segunda-feira, 16 de outubro de 2017

NÓS E OS ESPANHÓIS


A propósito do nosso sombrio momento histórico e de uma série de livros da editora Contexto

É certo que estamos todos tristes. Não que certa melancolia não nos acrescente algo. Mas é de outra natureza essa sombra sobre nossos sentimentos - nada  a ver com a estranha alegria de ser triste de que falava o poeta português. É – esperamos – um desapontamento demarcado, uma apatia ocasional, uma escuridão cercada por um muro cheio de cacos de vidro chamado momento histórico.

Tudo é cinza em torno do verde/amarelo que nos roubaram pra enfeitar Patos de Tróia. E chutamos pelo caminho restos de projetos de país, papéis amassados com planos grandiosos que, entre retas e círculos, de alguma maneira vínhamos desenhando com algum sucesso. Faliu o Brasil Grande, quebrou o País do Futuro, furou-se o balão do Milagre Consumista, travou a máquina do Gigante Acordado. Tudo se esvaiu num ralo que mistura descrença ideológica com hipocrisia política, num escorrer rápido e precipitado como jamais imagináramos – sem nos dar tempo sequer de parar a correnteza para segurar algum elemento primordial que não precisa ser jogado fora junto com a água suja do banho do continental bebê.

Foi bem neste clima que me caiu às mãos um livro – sempre eles – capaz de, se não restaurar o que a realidade suja destruiu, ao menos lembrar que esse tipo de processo pode não ser propriedade particular de nosso apego infantil ao subdesenvolvimento. Foi um dos livros da série sobre nacionalidades que a editora Contexto publica. Uma bela série, onde se pode ler “tudo sobre” Os Ingleses, Os Espanhóis, Os Portugueses, Os Franceses, Os Russos – e outros, num total, acho, de dez título. Vá ao site, escolha os que lhe interessam e é capaz de, comprando uns cinco, ganhar o sexto. Vale cada centavo: cada livro traz uma síntese histórica, social e cultural de cada povo, como ele se uniu e como ameaça se desunir no dia a dia, vantagens e fraquezas, momentos de alta e de baixa.

Digo isso com base em Os Espanhóis, o único que li até agora – mas que foi justamente o livro que me devolveu um pouco de – como dizer, esperança? Não, caça aí outra palavra nas vizinhanças dessas – no errático Brasil de 2017. Descobri – ignorante como sou, e isso não é piada autodepreciativa pra me elevar o conceito em efeito contrário – que em certos aspectos, estamos bem à frente. O recente imbróglio em torno da independência da Catalunha não me deixa mentir.

O livrinho vai fundo nas bases desse e de outros movimentos separatistas hispânicos, além de cutucar as feridas espanholas como quem abre a golpes de foice as veias abertas da América Latina. Suportar um regime como o do general Franco por décadas – e só ver este regime cair quando seu patrono de fato morreu, bateu as botas – é de triturar qualquer coração civil, só pra deixar a coisa num clima bem Milton Nascimento dos anos 80. Desculpe, mas fomos ligeiramente melhores, se é possível traçar escalas de valores em matéria de ditadura. O fato é que nossos déspotas (os mais recentes) caíram antes – ou, melhor dizendo, duraram menos em termos de paciência cidadã. Os espanhóis tiveram que velar o presunto de Franco para poder pedir a palavra e dizer “ai”.


O efeito Guerra Civil é de uma absurda capacidade de gerar dor. Basta lembra a expulsão ou o sacrifício puro e simples de toda a boa inteligência  do país – escritores, artistas, cientistas – vitimada pelas botas dos seguidores de Franco. Sem falar nas levas de guerreiros republicanos entregues aos campos nazistas. É tanto sofrimento condensado que, por um instante, entre uma página e outra, a gente até acalenta a ideia de que o Brasil não terá sido tão cruel com sua gente. Será? E a nossa singela escravidão?

