes de jornais, em declarações como as do candidato republicano Donald Trump ou nas dos procuradores e acusados na Lava Jato. Se antes havia verdade e mentira, agora temos verdade, meias verdades, mentira e afirmações que podem ser verdadeiras, conforme afirma o escritor norte-americano Ralph Keyes, o autor do livro The Post Truth Era: Dishonesty and Deception in Contemporary Life (St. Martin’s Press, 2004. ISBN 978-0-312-30648-9).
Quando Trump afirmou num discurso que o presidente Barack Obama foi um dos fundadores do Estado Islâmico, até os ultraconservadores norte-americanos acharam que ela estava exagerando. Mas o candidato republicano não se abalou, nem mesmo na televisão, quando explicou que Obama permitiu o surgimento do grupo radical islâmico porque este cresceu no vácuo politico deixado no Iraque pelo que Trump classificou de fracassos da diplomacia do presidente norte-americano. A polêmica criada em torno da afirmação gerou a percepção de que ela poderia ser verdadeira. Foi o suficiente para que Trump saísse ileso da discussão.
Os conservadores transformaram a insegurança pública num dos seus carros chefes na campanha pela implantação da doutrina do medo social, como forma de domesticar a população. Mas eles negam a evidência estatística de que na maioria dos grandes centros urbanos do planeta a incidência de crimes diminuiu em relação ao número de habitantes. A explicação para a discrepância entre a sensação de insegurança e as estatísticas criminais é complexa e exige uma boa dose de esforço e isenção. É mais fácil partir para aquilo que uma parte do publico quer ouvir.
A “cognição preguiçosa”
É um caso típico de aplicação da teoria da “cognição preguiçosa”, criada pelo psicólogo e prêmio Nobel Daniel Kahneman, para quem as pessoas tendem a ignorar fatos, dados e eventos que obriguem o cérebro a um esforço adicional.
Aqui no Brasil, a pós verdade é nítida no caso das investigações da Lava Jato. Separar o joio do trigo no emaranhado de versões e contra versões produzidas pelas delações premiadas é bem complicado. Há poucas dúvidas sobre a existência de esquemas de propinas, caixa dois eleitoral, superfaturamento, formação de cartéis e enriquecimento de suspeitos, mas provar cada um deles com base em evidências é uma operação complexa e demorada. Em alguns casos até inviável dada a sofisticação dos esquemas adotados pelos suspeitos de corrupção.
Mas como existe o interesse político envolvendo a questão e como existe a “cognição preguiçosa”, as convicções passam a ocupar o espaço das evidências e provas. A dicotomia jurídica clássica entre o legal e o ilegal passa a ser substituída por justificativas tipo “domínio do fato”, ou seja, convicções construídas a partir da repetição massiva de percepções individuais ou corporativas, pelos meios de comunicação.
Segundo a revista The Economist, o mundo contemporâneo está substituindo os fatos por indícios, percepções por convicções, distorções  por vieses. Estamos saindo da dicotomia tradicional entre certo ou errado, bom ou mau, justo ou injusto, fatos ou versões, verdade ou mentira para ingressarmos numa era de avaliações fluidas, terminologias vagas ou juízos baseados mais em sensações do que em evidências. A verossimilhança ganhou mais peso que a comprovação.
A pós verdade, um termo já incorporado ao vocabulário da mídia mundial, é parte de um processo inédito provocado essencialmente pela avalancha de informações gerada pelas  novas tecnologias de informação e comunicação (TICs). Com tanta informação ao nosso redor é inevitável que surjam dezenas e até centenas de versões sobre um mesmo fato. A consequência também inevitável foi a relativização dos conceitos e sentenças.
Mas o que parecia ser um fenômeno positivo, ao eliminar os absurdos da dicotomia clássica num mundo cada vez mais complexo e diverso, acabou gerando uma face obscura na mesma moeda. Os especialistas em informação enviesada ou distorcida (spin doctors no jargão norte-americano), aproveitaram-se das incertezas e inseguranças provocadas pela quebra dos paradigmas dicotômicos para criar a pós verdade, ou seja, uma pseudo-verdade apoiada em indícios e convicções já que os fatos tornaram-se demasiado complexos.
