quarta-feira, 8 de março de 2017

OS INFERNOS DE ROTH





Ok, pode se escandalizar. Mas admita que você também pode se divertir com duas das mais nefastas criaturas literárias dos EUA


Dante que me perdoe, mas ninguém sabe construir um inferno melhor do que Philip Roth. Inferninhos, pra ser mais exato. Não daqueles de arrebalde ou beira de estrada. Não do tipo mal iluminado e cheio de figuras estranhas. Nada de bares suspeitos. Outro inferninho – pessoal, interno, internalizado, mas igualmente inferninho, pois que acelerado, disparado, caótico, sem limites. Um inferninho que faz da própria sordidez uma festa dionisíaca de misérias morais expostas. Você, eu, o leitor, nós nos divertimos em meio à repugnância – e, nisso, dissecamos o processo do sórdido da vez.

Que começou sendo Portnoy e, alguns anos depois, burilou seu próprio (mau) caráter a tal ponto que se tornou ainda pior – ou melhor, conforme a perspectiva de quem lê de fato o personagem. Virou Sabbath. Se o primeiro começava como um adolescente equipado com uma mente masturbatória insaciável – na medida exata da reação à repressão da cultura judaica ainda que não tão ortodoxa mas tanto pior quanto mais relativizada pelo meio (no caso, a classe média americana) – o segundo, com o perdão da extensão da frase (que quem já leu Roth não vai estranhar tanto, aposto) termina com o ocaso da mesma alma nefasta nos dias de velhice safada. Só mudaram o nome e ligeiras circunstâncias de endereço e profissão, se é que se pode falar assim.

Nem Bukowski foi tão longe. O caso é que Bukowski meio que se comprazia nas suas orgias, sugeria uma espécie de prazer superior em meio às maratonas alcóolico-sexuais. Deixava um certo rastro de superioridade em meio à miséria da raça, apesar de nem sempre se preocupar em reduzi-la ou julgá-la (muito pelo contrário). E ainda por cima fechava o porre com uma boa dose de niilismo que parecia justificar tudo. Não é o que acontece com Alex Pornoll e Mickey Sabbath, os personagens de dois dos principais livros de Phillip Roth, “O Complexo de Portnoy” e “O Teatro de Sabbath”. Eles não enxergam redenção alguma no que fazem, nem no nível existencial de sarjeta, se vocês me entendem. Pra eles, nada daquilo faz sentido algum. Daí os livros fazerem muito sentido pra quem os lê aqui do outro lado.





Como se sabe, ou não (eu não sabia até a velha biblioteca da Câmara dos deputados, logo ele; e uns vídeos banais de YouTube me informarem gentilmente), “O Complexo do Potnoy” é o primeiro dos mais importantes livros de Roth – e também o primeiro em que críticos literários que foram seus primeiros apoiadores tiveram imediatamente a providência primeira de lhe retirar aquele mesmo esteio inicial. Porque não suportavam as taras do monstruoso personagem. Curioso que justo críticos literários não tenham conseguido descolar o personagem do livro em si – ou, muito mais grave, do autor. Levaram tudo e todos a sério demais – e é preciso dizer que os dois livros aqui referidos são, antes de qualquer coisa, autênticas catedrais do bom humor.

Roth ficou na dele e escreveu uma série de outros livros sem tocar no assunto, como quem assovia uma valsa vienense em meio a um bacanal romano. Pois bem. Anos depois, sai-se com “O Teatro de Sabbath”, um compêndio de memórias e registros de um personagem ainda mais perverso, sexual e socialmente falando. Sabbath soa como Portnoy na velhice, como já disse aqui. Os livros se encadeiam perfeitamente, de maneira que o segundo foi uma espécie de resposta de Roth a quem se escandalizou com aquilo que parecia um escritor promissor até o lançamento do primeiro.
Confundiram o próprio Roth com Portnoy e com Sabbatn – o que não é tão difícil, já que a biografia dos três tem pontos em comum. Mas, para além de olhos esbugalhados de indignação letrada, por trás de cordilheiras de trepadas e rios de sêmen derramados por páginas e páginas, o que parece mesmo incomodar ambos – Portnoy e Sabbath – é a repressão cultural (muito além do murinho sexual, embora esse faça parte do pacote todo). É contra a convenção da tradição judaica, por sua vez cimentada pelos padrões do american away of life contra o qual os redutos em que vivem só aparentemente parecem se confrontar, que nossos dois tarados de estimação se põem a reagir.



E nisso, por serem tal qual são, imperdoáveis que nem um Trump enfurecido diante do quadrado em branco do twitter, é que podemos, junto com Roth, projetar neles todo o nosso potencial de malfeitos. Portnoy e Sabbath são como aqueles cadáveres sem nome que os estudantes de medicina usam para estudar o funcionamento do organismo humano. Eis a medicina da literatura – tantas vezes mais honesta que a de fato. E este último comentário bem que poderia vir de um dos dois personagens. Mas, como não sou nenhum deles, melhor parar por aqui.