O fato é que, fechando a exposição do que é ser espanhol – e a síntese revela-se tão difícil quando a nossa eterna busca pela “identidade nacional” – o autor não se faz de bonzinho: diz, pura e simplesmente, que o que mantém a Espanha unida (porque, segundo ele, há camadas inteiras da população incapazes de se comunicar minimamente com outras; e a divisão pro e anti-independência da Catalunha taí pra provar) é alguma coisa como o medo... de outra guerra civil.


O que une os espanhóis é algo como a consciência de que tempos muito piores já foram vividos. É uma mistura de temor ancestral com conforto possível. Bem classe média brasileira com medo de não ter dinheiro pra pagar o colégio do filho, não? Mas é a isso mesmo que se chega após umas tantas trezentas páginas que passam por figuras tão distintas quanto Don Juan e El Cid, Felipe González e a cigana Carmem. O amigo arrisca aí uma síntese entre Chacrinha e, argh, Jair Bolsonaro? Pobre Espanha, miserável Brasil. Talvez o grande problema seja o mundo inteiro. Toc, toc, toc.

quinta-feira, 5 de outubro de 2017

SÓ NOS RESTA O VERÃO






Este ano, vamos cobrar uma velha dívida dos cariocas

Os cariocas são minha última esperança. O verão carioca. Os modismos do verão carioca. Nunca eles foram tão necessários - porque ousados, irreverentes, loucos e irresponsáveis. É disso que a família brasileira mais precisa agora, nesta triste reta final não apenas de um ano, mas de uma série deles ao longo dos quais fomos atingidos por péssimas notícias encadeadas, ondas de intolerância compactadas e um bafo de atraso como jamais imaginamos. Pois ninguém melhor do que os cariocas para dar um chega pra lá nisso aí.

E eles nos devem isso: durante anos, décadas, séculos, fomos obedientes e fiéis seguidores das invenções que os cariocas nos traziam a cada verão: teve o do topless, o da lata, o do primeiro Rock in Rio, o do "Carnaval no fogo", que foi tão bom que virou livro, com esse título aí, escrito por Ruy Castro. Se durante tanto tempo fomos leais súditos dos verões cariocas mesmo morando a quilômetros de distância - em lugares onde havia outros modismos mas sem a menor chance de concorrer com aqueles propagados pela máquina de informações que vinha do Jardim Botânico, o bairro - então não será abuso nenhum cobrar a conta agora.

É assim mesmo: contas se cobram em momentos difíceis, quando tá todo mundo por um fio. E nesta hora em que nossa malemolência tropical está sendo ameaçada como nunca imaginamos pela rigidez de pastores milionários ou aspirantes a tanto, por arremedos de políticos que tisnam uma atividade que originalmente é das mais necessárias e por subcelebridades que não se conformam com o anonimato depois de famas fúteis justo naqueles libertários anos 80, então vamos passar a régua e exigir a conta: cariocas, ao trabalho, já – que dezembro está estourando aí.


Que nos apresentem, como contrapartida a tanta agressividade autorizada, burrice proclamada e moralismo de ocasião um verão escandaloso, performático, fútil como tem que ser mas divertido como se espera – numa palavra, bárbaro, para espantar os caretas de uma vez.

Um verão selvagem é o que pode nos salvar – ou, pra também não falar em termos tão definitivos que de fato não combinam com a estação – ao menos deter um pouco o neonazismo brazuca como um bloco de carnaval que para o trânsito impaciente da avenida Presidente Vargas.

Então, cariocas, vocês nos devem um baita de um verão. Usem o que for preciso: um novo biquíni, um point inesperado, um movimento que coloque aquela gente toda na praia diante de um adversário comum  (apitos sempre podem ser recuperados), o Cristo, o calçadão, Leila Diniz, a Rocinha, a Globo, o diabo. Mas nos entreguem aquele verão atrevido, barulhento e determinado a fazer a diferença que fez valer ao Rio a fama de capital cultural de um país em ruínas.