A herança de Goebbels
Diante das dificuldades crescentes para materializar a verdade por conta da avalanche informativa, especialmente na politica e na econômica, criaram-se as pós verdades, ou factoides (no jargão brasileiro), onde a repetição e a insistência passam a ocupar o espaço das evidências.
Na era da pós verdade, as versões ganharam mais importância do que os fatos, o que não é bom e nem mau. É simplesmente uma realidade. O que chamamos de fatos, na verdade são representações de um fato, dado ou evento desenvolvidas pela mente de cada indivíduo.
Assim, teoricamente, podemos ter um número de representações de um mesmo fato igual ao número de seres humanos no planeta Terra. E como as TICs permitem a disseminação massiva destas representações ou percepções, fica fácil intuir a complexidade da avaliação de fatos, dados ou eventos.  “Uma mentira repetida mil vezes vira verdade”,  a controvertida máxima cunhada pelo chefe da propaganda nazista, Joseph Goebbels, tornou-se preocupantemente atual.
Os meios de comunicação, principalmente a imprensa, ganharam um papel protagônico no fenômeno da pós-verdade porque a circulação de mensagens passou a ser o principal mecanismo de produção de novos conhecimentos numa economia digital movida a inovação permanente. A relevância conquistada pelos meios de comunicação os transformou em agentes fundamentais no processo que prioriza uma forma de descrever a realidade. Quando a imprensa norte-americana endossou a tese da existência de armas de destruição maciça no Iraque de Saddam Hussein, ela  deixou de lado a verificação dos fatos e foi decisiva na transformação de uma possibilidade em certeza acima de suspeitas.
Teoricamente a pós verdade pode ser usada tanto pela esquerda como pela direita no terreno politico, mas como a imprensa joga um papel fundamental no processo, os rumos obviamente serão determinados pela ação de jornais, revistas, meios audiovisuais e pelas redes sociais. A imprensa portanto, não é uma observadora mas uma protagonista do processo de transformação de mentiras ou meias verdades em fatos socialmente aceitos.
A pós verdade e o jornalismo
A pós verdade é apenas um dos itens da era digital que estão abalando nossas crenças e valores. Nós jornalistas e toda a sociedade estamos vivendo um momento de insegurança e incertezas porque estamos passando de um contexto social para outro.  Esta insegurança não é um fenômeno inédito na humanidade porque já aconteceu antes quando grandes inovações tecnológicas alteraram radicalmente o contexto social da época. Basta ver o que ocorreu após a invenção da pólvora, dos tipos móveis por Gutemberg, da máquina a vapor e dos processos de produção industrial.
Um dos grandes, talvez o maior de todos, dilemas enfrentados pela sociedade atual, é a necessidade de conviver com a complexidade do mundo contemporâneo. Tomemos o caso da polêmica científica sobre o meio ambiente. É um tema complexo onde o bombardeio informativo confunde as pessoas comuns com afirmações contraditórias entre cientistas e pesquisadores. Do ponto de vista dos cientistas é natural que existam posicionamentos distintos mas para o público, acostumado pela imprensa a esperar verdades absolutas, as contradições e divergências geram incertezas, que acabam conduzindo ao descrédito generalizado.
A pós verdade coloca para nós jornalistas o desafio da repensar a credibilidade e os parâmetros profissionais para avaliar dados, fatos e eventos. Não é uma casualidade o fato da credibilidade da imprensa, em países como os Estados Unidos, estar hoje num dos pontos mais baixos de sua história. O leitor está cada vez mais confuso e desconfiado em relação à imprensa. É uma resistência intuitiva ao fenômeno da complexidade informativa gerada pela internet.
A pós verdade é talvez o maior desafio para o jornalismo contemporâneo porque ela afeta a relação de credibilidade entre nós e o público. A nossa atividade está baseada na confiança das pessoas de que o que publicamos é verdadeiro. Quando uma nova conjuntura informativa interfere nesta confiabilidade, temos serias razões para nos preocupar, e muito, sobre o futuro da profissão.

domingo, 6 de novembro de 2016

Atualizando (ou "o espírito do tempo")



Tem aquela palavra em alemão difícil de pronunciar e fácil de entender, perfeita para explicar justamente o que parece não caber numa palavra. Zeitgeist, o tal espírito do tempo. Que tem sido péssimo, que aponta para piorar mais ainda, que não nos deixa dormir bem a não ser que todas as janelas informativas sejam cuidadosamente fechadas pelo menos três horas antes de qualquer pessoa sensata, sensível e minimamente inteligente ir para a cama. Lapsos se abrem, é natural. Blogs são abandonados à própria sorte. Um rascunho de post à deriva na lama da desinformação tubinada que, apesar de tudo, em certas horas ainda reflete a luz de uma lua torta. 

Muito pra dizer, mas pra quê? Por mais que se dê voltas, sempre se corre o risco de cair, desavisadamente, num buraco oculto no asfalto, a melhor embora mais acidental tradução para o tal espírito do tempo (o atual, por favor). Faltou falar de Aquarius, tão mal compreendido, erroneamente - e o pior, propositadamente - lido, tomado por partes que sozinhas nem fazem sentido enquanto o todo, esse monstro que vem a ser outra cara do espírito do tempo, não perdoa em sua implacabilidade. 



O filme não é sobre política pequena, nem pode ser reduzido a um thriller social, um drama banal: é tudo isso superlativamente superposto em camadas que vão sendo cimentadas umas sobre as outras, resultando no mais acabado espírito do tempo made in Brazil dos nossos dias. Glauber Rocha que morra de inveja, mas o pernambucano lhe ocupou o lugar. 

Tanto a dizer, palavras perdidas no abandono da autoeditoração que tanto permite quando desautoriza. Faltou falar de A Repartição do Tempo, um bólido cinematográfico que vem aí para nos desfatigar as retinas drummonianas nesses meses recentes, ao reerguer em forma de comédia amalucada, ligeiramente puxada ao ritmo de um distante Guy Ritchie, a nossa já tradicional dramaturgia do serviço público. Vide a era do Palhares de Nelsão, em crônicas, romances seriados ou quadros do Fantástico. 


Nada do involuntário tédio em sépia dos aspones e seriados apocalípticos globais, onde ceticismo rima com tédio. Necas, que aqui o aproach é mais do tipo agulha na epiderme: provocações algo nonsense num filme onde o grafismo narrativo é aplicado a certa preguiça crônica do funcionalismo brasileiro. É claro que aquela repartição é um microcosmos de algo mais, colega. E o colega, que vem a ser isso mesmo (o diretor Santiago Dellape, com quem dividimos mesas funcionais na tevê da Câmara dos Deputados), está  vestido de autoridade para tripudiar não só do funcionalismo como de todas as outras piadas já feitas sobre isso. 

Se bem que a redação da TV Câmara, onde labutamos com fervor, orgulho e maestria em turnos ininterruptos de oito horas e meia diárias, nada tem a ver nem com o restante do funcionalismo legislativo e menos do que se imagina com uma redação jornalística convencional. Salto para a mais clássica de todas, in Brasil: a do JB cantada em prosa, versos e memórias dos anos 60 até seu lastimável fim. E na Piauí em bancas, Joaquim Ferreira dos Santos maltrata, meticulosamente, cada microfibra da nossa saudade ao lembrar o santificado espaço de uma pretérita Avenida Brasil. 






Não, nada disso - não é preciso ter trabalhado no JB de então como fez o saudoso Luciano Herbert desde Natal (dividindo o batente com a Tribuna do Norte e o Banco do Brasil) pra entender, sentir, sofrer esse missing you. Basta ter sido um leitor do JB nos anos 80, um estudante de jornalismo em igual período, um brasileiro que, por mais que tentem, não consegue, como uma certa Clara pernambucana, aderir aos tempos atuais. E aí está ele, novamente, em grande estilo, technicollor, para todo o Brasil ou com z ou com s: o espírito do tempo. 



Leia a memória de Ferreira na Pauí e experimente lembrar de quem você era, o que fazia, os amigos que tinha, o miserê que gratificava, o companheirismo que compensava, o divertir-se que criava. Está tudo lá, porque a redação do JB era, como Aquarius e as piadas cínicas pero divertidas e inquietas da Repartição do Tempo, um cartaz e tanto de uma época que tem muito o que dizer aos carreiristas prematuros do mês passado, incapazes de guardar o que quer que seja no bolso dos afetos do ano corrente. 

*A propósito, lembro aos distraídos: Aquarius já está disponível no cardápio do Telecine da plataforma NOW, da monopolista Net global.  

*A propósito (2): Luciano, rapaz, você não está perdendo nada.